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Artigo

Raymond Roussel e o teatro

5.9.2015  |  por Dirce Waltrick do Amarante

Foto de capa: Divulgação

A obra do francês Raymond Roussel (1877-1933) vem chegando aos poucos ao Brasil, em parte graças à Editora Cultura e Barbárie, que tem investido nos textos herméticos desse escritor excêntrico que, embora tenha influenciado grandes escolas do século XX, ainda está distante dos leitores “comuns”. De Roussel, a editora já publicou Locus solus e, agora, com novo selo, Armazém, acaba de publicar dois novos títulos: Como escrevi alguns dos meus livros e Piparote.

A respeito de Piparote, publicado por volta de 1900, Roussel dizia que esse teria sido o único livro que verdadeiramente o satisfez.

Piparote é um conto que se passa no palco. O narrador relata um espetáculo de alguns amigos a que certa noite foi assistir. Ele mesmo teria colaborado na elaboração da peça compondo alguns de seus versos. Na verdade, o narrador queria ver “o efeito que produziam aquelas rimas devidas à minha colaboração”. Roussel, na figura do narrador, seu alter ego, sabia que as palavras quando oralizadas ganhavam outra significação.

enquanto a assistência vaiava e assobiava as representações de ‘Locus solus’ e ‘Impressões de África’, sentados na plateia, maravilhados, estavam Guillaume Apollinaire, Francis Picabia e Marcel Duchamp

Piparote é quase um conto de fadas à moda de Sonhos de uma noite de verão. Muitos estudiosos acreditam que se trataria de história para crianças se não houvesse um adultério. Piparote é o nome de uma bruxa que ajuda a personagem Penacho a se vingar de Mefisto, seu desafeto, com quem sua mulher tem um caso extraconjugal. Vale lembrar, porém, como afirma Fedra Rodríguez, estudiosa e tradutora do autor, que “sob o pano de fundo de um simples enredo com duelos entre espadachins se oculta uma curiosa manipulação de palavras que resulta em homofonias, por entre as quais se expressam as vozes dos personagens”. Os jogos linguísticos de Roussel, diria, muitas vezes se sobrepõem ao próprio enredo e criam uma atmosfera nonsense e enigmática.

Em Piparote, Roussel descreve cenas teatrais inteiras como, por exemplo, o momento de “um gracioso balé”: “Bailarinas e bailarinos saíam de todos os cantos enquanto o palco se iluminava. Alguns chegavam pela grande lareira, outros pelo armário, abrindo portas bruscamente, motos surgiam do assoalho. Todos e todas tinham na mão uma agulha gigantesca do tamanho de uma bengala, da qual pendia um fio de seda vermelho tão grosso quanto uma corda”.

Parece-me, portanto, que antes mesmo de enveredar pelos palcos, como Roussel fez depois de sucessivos fracassos literários, ele já flertava com o teatro.

Roussel numa mina da cidade alemã Berchtesgaden, 1926Reprodução

Roussel em mina alemã de Berchtesgaden, 1926

Cabe lembrar que Roussel via no teatro uma possibilidade plausível de se aproximar do público, como ele nos revela em sua obra póstuma Como escrevi alguns dos meus livros.

Segundo o escritor, um amigo, depois de ter lido fragmentos de um dos seus livros, Impressões da África (1910), em voz alta, percebeu que se poderia extrair dele uma “peça extraordinária”. De Piparote, a meu ver, também se pode extrair facilmente uma peça.

O percurso de Roussel pelo teatro não foi bem-sucedido. A estreia de Impressões da África, em 1912, no teatro de Fémina, foi “mais do que um insucesso, foi uma indignação geral”; e, prossegue o escritor, “tratavam-me de louco, vaiavam os atores, jogavam moedas no palco, cartas de protesto eram endereçadas ao diretor”.

Apesar disso, Roussel, que era de família rica, investia grandes fortunas em apresentações grandiosas e atores pagos a preço de ouro e acima da média, como afirma François Piron. Ainda assim, a crítica era mordaz.

