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Crítica

Erupções da fala e da pele com o Teatro Nu

22.8.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Humberto Araújo

Em Brasília

Craque nos jogos de linguagem que não destronam a palavra, sempre coronária, Heiner Müller aplica em Quarteto diálogos mais próximos da conversação solta, de modo não convencional, do que a estrutura dramática pode sugerir. Nesses diálogos as falas têm efeito cortante e seus enunciadores principais, amantes, transmitem uma consciência de si e do poder manipulador de suas presenças no mundo, reflexos de classe, sem dúvida, e do caráter ambíguo.

Na montagem do Teatro Nu, de Salvador, as erupções não são evidenciadas apenas por meio da língua, mas pipocam na pele daqueles que a habitam. Se o sexo é a pulsão sobreposta à vida e à morte pelos personagens, por vezes tensionadas eroticamente, a encenação de Gil Vicente Tavares tece justamente esse roçar de peles. No caso, a epiderme descamada, ferida, infecciosa, metáfora do cair de máscaras sociais em sentido íntimo e público.

Sobrevêm os jogos de linguagem, o contexto histórico e o estrato político ungido por Müller na apropriação do romance As relações perigosas, de Choderlos de Laclos. Escrita pelo autor alemão nove anos antes do Muro de Berlim desabar, a peça sugere uma hipotética época de fundo, algo entre as vésperas da Revolução Francesa e as ruínas de uma Terceira Guerra Mundial…

Tavares põe essa visão sistêmica em segundo plano e desce ao indivíduo desnudo no campo dos afetos, da sexualidade. O espetáculo dá margem para o espectador pensar a paradoxal relação destrutiva entre a marquesa de Merteuil e o visconde de Valmont, bem como a subjugação da sobrinha da primeira, virgem e usada como moeda de troca para que Valmont não fique com a terceira mulher dessa trama, também desafeto de Merteuil.

Marcelo Praddo e Bertrand Duarte têm a empatia e o distanciamento para transitar os quatro personagens e prender a atenção ao texto denso, a despeito das ironias e pensamentos faiscantes de Müller

É perceptível como a violenta coisificação do sujeito sob o véu do desejo conecta com a tendência à volatilidade dos amores contemporâneos. A opção pela austeridade formal torna as incongruências mais agudas. A tentação ao barroco, tão cara à cultura baiana, cede à limpeza nos desenhos dos figurinos e é sutil na maquiagem corporal e no visagismo (de face). Também há economia na espacialidade cenográfica centrada em objetos geométricos alusivos a janelas e portas. A disposição da cena em arena aproxima o espectador dos poros dos atores.

Marcelo Praddo e Bertrand Duarte têm a empatia e o distanciamento para transitar os quatro personagens e prender a atenção ao texto denso, a despeito das ironias e pensamentos faiscantes de Müller. Escaneados pelo olhar do público em 360 graus, eles têm o corpo como veículo capital para contrapor criticidade aos personagens. Aliás, estão mais perto da acepção de figuras devido ao estado performativo permanente. É na esteira da carnalidade que expressam a misoginia e as seduções hetero e homoeróticas sem fixá-las, possibilitando um rico painel do gênero humano.

Bertrand Duarte e Marcelo Praddo em 'Quarteto' Humberto Araújo

Bertrand Duarte e Marcelo Praddo em ‘Quarteto’

Tamanha capacidade da equipe do Teatro Nu em tourear esse material polifônico desliza em detalhes decisivos. Na atuação: gestualidade e entonação. As mãos abusam ao ilustrar as intencionalidades. E as vozes apresentam pouca inflexão considerando o leque. Gesto e fala dão corda para uma coreografia e uma musicalidade involuntárias e, quiçá, indesejadas, discrepando a meticulosidade estética. No desenho de luz: o frenesi de mudanças e cores destoa da sobriedade bem resolvida na condução das formas e ideias.

Quarteto é um projeto que religa Tavares ao início da carreira, 15 anos atrás, quando elegeu a mesma peça como espetáculo de conclusão de curso na UFBA. Ele também é dramaturgo e, no conjunto da consistente e profícua obra, criador referencial na produção de Salvador, sobretudo nos nove anos do Teatro Nu.

.:. Escrito no âmbito do 16º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, de 18 a 30/8, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.

Ficha técnica:
Texto: Heiner Müller
Direção: Gil Vicente Tavares
Direção de produção: Fernanda Bezerra
Elenco: Marcelo Praddo e Bertrand Duarte
Cenário e Luz: Eduardo Tudella
Figurino e adereços: Rino Carvalho
Música: Luciano Salvador Bahia
Coreografias: Barbara Barbará e Jorge Silva
Assistência de direção: Bárbara Barbará
Operação de Luz: Pedro Dultra
Operação de som e Maquiagem: Barbara Barbará
Cenotécnico: Filipe Cipriani

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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