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Crítica

A liberdade de tomar Tchekhov pelas mãos

5.6.2015  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Ligia Jardim

Com efeito: quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Contudo, a espera do futuro já está no espírito. E quem poderá contestar que o passado já não existe? Contudo, a lembrança do passado ainda está no espírito.

(Santo Agostinho, As confissões)

O essencial e o que dá sentido à dramaturgia em Tchekhov é a percepção, em chave moderna, a respeito das formas precárias da existência. Ou, dizendo de outro modo, a consciência trágica que nasce no contraste entre a infinita capacidade de fabular futuros e a constatação – sem saída – da finitude. Mas, não só da finitude no sentido da morte física. O trágico não surge, como para os antigos, em acontecimento pontual. Está expresso na matemática das próprias “vidas vividas”, cujos balanços “preto no branco” feitos aqui e ali por quase todos os personagens apresentam saldos na negativa.

Basta um primeiro olhar para A gaivota e já dá para perceber que nenhuma entre as figuras centrais da peça escapa a essa consciência trágica da transitoriedade. Não é, como sabemos, tema novo. A essa altura a novidade está no fato de que Tchekhov promove, como poucos, a síntese poética que representa os caminhos do próprio teatro a partir dali (final do século XIX) até nós. Continua sendo autor dos mais visitados porque há correspondência efetiva com a época. Por exemplo, na razão ensimesmada do sujeito, que hoje talvez tenha chegado ao paroxismo, em personagens que parecem dispostos a acertos de conta pessoais e intransferíveis, diante de si mesmos mais que dos outros. Para um mundo (o nosso) em que as formas de comunicação promovem simulacros de diálogo que acabam redundando em monólogos, podemos tomar Tchekhov como um irmão, um contemporâneo. Nele há ainda a intuição, assimilada na forma dramatúrgica, sobre a necessidade de fazer o teatro representar um mundo em franca transformação (e quando não esteve?). O raio de pensamento ensaiava saltar dos assuntos privados aos temas da vida social. Daí as considerações recorrentes, ainda que na conta de devaneios dos personagens, sobre o tempo. Não só o da vida do sujeito em particular como também o tempo da humanidade pensada em termos futuros. Não é pouco se considerarmos a necessidade de síntese que o teatro pedia.

Na versão de Nelson Baskerville, a deixa dada pela dramaturgia, a necessidade de investigar o que significa o novo e por que ele importa, é ponto de partida para as invenções da encenação. Personagens são fundidos a outros, mas mesmo que se caminhe abrindo espaços autônomos procura-se não abandonar o texto de origem. Nesta zona de liberdade autoproclamada há um franco empenho em sublinhar as relações entre arte e vida indicadas por Tchekhov. Em qualquer caso, já não se trata de encenar de maneira razoável a discussão que está no texto. Trata-se de elegê-la como eixo de pensamento desta nova escrita que é a cena e de encontrar os procedimentos formais para fazê-lo. Por isso a discussão do teatro dentro do teatro é motivo que o encenador elege para, partindo do plano ficcional da peça, exibir seu plano material, “construtivo”. Não à toa o espetáculo inicia com os atores martelando, terminando de levantar o cenário – que é cenário tanto da peça que vamos começar a assistir quanto da outra, representada na moldura desta primeira. E assim por diante, na escolha e execução de uma cenografia assumidamente teatralista, sem compromisso com o realismo e, ao contrário, tributária da exibição das suas operações. Ou nos cortes e feições dos figurinos, em signos dúbios que tanto remetem a indumentárias “do passado” como também de agora. Todos estes são deslocamentos que nos dizem sobre uma cena ambiciosa no projeto de lançar pontes entre tempos diversos. Não são, salvo engano, apenas aproximações formais, mas tentativas de mediação também junto ao plano de sentidos da peça, de maneira que ele esteja fresco para nós.

Noemi Marinho entre Pascoal da Conceição e Rafael PrimotLigia Jardim

Noemi Marinho entre Pascoal da Conceição e Rafael Primot

Se o ponto de vista for o do trabalho com os atores o curioso é assumir, em forma, a vocação épica que a peça de fato tem. São personagens que estão na companhia de si mesmos, mas nem sempre a suportam e por isso se lançam para fora, em projeções idealizadas no mundo. Na encenação esse projetar não é escamoteado e por isso cria-se um campo de quase triangulação com a plateia. Imagens e subtextos são divididos em confissões íntimas que pedem a nossa presença. Para uma dramaturgia acusada de ensimesmamento é ótimo artifício, estimula nossa empatia diante daquelas almas esquisitas que, lá pelas tantas, descobrimos, perigam ser as nossas mesmas.

Essa tentativa de diálogo franco talvez revele o verdadeiro sentido de “atualização” do texto. É como se a encenação não estivesse interessada no que ele diz e sim no que ele pergunta. Por isso talvez seja ocioso procurar saber sobre as maneiras mais ou menos acertadas de colocar no palco o que hipoteticamente pensou o autor russo. De mãos dadas com ele, trata-se de intuir o que a forma organizada daquela maneira quer de nós, homens e mulheres de agora. Por isso é verossímil, por exemplo, que no trabalho dos atores as caracterizações sejam relativamente diferentes das que comumente concebemos para os personagens.

uma leitura possível sobre o sentido da encenação seguindo a ideia de que nela se faz a defesa de uma, vamos chamar, “ecologia da arte” ou, mais especificamente, do teatro

