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Crítica

A dimensão processual da dança e da violência

27.5.2015  |  por Julia Guimarães

Foto de capa: Gadi Dagon

Em Bruxelas

Em 2007, uma associação israelense pelos direitos humanos, a B’Tselem, começou a fornecer câmeras de vídeo a palestinos que habitavam territórios ocupados ilegalmente por colonos e militares de Israel. Através dela, eles poderiam filmar os insultos a que eram submetidos em seu cotidiano e usar os registros para identificar e punir os responsáveis.

O material gravado ao longo desses anos gerou um gigantesco arquivo de imagens. E é este o material que o bailarino israelense Arkadi Zaides decidiu explorar em sua nova criação, o espetáculo Arquivo, visto em março na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) e apresentado este mês no Kunstenfestivaldesarts, em Bruxelas.

Em cena, a estrutura explorada pelo jovem performer israelense é, aparentemente, muito simples. Ele inicia a encenação explicando ao publico o contexto em que foram produzidas as imagens. Ao fundo vemos duas telas – uma com a projeção de alguns desses vídeos e outra com informações sobre as imagens apresentadas (ano, contexto). Também no inicio da apresentação, o publico é informado de que apenas israelenses aparecem na tela.

A partir daí, a ação de Arkadi Zaides consiste em tentar reproduzir com seu corpo alguns movimentos de pessoas que aparecem no vídeo, como a ação de lançar pedras, disparar uma arma, ordenhar ovelhas.

Na seleção dos arquivos feita pelo performer em parceria com os videoartistas Effi Weiss e Amir Borenstein aparecem muitas crianças, algumas bêbadas e descontroladas, outras molestando palestinos como se fosse parte de uma brincadeira qualquer.

Ao contrário das imagens repetidamente propagadas pela mídia internacional a respeito de um dos conflitos mais duradouros e controversos da atualidade, as gravações exibidas no espetáculo operam um outro viés: ao mesmo tempo em que exibem a cotidianeidade precária e antiespetacular de uma filmagem doméstica, também elaboram claramente um ponto de vista específico – o de palestinos que usam o registro fílmico como arma de denúncia, como prova.

E é justamente num duplo espaço de interseção que se coloca o performer Arkadi Zaides. Ao posicionar-se no palco entre as imagens e o próprio público, atua como seu filtro e ampliador; ao situar-se entre o olhar subjetivo dos palestinos que produziram as imagens e os israelenses filmados, materializa em seu corpo a alteridade da situação.

Arkadi não só assume e performa sua fatia de responsabilidade no conflito – pois se coloca no lugar dos israelenses agressores – como também contribui para dilatar o testemunho ocular palestino

Em cena, o performer mostra as etapas de seu trabalho com a ajuda de um controle remoto manipulado durante a apresentação para exibir, rebobinar e congelar as imagens na tela. Num primeiro momento, Arkadi apenas assiste junto ao público trechos dos vídeos; depois, passa a experimentar com seu corpo algumas ações/movimentos de pessoas retratadas nos registros; após ter criado certo repertório de ações, passa a combiná-las entre si de modo a construir breves partituras cênicas.

O recurso poético de transformar atos de violência em movimentos de dança surge aqui como estratégia para dar visibilidade à dimensão cotidiana dos conflitos entre Israel e Palestina. Ao transformar-se simultaneamente em filtro e arquivo vivo atualizador das imagens que vê, Arkadi não só assume e performa sua fatia de responsabilidade no conflito – pois se coloca no lugar dos israelenses agressores – como também contribui para dilatar o testemunho ocular palestino.

A própria ação de transpor para o teatro imagens que muitas vezes permaneceriam invisibilizadas em arquivos cujo acesso público é raro e restrito já serviria, em si, como mecanismo de contra-informação, como contraponto à representação espetacular da violência que predomina nas representações desse tipo de conflito.

Mas além de mostrar, Arkadi também transforma as imagens com seu corpo, criando mecanismos semelhantes àqueles presentes na linguagem do vídeo, como o zoom e o looping, o que incita o público a tentar ver as imagens de um modo distinto como a enxergariam num contexto midiático.

