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Crítica

Primeiras escolhas de uma trupe febril

2.6.2015  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Guilherme Maia

O que de imediato chama a atenção em Febril, espetáculo da companhia carioca Circo no Ato, é o empenho em totalizar na forma mais orgânica possível os muitos e diferentes instrumentos de linguagem que o grupo mobiliza.O inventário é ambicioso. Inclui desde as técnicas circenses propriamente ditas, que são a base da criação, até recursos da dança e do cabaré, costurados em uma narrativa teatral com gosto pelo trânsito entre gêneros e caracterizações diversas (a bufonaria, a farsa e o melodrama, por exemplo).

As referências à literatura de Gabriel García Márquez dão conta de oferecer alguns temas de trabalho que, entretanto, não ambicionam nenhum tipo de didática a respeito do escritor colombiano. Ainda que estejam enraizados em situações de seus contos e romances, querem apenas tomar como inspiração, para uso livre, aquela visão peculiar sobre a existência, que tateia sentidos reinventando os lances da vida ordinária através de um tipo de compreensão do mundo que, aqui e ali, se manifesta através do extraordinário. São motes sugestivos usados para criar o imaginário da cena e parte do roteiro poético que o espetáculo elege como seu núcleo de pensamento. Em outra frente abrem ótimas possibilidades para que o grupo ponha à prova o variado repertório que quer experimentar.

Quanto à reunião de tantas fontes, a tarefa não é nova, mas continua fresca, desafiadora na pauta dos artistas que se dedicam ao circo contemporâneo. E, por extensão, também aos que se interessam pelo apagamento cada vez mais recorrente das fronteiras entre as artes.

Diante deste desenho mais geral pode-se dizer que a Circo no Ato (em coprodução com o Circo Crescer e Viver) chegou a um espetáculo interessantíssimo. O fundamental é que o grupo consegue colocar os seus recursos para trabalhar a favor de um diálogo possível entre as partes. Não se trata de um pressuposto, algo indispensável à criação, claro. Cada obra inventa parte do seu próprio vocabulário e convenções. Mas, aqui, este era sem dúvida o norte do projeto. Então seria preciso escapar à cilada recorrente em propostas artísticas semelhantes: a de certo ensimesmamento quando da reiteração das técnicas, que acabam valendo por si, importando pouco aquilo que não está estritamente nos campos do desempenho.

uma moldura marcadamente teatral, no centro da qual as situações são desenvolvidas como pequenos núcleos narrativos

Nesse aspecto a melhor notícia é que a companhia parece ter intuído desde o princípio uma montagem que mesmo com materiais tão diversos não se satisfaz em apresentar-se como uma sequência de ‘números’, bem executados que sejam. Percebeu, por outro lado, que a unidade possível (é disso que se trata) pediria uma narrativa aberta o suficiente a ponto de suportar os diversos caminhos de linguagem que são colocados em jogo.

E o jogo de fato acontece. Nele são arregimentadas criativas soluções para o uso das técnicas do circo (malabarismo, acrobacias de solo e aéreas, portagem), mas sob uma moldura marcadamente teatral, no centro da qual as situações são desenvolvidas como pequenos núcleos narrativos. Nessa área a direção de Luis Igreja é exemplar e consegue levar a efeito a estratégia. Sobretudo porque ao pactuar os meios o faz de uma maneira que não impede, ao contrário, estimula a fluidez do espetáculo. E, mais importante, mantém a vitalidade da cena aberta. O teatro é assimilado em uma das suas vocações: a da comunicação direta com a plateia.

Talvez por isso, pela clareza dessas escolhas, não se justifique a divisão do espetáculo em dois atos, com intervalo de 15 minutos entre eles. Não havendo mudança significativa de cenário imagina-se que um entreato resolveria a passagem entre os dois blocos da montagem, que de fato são distintos (o primeiro tende ao cômico e ao farsesco, o segundo ao lírico e ao dramático).

De todo modo a quebra não esfria a qualidade do empenho. A encenação segue ‘febril’ – no sentido poético – como o sentimento latino que nutre a dramaturgia. Nesse momento é possível então confirmar, nas cativantes imagens com que o espetáculo se arredonda, que trata-se de um excelente, vigoroso princípio de caminho para esta trupe de jovens artistas cariocas.

.:. Publicado originalmente no site do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, aqui. A instituição contratou um grupo de profissionais para uma ação da prática da crítica durante o evento, de 28/5 a 7/6/2015.

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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