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Crítica

Pulsação vital contra a saturação da cultura

11.3.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Ewa Herzog

Trabalho final de um curso de teatro: um menino forra uma caixa de papelão com papel laminado, fura a parte de cima para a entrada de uma lâmpada, escreve a palavra teatro na tosca edificação e diz ao público que cada um deve imaginar sua própria peça. Pela via da negação ou da inocência é fácil ativar a imaginação, poderia ser a moral dessa fábula infantil. Dela vale tirar a pergunta: como engendrar uma poética com potência estética tendo como plataforma de salto a acumulação simbólica no campo da cultura e da arte? Tal desafio funda a teatralidade de Stifters dinge, espetáculo-instalação engendrado por Heiner Goebbels em parceria com uma equipe de criadores com quem esse músico-diretor vem trabalhando há décadas e, portanto, com os quais vem afinando sua linguagem.

É bastante difícil a aproximação crítica dos procedimentos criativos que resultam no fabuloso mecanismo, operado com precisão milimétrica, por seis técnicos (invisíveis aos olhos do público) que compõe Stifters dinge.  O ponto de partida é a colheita de elementos de áreas diversificadas da cultura, desconectados entre si – desde trecho de entrevista do antropólogo Lévi-Strauss até uma melodia de Bach – que, reorganizados, constituem a engrenagem cênica. Porém, é relevante ressaltar, nenhum deles se dissolve no mecanismo, ou seja, não há perda de autonomia e significação desses fragmentos no corpo da obra, e aí reside uma das chaves da potência de afetação alcançada pelo espetáculo.

A informação de que se trata de uma criação maquinal, sem atores, está no horizonte de expectativa do espectador da MITsp. Enquanto a plateia ainda se acomoda na arquibancada, o mecanismo já pulsa suavemente, mas curiosamente, na noite de estreia, o público só silenciou de vez quando os técnicos saíram do palco depois dos últimos preparativos. Talvez não seja por acaso que deixem algumas tarefas para aquele momento, reforçando a ausência do humano com sua retirada. Enquanto tradicionalmente o silêncio se dá com a entrada dos atores no cenário, em Stifters dinge o movimento é oposto. A observação não é desimportante.

A ilusão de um mecanismo autônomo não é o objetivo que funda o procedimento de eliminar a presença de atuadores, mas sim o desejo de abrir espaço para que o espectador possa fruir livremente da polifonia de elementos postos em jogo e fazer suas próprias conexões. Polifonia, palavra muitas vezes repetida pelo diretor ao falar sobre sua obra, é conceito cunhado pelo linguista russo Mikhail Bakhtin ao analisar a literatura de Dostoievski. Em síntese, ele destaca a ausência de um ponto de vista predominante, seja do narrador ou de um personagem nos romances desse autor. Não se trata da ausência de foco narrativo, mas de sua multiplicação: personagens cujos comportamentos baseiam-se em visões de mundo e valores contraditórios entre si têm argumentos igualmente potentes em sua defesa, sem que o narrador/autor interfira em favor de um ou outro. O resultado é a presença de vozes plenivalentes.

Ao contrário do que ocorre no campo saturado da cultura contemporânea, na pulsação vital do maquinismo criado por Heiner Goebbels, cuja linguagem ele define como teatro da ausência, não há esvaziamento de signos, como parecia anunciar a multiplicação de significantes na constituição da presença maquinal. O investimento do diretor, claramente, é contra o logocentrismo, contra o significado autoritário, mas não se trata de um vale-tudo na significação. Tudo o que está posto em cena é feito de forma a buscar o alargamento da percepção e pode ser apreendido como signo. Fazê-lo com relativa liberdade é parte da fruição lúdica oferecida pelo espetáculo cujos procedimentos artísticos, no entanto, não se reduzem a colocar elementos em fricção. Há forte interferência sobre eles, como no caso dos pianos que têm sua forma reconfigurada e se movimentam, mas, ainda que quase levitem, não são destituídos de suas características de peso e densidade. Nas palavras do diretor, seu trabalho central é criar contrapontos e tensões que estimulem a interação com a obra, porém sempre evitando conexões – deixadas ao espectador.

Nem sempre é fácil diferenciar a novidade do novo. A primeira é fagulha, não suporta repetição sem esgotamento. A segunda abre um campo de experimentação a variações diversas. Se não há equívoco, o modo de criação de Stifters dinge pertence à última vertente.

.:. Publicado no âmbito da Prática da Crítica, uma das atividades da ação Olhares Críticos na 2ª MITsp, aqui.

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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