A respeito da montagem de Locus solus, os críticos franceses teriam afirmado: “centenas de milhares de francos são esbanjados para produzir Locus solus”. E só viam sentido nisso imaginando que “o Sr. Raymond Roussel seja simplesmente um misantropo cínico que quis demonstrar até onde o poder soberano do dinheiro pode fazer pouco do público […]”.

Mas, lembra Alexandra Prado Coelho, “enquanto a assistência vaiava e assobiava as representações de Locus solus e Impressões de África, sentados na plateia, maravilhados, estavam Guillaume Apollinaire, Francis Picabia e Marcel Duchamp. Os três artistas entendiam o que estavam vendo. E mais: o universo delirante que se apresentava aos seus olhos haveria de marcar profundamente a forma de encarar a arte daqueles que foram nomes maiores do Surrealismo”.

A propósito da estreia de Locus solus no palco, Roussel conta que “[…] houve um tumulto indescritível. Foi uma batalha, pois desta vez, se quase toda a sala estava contra mim, eu tinha ao menos um grupo de partidários muito calorosos [citados acima]”.

Ainda assim, diz Roussel, “longe de ser um sucesso, foi um escândalo”; contudo, o “caso gerou um bocado de barulho e me tornei conhecido do dia para a noite”.

De fato, Roussel lembra que, naquele ano, sua peça foi encenada em vários teatros e teria inspirado pelo menos duas outras: “Cocus solus (que, mais feliz que a minha, sua madrinha ultrapassou as cem apresentações) e Blocus solus ou os bastões nos Ruhs“.

Roussel imaginava que o insucesso de suas peças se devia ao fato de elas não terem sido escritas para o teatro, mas de serem textos adaptados para o palco. O escritor passou a se dedicar, então, aos textos dramatúrgicos. Escreveu A estrela na testa e Poeira de sóis, dois novos fracassos escritos especialmente para o teatro.

Mas, concluiu que, embora suas peças não tenham sido compreendidas, à medida que a cortina caía e as pessoas gritavam ironicamente “o autor… o autor…”, ele angariava novos “fãs” e “a cada uma das minhas manifestações, eu via pessoas novas se juntarem a mim”. Eram poucas pessoas, aliás Roussel teve também poucos leitores, “mas que leitores!” (como diz Jean-Jacques Pauvert): Marcel Proust, André Breton, Paul Éluard etc.

Desconheço traduções das peças de Roussel para o português no Brasil. Fica, no entanto, o convite para investir num escritor que insistiu em se aproximar do teatro apesar de todas as críticas “detestáveis”.

Talvez ele fosse – e ainda seja – muito ousado para a época.

Capa de 'Como escrevi...'Reprodução

‘Como escrevi…’

Serviço:
Piparote
Tradução: Fedra Rodríguez
Cianotipia: Marina Moros
Editora Cultura e Barbárie | selo Armazém
40 páginas, R$ 50

Como escrevi alguns dos meus livros (bilingue)
Tradução: Fabiano Barboza Viana
Prefácio: Joca Reiners Terron
Posfácio: Claudio Willer
Editora Cultura e Barbárie | selo Armazém
80 páginas, R$ 50

Locus solus
Tradução e apresentação: Fernando Scheibe
Prefácio: Raul Antelo
Posfácio: Pierre Bazantay
Capa e projeto gráfico: Marina Moros
Editora Cultura e Barbárie | pseudo- coleção de literatura
344 páginas, R$ 36

.:. Leia dossiê a respeito da obra de Raymond Roussel publicado pelo panfleto político-cultural Sopro, número 98, novembro de 2013.

Vídeo sobre o projeto italiano Raymond Roussel, do professor de cenografia e set designer Quinto Fabriziani e do diretor Giancarlo Nanni, junto à Accademia di Belle Arti di Roma, a partir de um trabalho realizado no Teatro Vascello, também em Roma. Postado em 2008.

Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.

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