Nessa linha dos espelhamentos, não faz todo sentido que Arkádina (na versão de Noemi Marinho) caminhe sobre a afetação muitas vezes desmedida das celebridades atuais? (e não faltariam exemplos). Uma composição baseada na melancolia vaidosa diria mais certamente sobre a personagem segundo o projeto de uma montagem próxima ao contexto do autor. Mas, diria mais a nós, hoje, neste momento? O mesmo vale para o Dorn de Élcio Nogueira Seixas, que faz a réplica, com clareza crítica e distanciada, ao êxtase vago e às manchas de niilismo que pontuam a peça. E, sobretudo, ao Sórin de Renato Borghi, que em um trabalho de veterano desenha sem sobressaltos a amargura prosaica de um homem por quem a vida simplesmente passou como um reiterado cotidiano de funcionário público. Mas, sem sobredesenho, como quem concebe um velho aposentado de Copacabana tomando um café enquanto conversa com o vizinho na sacada. Todas essas não são simplificações, são traduções em sintonia fina, presentes, daquilo que está antes, fruto da época.

Talvez por isso não nos pareçam potentes o Treplev (ou Kostia) de Rafael Primot ou o Trigórin de Pascoal da Conceição, para ficar entre os personagens centrais. Em ambos não falta, necessariamente, a “expressão certa”, porque a essa altura ela não conta, mas sim uma concepção não genérica, uma composição atoral que permitissem ler traços gerais dos respectivos personagens sob perspectiva mais autônoma.

Renato Borghi com Élcio Nogueira e Thaís Medeiros ao fundoLigia Jardim

Renato Borghi com Élcio Nogueira e Thaís Medeiros ao fundo

Por fim, uma leitura possível sobre o sentido da encenação seguindo a ideia de que nela se faz a defesa de uma, vamos chamar, “ecologia da arte” ou, mais especificamente, do teatro. Junto aos lances existenciais, stricto sensu, há uma discussão sobre valores e funções da arte que só pode ser vista como idealização porque estamos, enfim, no mundo da mercadoria e em tese (daí a idealização) a arte não se deixaria capturar, sua natureza é autônoma. A estética, entretanto, para muitos de nós ainda segue sendo uma espécie de reserva moral dentro dos domínios do capitalismo. Então o que o espetáculo nos diz de dentro da sua produtiva idealização e melancolia é que a criação e a fruição livres são parte de uma ecologia ameaçada e, no entanto, são primordiais como o ar que se respira (“é impossível viver sem teatro”).

Somos então esses caras que moram nas grandes cidades e nunca vimos um dromedário de perto; mas, por capricho ou um vago senso de sobrevivência, intuímos que aquilo precisa existir. Porque a existência dessas formas de vida – de exceção ao tempo e em certa medida inúteis – figuram em si e projetam além de si os campos em que o desigual, o torto, o esdrúxulo, o que está fora da ordem, o que a época não consegue mastigar, têm interesse e importância. O dragão-de-komodo é capaz de acolher imaginários não dados e não ditos, acolher formas não ordinárias de fazer, ver, pensar o mundo. Esta encenação é, salvo engano, uma vibrante bandeira pelas existências poéticas que nos vitalizam.

O contraste interessante é que na peça isso é dito pelo avesso, qual seja, pela representação de vidas que escorrem. Assim, aquilo que já está intuído a partir de outro contexto por Tchekhov é sublinhado nesta versão. A imagem das duas gaivotas abatidas que encerra o espetáculo é significativa. Treplev, o escritor que não dá certo e que descobre, pouco antes de matar-se, que “não se trata de formas novas ou velhas, mas que não se pense em formas”; e Nina, a atriz caída ainda na juventude, mas, antes disso, a energia vital que vemos murchar no decorrer da peça são para Baskerville, não por acaso, as forças centrais do teatro. São estes os epicentros da experiência falhada diante do real, dessa rebordosa lírica do humano que a peça desenha. No contexto de Tchekhov, tratava-se de um quadro impressionista que flagrava o sentimento de uma passagem. Não só da Rússia carcomida e pré-revolucionária como também de toda a disposição moderna diante de um mundo cada vez mais inalcançável, de difícil totalização. E quanto a nós? A pergunta que esta encenação atual nos faz e a resposta que ela não nos dá – talvez porque não queira, mas muito provavelmente porque, como nós, não a tem – é sobre o sentimento que nos iguala e que pede formalizações precárias, tateantes, como esta que o espetáculo oferece, como quem ajuda a pensar a época. Tem a ver com aquele desconcerto citado por Santo Agostinho, diante do tempo e seus acontecimentos. Nomeá-lo é a tarefa e é isso que esta 1Gaivota, a seu modo, começa a fazer.

Serviço (segunda e curta temporada):
Onde: Teatro Cacilda Becker (Rua Tito, 295, Vila Romana, tel. 11 3864-4513)
Quando: Quarta a sábado, às 20h; domingo, às 18h. Até 7/6
Quanto: Grátis

Ficha técnica:
Autor: Anton Tchekhov
Adaptação e direção geral: Nelson Baskerville
Assistente de direção: Felipe Schermann
Com: Renato Borghi, Noemi Marinho, Pascoal da Conceição, Élcio Nogueira, Julia Ianina, Rafael Primot, Thais Medeiros e Erika Puga
Figurino: Marichilene Artisevskis
Cenário: Amanda Vieira e Nelson Baskerville
Direção musical: Daniel Maia
Desenho de luz: Wagner Freire
Projeto de vídeo: Raimo Benedetti
Direção de produção: Carla Stefan
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Idealização: Antikatártika Teatral (AKK)

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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