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Crítica

Dialética da fome

20.8.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação/Secom Itajaí

Em Itajaí

A cultura popular “de raiz”, como se diz, será sempre uma inspiração aos criadores realmente dispostos ao bom combate. Ela não é para os fracos que a veem como atalho facilitador. Não à toa, a tradição brasileira é repleta de autores que a têm pelo viés da comédia pensada e curtida na sofisticação. Basta citar Martins Pena, Artur Azevedo e Ariano Suassuna.

No teatro de rua, então, o gênero é hegemônico quando se trata de dialogar com essas fontes: drama e tragédia raramente confluem para o espaço público. E quando a química (ou a quimera) acontece, o resultado é sempre memorável. Aos exemplos: Romeu e Julieta (1992), do Grupo Galpão (MG); A brava (2007), da Brava Companhia (SP); O amargo santo da purificação: uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella (2008), da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS); e O encontro de Shakespeare com a cultura popular: Romeu e Julieta (2010), do Grupo Garajal (CE).

Acrescente-se à lista pessoal (e informal) A pereira da Tia Miséria (2010), do Núcleo Às de Paus, drama inspirado numa das narrativas de domínio público do livro Contos populares espanhóis (2005), organizado por Yara Maria Camillo.

Quem adaptou a peça foi Luan Valero, que prima pela estruturação em versos e não violenta a rima. Valero cumpre com estilo, crítica e beleza a tarefa de contar uma história em perspectiva épica, sem facilitar a vida do espectador e tampouco desprezar potencialidades nas cores e simbologias da palavra, está que nem sempre irradia poeticamente à altura ao ar livre.

O retrato humano sem retoques e seus borrões históricos caracterizam o materialismo dialético comungado, também, em versos e cenas de horror. (…) é uma experiência poética dura, feito as pedras de João Cabral de Melo Neto

No semicírculo da praça-calçadão, os atores valorizam a oralidade-musicalidade mesmo com a incidência do sol em seus rostos durante a apresentação no fim da manhã. Substituições ocorridas em cinco anos de estrada (notamos pelo menos duas) não comprometeram a qualidade do conjunto que assina justamente a encenação coletiva.

A espacialidade cenográfica é delimitada pelo quintal e arvore-título ao centro, feita de material reciclado gerador de rusticidade alinhada ao mote universal da fome. Ela é personagem oculta, o filho da Tia Miséria, batizado Fome, que ganhou o mundo e ainda não voltou. Enquanto o espera, ao lado do cão Sem Nome, ela cuida das peras. A natureza provê os frutos num vilarejo marcado pela carestia. O passatempo de dois moleques da vizinhança é trepar na árvore para comer quando ainda nem é o tempo de colheita.

Do conflito básico com esses peraltas, à chegada de um andarilho que lhe abrirá uma janela de esperança no presente e no futuro, além do embate com a figura da Morte, os fatos sugerem um contexto medieval refletido na visualidade e um nexo absolutamente atual do problema-tema perpetuado no curso da humanidade.

Cena de 'A pereira da Tia Miséria', cinco anos na estradaDivulgação/Secom Itajaí

Cena de ‘A pereira da Tia Miséria’, cinco anos na estrada

Em seu primeiro espetáculo, os jovens criadores da trupe forjada na Escola Municipal de Teatro de Londrina conseguem a proeza de capturar o interlocutor, mesmo o desavisado pedestre ou o ciclista que cortam o miolo da cena, distraídos. Independente do assunto e da precariedade material – afinal, estamos falando da pobreza extrema –, a fabulação enreda espectadores de todas as idades.

A moral não vem como discurso ou lição, mas perceptível na materialidade da arte que a Ás de Pau dá a ver. A destreza técnica em equilibrar-se em perna-de-pau ou nas quatro “patas-de-pau” do cachorro confere um clima de suspensão em que tudo está na iminência de acabar ou espatifar-se no chão. Por outra, os atravessamentos perpendiculares dos personagens ou figuras que avançam ou adentram as laterais para além da multidão também são abre-alas da força sertaneja, quixotesca.

O retrato humano sem retoques e seus borrões históricos caracterizam o materialismo dialético comungado, também, em versos e cenas de horror. A pereira da Tia Miséria é uma experiência poética dura, feito as pedras de João Cabral de Melo Neto em Morte e vida Severina. Mais um espirituoso teatro de rua para a galeria da memória, um sopro vindo das terras vermelhas do norte paranaense.

.:. Escrito no âmbito do IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, de 7 a 16/8, em Itajaí. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.

Ficha técnica:
Direção: Núcleo Ás de Paus
Texto: Luan Valero
Com: Adalberto Pereira, André Demarchi, Camila Feoli, Rebeca Oliveira de Carvalho, Rogério Costa e Thunay Tartari
Concepção e direção musical: Eric D’Ávila
Figurinos: Alex Lima
Cenografia e bonecos: Rogério Costa e Alex Lima
Contrarregra: Artur Junges
Produção: Núcleo Ás de Paus

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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