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Reportagem

Prisioneiros da espetacularização

19.7.2015  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Regina Protskof

Imagine um reality show produzido por canal de TV, que, em vez de “brothers” ou “sisters”, leva ao espectador presos condenados. No entanto, os participantes aprisionados jamais cometeram algum crime. Esse é o mote do espetáculo Concentração, em cartaz no Teatro de Arena. O projeto marca o retorno da diretora teatral Ana Paula Zanandréa a Porto Alegre, após um longo período no exterior.

Livremente inspirado na novela Ácido sulfúrico, da autora belga Amélie Nothomb, o texto, sem tradução para o português, chegou às mãos da diretora quando cursava o mestrado em teatro na Europa. Na época, Ana Paula fora convidada para fazer assistência de direção de outro texto de Amélie, Sabotagem amorosa, mas não pôde dar continuidade ao projeto. “Gostei muito da obra dela, e não prosseguir me deixou uma frustração, então resolvi montar um texto de Amélie.” Sabotagem amorosa é uma autobiografia sobre a vida da autora dos 3 aos 6 anos, período que ela viveu em um gueto para estrangeiros na China, devido aos seus pais serem diplomatas.

Ácido sulfúrico é uma ficção. A trama gira em torno da personagem Zena (Priscilla Colombi), uma das responsáveis por vigiar os prisioneiros. Em um enredo paralelo, ela se apaixona pela prisioneira Helena (Miriã Possani).

Ela tem um estilo de linguagem muito direto em alguns momentos e, em outros, tem elaborações filosóficas

Os atores interpretam, no total, cerca de 15 personagens e mais 18 tipos diferentes de públicos. “Ela tem um estilo de linguagem muito direto em alguns momentos e, em outros, tem elaborações filosóficas muito intensas. Amélie também não trabalha com descrição imagética, descreve as sensações das personagens”, conta Ana Paula.

A diretora salienta que a novela foi apenas um ponto de partida para o grupo, que inseriu na trama outros personagens, diálogos e ambientação. Ao invés de um campo de concentração – como no texto original -, a peça é ambientada em uma fábrica têxtil. Os participantes estão sobre constantes violências e trabalhos forçados, e seu padecimento é transmitido ao vivo em cadeia nacional. Os prisioneiros que não cumprem com a meta de produção são eliminados, tendo o público (os próprios atores) o poder de escolha sobre o método de execução utilizado.

A peça questiona a espetacularização da violência, o poder de manipulação das mídias e a conivência da sociedade com o sistema violento em que se vive. “A obra da autora deixa muito clara a opinião dela: de que o público é o culpado. Nós tentamos diluir um pouco isso. Para nós, todos são vítimas e culpados, tanto o público que consome quanto os organizadores que criam o programa e a mídia que explora a situação para vender”, explica.

Cena de 'Concentração', direção de Ana Paula ZanandréaRegina Protskof

Cena de ‘Concentração’, direção de Ana Paula Zanandréa

Da experiência do mestrado, Ana Paula, que atualmente é professora substituta do Departamento de Arte Dramática da Ufrgs, trouxe o cuidado com a palavra. “Quando realizamos uma dramaturgia em processo parece que o texto fica por último, isso foi uma coisa que eu aprendi na Europa: o tratamento das palavras e a forma como se diz o texto”, conta ela, ressaltando que muitas cenas se passam pelo uso da palavra. A dramaturgia foi criada em processo juntamente com os atores Frederico Vittola, Miriã Possani, Pedro Nambuco, Priscilla Colombi e Sofia Vilasboas.

Esse é o segundo espetáculo de Ana Paula. O primeiro, chamado O país de Helena, era uma trilogia livremente inspirada nos contos de Eduardo Galeano sobre a vida humana e suas diferentes fases reveladas sob a ótica de uma mulher, na qual uma das atrizes também trabalhou. “Assim como na outra peça, neste espetáculo desenvolvemos bastante o trabalho físico”, comenta Priscilla Colombi.

Segundo a diretora, os dois trabalhos são bem diferentes, mas há pontos em comum. “Vejo nas duas montagens a questão dos atores estarem em cena quase o tempo todo e haver uma troca intensa de cenas. Gosto de trabalhar com o nível de atenção dos atores”, afirma, traçando um paralelo sobre as duas obras.

O projeto foi contemplado pelo Edital Sedac de Incentivo à Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena de Porto Alegre. Entretanto, até o fechamento desta edição, o contrato não havia sido assinado e o grupo ainda não recebera os R$ 45 mil destinados à montagem do espetáculo.

.:. Publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 1, em 16/7/2015.

Serviço:
Onde: Teatro de Arena ( Avenida Borges de Medeiros, 835, Centro, Porto Alegre, tel. 51 3226-0242)
Quando: Sexta a domingo, às 20h. Até 9/8.
Quanto: R$ 30

Ficha técnica:
Direção: Ana Paula Zanandréa
Elenco: Frederico Vittola, Miriã Possani, Pedro Nambuco, Priscilla Colombi, Sofia Vilasboas
Dramaturgia: O grupo
Figurinos: Rafael Körbes
Iluminação: Fabiana Santos
Trilha sonora: Jimi Melo
Pesquisa de trilha sonora: Priscilla Colombi
Cenografia: Yara Balboni
Pintura do cenário e adereços: Adalberto Almeida
Desenvolvimento de aplicativo: Ana Paula Zanandréa
Assessoria de imprensa: Liane Strapazzon
Conteúdo e divulgação redes sociais: Bruna Lauermann e Paula Hartz
Filmagem: Amanda Gatti e Pedro Mendes
Produção executiva: Joice Rossato
Arte gráfica: Pingo Alabarse
Fotografia: Regina Protskof
Produção: AZPAS Produções e Aresta Cultural

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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