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Crítica

Da morte à vida, um carrosel vertiginoso

2.6.2015  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Leandro Mendoza

Atualmente, o termo orgânico é evocado com certa frequência para dar conta das obras de artes cênicas – especialmente aquelas que fogem do ‘mainstream’. De alguns anos pra cá, todos os processos criativos passaram a ser dessa maneira descritos pelos envolvidos: como ‘orgânicos’. Ou tiveram seus resultados finais assim carimbados pelos críticos e analistas. Como jargão, a palavra esvaziou-se. Apesar do desgaste, não poderia haver meio mais exato de classificar o que se passa no palco em Pals.

Neste espetáculo da companhia espanhola Cíclicus, nada entra gratuitamente em cena. Existe uma matemática na criação. Tudo foi calculado, medido, pensado. Ainda assim, não se poderia falar em artificialismo. Toda a poesia é concreta. Está em movimento, em ação. E deriva essencialmente dos corpos que vemos movimentando-se em cena. Orgânico é o adjetivo preciso para aproximar-se de Pals porque é do próprio ciclo da vida que se está a falar. Da ideia de uma transformação contínua daquilo que está vivo. Um carrossel vertiginoso, em que vida e morte não são antípodas.

Há declarada carga de metalinguagem na montagem. No tênue fio dramatúrgico que a conduz, surge a imagem de uma trupe de artistas que tenta elaborar o luto pela morte de um de seus integrantes. Um pequenino baú – urna funerária a guardar as cinzas daquele que se foi – está constantemente a pontuar as cenas. O que morreu era um deles. Não é possível simplesmente esquecê-lo. Para seguir adiante, há que se elaborar sua ausência como uma nova presença. Quando se acende o primeiro refletor, um dos intérpretes traz um poema. Será o único momento em que ouviremos alguém dizer algo. “Por que fugir tão longe/ Se nos sentíamos tão próximos /Quando para além do medo/Abraçávamos o mesmo /Eu a ti/ e tu a mim”. Daí em diante, sem palavras, o público acompanhará um caminho circular. Verá aqueles que vivenciaram a perda passarem da estupefação à raiva. Da raiva à aceitação. Da aceitação à celebração.

A madeira traz evidente o seu passado como árvore. (…) Poderá retornar a ser galho e ser escalada por homens e mulheres como atalho – mas também anteparo – para o céu

Em cima de uma carroça, sete artistas de circo partirão em busca de um novo caminho. Formado por um feixe de troncos e um par de rodas, o veículo primitivo será o material para todas as estruturas a serem criadas em cena. Incontáveis formas geométricas podem ser obtidas da combinação dessa quantidade limitada de elementos. Desmontada e reorganizada, a velha carroça é cenário para qualquer número circense. Ali, cabem cordas, argolas, trapézios. Qualquer sonho. O que foi organizado como máquina voltará a sua forma natural. A madeira traz evidente o seu passado como árvore. É contínua evocação da vida. Poderá retornar a ser galho e ser escalada por homens e mulheres como atalho – mas também anteparo – para o céu.

Pals é o título mais recente dessa companhia de circo fundada em 2008. Concebida e dirigida por Leandro Mendoza, a peça é uma coprodução entre o Grec, festival de Barcelona, e o festival de circo de Buenos Aires. A exaustiva investigação das possibilidades técnicas e criativas desse aparato de madeira garante um foco claro à obra. Seu sentido, porém, só se completa pelo delicado equilíbrio que provém de seu elenco. São artistas de gerações diferentes, de formações distintas. São corpos que não se assemelham. E, por isso, encontram um meio de coexistir: o mais pesado em contraponto ao mais leve, o mais ágil a suportar o mais velho. Jovens acrobatas e equilibristas, Asvin López Echari, Irene Estradé Niubó, Miguel García e Joel Martí Melero exibem as formas que esperamos encontrar no palco: fortes e delgadas. Mas sua arte só se dará no contato com a experiência de Miguel Ángel Fernández, clown com mais de 50 anos de carreira, ou com a força de Itziar Castro, uma atriz e cantora cujo corpo foge a qualquer estereótipo do gênero.

De perfis distintos, elenco espanhol  emana delicado equilíbrioLeandro Mendoza

De perfis distintos, elenco espanhol emana delicado equilíbrio

Oposições constroem e alimentam a dinâmica desse espetáculo. O natural e o mecânico. O velho e o moço. O forte e o fraco. A música e o silêncio. Mas essas, parece nos revelar a companhia Cíclicus, não são mais do que contradições aparentes. Ninguém está só. Nada é apenas uma coisa. Morrer e nascer podem ser pedaços de uma mesma viagem.

.:. Publicado originalmente no site do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, aqui. A instituição contratou um grupo de profissionais para uma ação da prática da crítica durante o evento, de 28/5 a 7/6/2015.

.:. O site da Compañía Cíclicus – Artesenia de Espetáculos, aqui.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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