Ao trabalhar a repetição dos gestos e ações dos israelenses, Arkadi nos faz experimentar performativamente o ciclo repetitivo e diário de provocações a que os palestinos são submetidos nesses territórios. Mais do que explorar imagens explicitamente violentas, a edição parece valorizar situações que revelam uma potência de agressividade, explicitando a tensão diária presente nesses territórios.

Num determinado momento do espetáculo, Arkadi passa a explorar também a reprodução das vozes das pessoas filmadas. Com o uso de aparelhos, ele cria um incômodo looping sonoro dos insultos verbais presentes nas imagens, construindo uma ambientação ruidosa que, na apresentação vista no Kunstenfestivaldesarts, reverberou inclusive na evasão de alguns espectadores da sala de teatro.

Ao projetar tanto na trilha sonora quanto em seu próprio corpo a acumulação dos insultos diários, Arkadi desloca o próprio público para a posição dos palestinos presentes por trás dos registros, nos fazendo perceber sensorialmente o aspecto cotidiano e atualizador dessa violência, a considerar que os vídeos apresentados começaram a ser produzidos em 2007.

Arkadi Zaides discute a perpetuação da violência  entre Israel e PalestinaGadi Dagon

Arkadi Zaides discute a perpetuação da violência entre Israel e Palestina

O fato de eleger imagens de crianças na maior parte das cenas apresentadas também reforça o caráter de perpetuação do conflito. Nessa escolha, fica evidente a transmissão geracional do sentimento de ódio, o que explica também a longevidade do confronto.

Não resta dúvida que a escolha por mostrar apenas imagens de israelenses diz respeito a um posicionamento político. Em conversa após uma das apresentações no Kunstenfestivaldesarts, Arkadi afirmou que a opção vem do fato dele ser israelense e querer colocar o questionamento em relação à sua própria comunidade. Não deixa de ser também uma maneira de equilibrar a balança das representações hegemônicas desse conflito, que tendem a vitimizar Israel e culpabilizar a Palestina.

De todo modo, o fato é que a estratégia de ceder câmeras aos palestinos tem contribuído para diminuir os índices de violência nas regiões onde o projeto foi implantado, como também informou o performer na conversa após a apresentação. E é ao transformar seu corpo em vértice da ação dos israelenses e da mirada dos palestinos que Arkadi Zaides não só elabora, por meio da dança, um jogo complexo de visibilidades, como também projeta no público sua fatia de responsabilidade sobre a perpetuação da violência, em seus mais diversos contextos.

.:. O site do Kunstenfestivaldesarts, aqui.

.:. O site de Arkadi Zaides, aqui.

.:. Crítica de Julia Guimarães e Verônica Veloso à nova obra da Neeedcompany apresentada no festival belga, aqui.

.:. Leia a análise de Kil Abreu sobre Arquivo no artigo Notas sobre estética e política na MIT 2015, aqui.

Ficha técnica:
Concepção e coreografia: Arkadi Zaides
Consultores de vídeo: Effi Weiss & Amir Borenstein
Arte sonora e dramaturgia de voz: Tom Tlalim
Supervisão artística: Katerina Bakatsaki
Assistência coreográfica: Ofir Yudilevitch
Iluminação: Thalie Lurault
Operador de luz: Yoav Barel
Diretor técnico: Pierre-Olivier Boulant
Produção: Yael Bechor e Arkadi Zaides
Apresentação: Kunstenfestivaldesarts e Théâtre Les Tanneurs
Coprodução: Festival d’Avignon, Centre de développement chorégraphique Toulouse/Midi-Pyrénées, Théâtre National de Chaillot (Paris), Centre national de danse contemporaine (Angers)

Julia Guimarães é pesquisadora, crítica teatral e jornalista. Doutoranda em Artes Cênicas pela USP, mestre em Artes Cênicas pela UFMG, graduada em jornalismo pela PUC-MG e com formação técnica em teatro pelo CEFART-MG, Palácio das Artes. É coeditora do site Horizonte da Cena (MG) e da revista Aspas (PPGAC/ECA/USP). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco. Tem entrevistas e artigos publicados em revistas como Sala Preta (ECA-USP), Pós (EBA/UFMG) e Urdimento (UDESC/SC). Foi repórter e crítica teatral dos jornais O Tempo e Pampulha (MG).

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