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Crítica

Dinamarqueses releem ‘A sagração da Primavera’

1.4.2015  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Alina Fejzo

Com espaço de relevo na grade do Festival de Curitiba, os espetáculos internacionais selecionados desdobram-se para mirar diversas manifestações de poder. No caso do espanhol A house in Asia, a abordagem é mais direta, observando a caçada norte-americana ao terrorista Bin Laden. As situações de demonstração de força e opressão, contudo, podem adquirir formas muito mais veladas. E complicadas de serem debatidas às claras, como demonstra a criação Double rite, apresentada no Teatro Guairinha no fim de semana.

Trabalho da companhia de dança dinamarquesa Granhøj Dans, o título inspira-se em A sagração da primavera, de Igor Stravinski, para olhar para a descoberta da sexualidade em homens e mulheres. Mais do que fenômeno físico, o rito de passagem é observado como acontecimento social, amparado e cerceado pelas expectativas de quem está em volta.

Entre a dança e o teatro, a criação do coreógrafo Palle Granhøj está dividida em duas partes: Rite of spring – Extended e Rose: rite of spring – Extended 2. Na primeira, apenas homens sobem à cena. Na segunda, só há mulheres e três pianos. “São duas obras diferentes: a masculina, criada há um ano e meio, e a feminina, mais recente. Portanto, é a primeira vez que nos apresentamos juntos”, diz Palle Granhøj, responsável também pela direção.

A nudez dos intérpretes – tanto masculinos quanto femininos – é um aspecto que garante unidade às duas partes. Mas não o único.

A brutalidade dos rituais de iniciação sexual permeia os universos de homens e mulheres. Ideias preconcebidas em relação aos papéis que cada um dos gêneros deve ocupar também são denominador comum.

O ritmo irregular e convulsionado da composição musical conduz as duas partes da obra. O balé criado por Stravinski foi inicialmente coreografado por Vaslav Nijinsky, em 1913. Agora, as dissonâncias e assimetrias da música dão ensejo a uma coreografia que despreza qualquer laivo apolíneo para mostrar-se suja. O uso de refletores de luz branca, os figurinos sem acabamento, a movimentação nada virtuosística.

Atrapalha o desenvolvimento da proposta, contudo, seu apego excessivo a uma estrutura narrativa. Como se não contivesse o ímpeto de descrever o que o espectador presencia no palco.

.:. A repórter viajou a convite da organização do Festival de Teatro de Curitiba.

.:. Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C5, em 31/3/2015.

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Obra explícita conflitos com a transmissão da heteronormatividade

Cena da versão masculina de 'Double rite', com Granhøj DansMads Møller Andersen

Versão masculina de ‘Double rite’, da Granhøj Dans

Margie Rauen

A peça de dança-teatro Double rite, da companhia dinamarquesa Granhøj Dans, tem tudo para provocar uma recepção tão polêmica quanto a de A sagração da primavera, de Igor Stravinski. Se a estréia do ballet em Paris, no Théatre des Champs-Elysées, em 29 de maio de 1913, foi escandalosa pelo enredo do sacrifício pagão e por desestabilizar as convenções de dança, a transposição do Granhøj igualmente cultiva o estranhamento, inclusive por exigir um público com repertório razoável de história da arte.

Não foram poucas as pessoas que se retiraram da sala do Guairinha na segunda noite de Double rite no Festival de Teatro de Curitiba. Na hora de aplaudir, o público, com algumas exceções, permaneceu sentado e, quando levantou, foi para deixar o teatro.

A intuição me levou a conversar com a equipe de iluminação e som ali mesmo na saída, onde encontrei ninguém menos do que o próprio fundador e diretor artístico da companhia, Palle Granhøj, generosamente disponível para conversar.

Granhøj informou que Double rite vinha sendo apresentada em um único ato, já premiado pelo júri de Reumert em 2014, o Rite of spring – Extended, com sete bailarinos em coreografias de ritos e cerimônias que transformam um menino em homem. Mas para o FTC, a companhia preparou a estréia de Rose – Rite of spring- Extended 2, a versão do ritual com oito mulheres, sendo uma pianista.

A Granhøj Dans conquistou privilégios na liberação da música de Stravinski para performance em pianos no tempo real de Rose… e isso alterou a concepção. Enquanto a cenografia de Rose exige a movimentação de três pianos durante os rituais, a peça masculina utiliza apenas o espaço vazio. A minha experiência de vê-los em sequência, com Rose no primeiro ato, foi instigante ao proporcionar a reflexão comparativa sobre gênero.

A separação dos corpos de mulheres e homens em Double rite torna mais explícitos os conflitos inerentes à transmissão da heteronormatividade, reforçando a noção de que o gênero é sócio-culturalmente construído. Além disso, as coreografias de cada ato reavivam a discussão de formas de dançar e do corpo que dança hoje, no mundo de comportamentos padronizados, dos produtos culturais urbanos e de massa, principalmente nas cenas em que a nudez modifica a relação visual do público com as convenções do ballet. Double rite é arte contemporânea, na mais técnica dimensão do termo. Saiba mais sobre a companhia visitando seu site oficial, aqui.

.:. Margie Rauen é professora associada do Departamento de Arte e do Programa de Pós-graduação em Educação da Unicentro. Membro do Grupo de Pesquisa Territórios e Fronteiras da Abrace. Ph.D. em ates Cênicas na linha de pesquisa de processos de criação.

.:. Mais informações no site do Festival de Teatro de Curitiba, aqui.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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