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Reportagem

Os atos de fala de Eliana Monteiro

27.7.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ligia Jardim

Ela foi servidora da Previdência Social durante 14 anos. Diz que executava bem suas tarefas numa agência da capital paulista, onde nasceu há 49 anos. O salário a satisfazia. Mas o serviço burocrático escudava a resistência em relacionar-se com o outro. Sociabilidade quase zero, inclusive no ambiente de trabalho. “Tinha muita dificuldade em falar com as pessoas. Faltava ar, dava vontade de desmaiar”, lembra Eliana Monteiro. A inclinação ao estudo e à prática do teatro decorreu, inicialmente, da condição de exercer essa fala. A arte veio como consequência.

O plano pessoal é acessado quando Monteiro contextualiza sua aproximação à obra de Franz Kafka (1883-1924). “Ele chegou a escrever que passava horas na janela, olhando a rua, por incapacidade de se inserir na vida”, diz a diretora do Teatro da Vertigem, mais conhecida como braço direito, leia-se assistente de direção de Antônio Araújo ou mesmo diretora de cena em algumas produções.

Em cartaz no galpão do Sesc Pompeia, O filho é a segunda direção que assina sozinha em 17 anos de vínculo com o Vertigem, núcleo com 23 anos de história. O texto de Alexandre Dal Farra (integrante do Tablado de Arruar) é livremente inspirado em Carta ao pai (1936), tida como um acerto de contas com a opressão paterna intravenosa em toda a escrita do autor tcheco.

A primeira direção solo de Eliana Monteiro no currículo do grupo foi em Kastelo (2010), outra livre adaptação, agora do romance inacabado O castelo (1922), sob assinatura de Evaldo Mocarzel (ela ainda fez codireções nas intervenções urbanas A última palavra é a penúltima 2.0 (2014, recriação da obra de 2008) e Mauísmo (2011).

Kastelo dizia respeito ao pragmatismo das sociedades capitalistas regidas pelas leis de e do mercado em todos os níveis da existência. O alpinismo social ditado pela acumulação e pela hiperespecialização profissional. A secretária, o motoboy, a telefonista, o arquivista, enfim, a base da pirâmide tentava galgar um lugar ao sol entrando pelos janelões do terceiro andar do prédio da unidade do Sesc na avenida Paulista (atualmente em reforma), um labirinto vertical com direito a cenas externas – o público as acompanhava de dentro de um dos andares.

Em nosso contexto, somos cada vez mais convidados a não exercitar o músculo da subjetividade. Estamos virando tagarelas

O filho deixa o andaime da sobrevivência para abordar os laços familiares, o caráter forjado sob o mesmo teto, reflexo das dilacerações e precariedades de base.

Em vez do conflito direto, a relação pai e filho original desdobra-se em novas representações. Dal Farra cria uma saga em que os papeis são colocados em jogo. As figuras paterna e filial embaralham-se com o a do avô. Nas atuações em cadeia, estão Antônio Petrin (pais e avô), Sergio Pardal (filho e pai) e Rafael (neto e filho). Todos toureados por mulheres de personalidades fortes, pelas atrizes Mawusi Tulani e Paula Klein.

“Para mim, essa família, mas não apenas ela, às vezes te passa pelo sangue não só a hereditariedade, mas uma coisa viral. Essa discussão hoje em torno do conceito de família, família hetero, família, gay, tem a ver com isso. Na verdade, o que está em crise é a instituição família. É essa questão filosófica de humanidade que estamos querendo discutir”, afirma.

Se em Kastelo ninguém entrava, em O filho ninguém sai. O espaço cenográfico concebido por Marisa Bentivegna materializa um depósito desdobrado por vários nichos: a casa, o boteco, a rua, e assim por diante. “Ao longo da peça, que se passa em 20 anos, há uma ação de empilhamento. O Coro leva e traz objetos, pedaços de móveis de famílias que não deram certo”, afirma Monteiro. O desenho de luz de Guilherme Bonfanti acentua a sombra em primeiro plano desses seres e coisas amontoados.

Para fazer uma analogia com o papel do Estado, os pais no comando da estrutura de poder dos governos agem feito filho em suas inconsequências, raciocina.

“Se Kastelo mostrava a inserção a todo custo nas grandes corporações, O filho toca no tipo de família que está sendo pensada, do cara que não se adapta a trabalho nenhum.”

Para Monteiro, o Brasil está se tornando cada vez mais “um exército de ajudantes gerais”. Para contrastar a defasagem educacional, lembra que o jovem Kafka era um estudioso compulsório porque na época dele o sistema educacional assim o pedia. Sua língua natal era o tcheco, mas falava e pensava em alemão. “Em nosso contexto, somos cada vez mais convidados a não exercitar o músculo da subjetividade. Estamos virando tagarelas. A maioria dos nossos políticos fala feito papagaio”.

Conhecer a cidade onde Kafka viveu tornou-se um dado afetivo e efetivo no trabalho com a equipe. A diretora visitou Praga no ano passado e se diz contaminada, inspirada pela geografia, as vielas, as janelas e até o cemitério: ela e alguns artistas do Vertigem chegaram a ler trechos de Carta ao pai no túmulo do escritor.

Eliana Monteiro e o dramaturgista Antônio Duran, de ‘O filho’

Como se disse, a intimidade de Eliana Monteiro com Kafka vem da timidez, sentimento com o qual aprendeu a negociar na vida, com mais segurança, a partir da aproximação com o Vertigem. E o encontro se deu justamente como espectadora em O livro de Jó (1995), encenado em alas hospitalares desativas. Na ocasião, fazia o curso de intérprete no então Teatro Escola Célia Helena. Três anos depois, em 1998, estava incorporada ao processo de Apocalipse 1,11.

Além do Célia Helena, Monteiro formou-se em artes cênicas pela Universidade São Judas e em direção teatral pela Escola Livre de Teatro de Santo André. Acúmulo que fez a encenadora abraçar também a condição de orientadora artístico-pedagógica de escolas e grupos. De 2008 a 2014 ela coordenou o núcleo de encenação do Programa Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Atualmente, está à frente do projeto de espetáculo em cindo unidades do Fábrica de Cultura, iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura, espreitando o universo de 60 jovens envolvidos em criações na veia. Trabalho de ourives que a coloca em relação com dezenas de filhos e pais diretos e indiretos, como na ciranda da peça. “Eu amo esse contato com a molecada, sempre dominantemente da periferia. É uma forma de por areia na engrenagem. Moleque que não falava, quando vê, está começando a falar.”

.:. Leia as críticas de Beth Néspoli e Maria Eugênia de Menezes sobre O filho.

Serviço:
Onde: Sesc Pompeia – galpão (Rua Clélia, 93, São Paulo, tel. 11 3871-7700)
Quando: Quinta a sábado, às 19h30; domingos e feriados, às 18h30.
Quanto: R$ 12 a R$ 40

Ficha técnica:
Texto: Alexandre Dal Farra
Direção: Eliana Monteiro
Dramaturgismo: Antônio Duran
Com: Antônio Petrin, Mawusi Tulani, Paula Klein, Rafael Lozano e Sergio Pardal
Desenho de luz: Guilherme Bonfanti
Cenografia: Marisa Bentivegna
Figurino: Marina Reis
Trilha sonora: Erico Theobaldo
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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