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Crítica

Metamorfoses de um diabo florentino

26.10.2015  |  por Patricia Freitas

Foto de capa: Fabio Pagan

Primeiramente, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez a mais extremamente cultual que já existiu. Nada nele tem significado que não esteja em relação imediata com o culto, ele não tem dogma específico nem teologia. O utilitarismo ganha, desse ponto de vista, sua coloração religiosa.

Walter Benjamin

A encenação de A mandrágora pelo Grupo Tapa abre um apanhado de questões pertinentes ao nosso tempo e lugar. Não à toa que, logo na primeira cena, a plateia entra completamente no jogo cômico mobilizado pela própria trama dramatúrgica de Maquiavel e catalisado pela atuação dos atores do grupo. O riso, no entanto, é muitas vezes revelador do sintomático incômodo que sentimos ao acompanhar a trajetória das personagens: a dissolução das barreiras entre o plano ético e o utilitarismo das relações sociais preconizada pelo autor é reelaborada criticamente pelo Tapa e assume sua feição ideológica perversa. A direção de Eduardo Tolentino e o trabalho do grupo produzem, dessa forma, um riso que esconde em si o desconforto e a amargura do diagnóstico social, estimulando inteligentemente o pensamento crítico e a inquietação reflexiva em nossos tristes trópicos.

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Na montagem em cartaz no Teatro Aliança Francesa, em São Paulo, um quadro de Maquiavel ocupa um lugar de destaque, pendurado estrategicamente a certa altura no fundo do palco. Parece mirar a plateia e, assim, tecer um jogo paralelístico entre os oito personagens de A mandrágora (Ligúrio, Lucrécia, Calímaco, Frei Timóteo, Nícia, Siro, Sóstrata e uma mulher), habitantes de Florença, e os espectadores que observam a ação. Do mesmo modo que as personagens incorporam alguns tratados do filósofo sobre a conquista do poder frente à consolidação burguesa no século XVI, a plateia também não deixa de ser investigada, mas agora pelo grupo Tapa. O interesse parte, então, em historicizar a crença no homem prático, liberto de qualquer moralismo, cujas conquistas dão-se unicamente pela via do intelecto e da vontade.

Se atentarmos ao texto original, veremos que lá está claramente posta uma crítica à alta burguesia. Maquiavel, que chegou a ser preso e torturado durante a dinastia Médici, interrompe brevemente seus escritos filosóficos e escolhe a forma teatral como a mais apropriada naquele momento para expor sarcasticamente as questões locais: “Atentai no cenário,/ tal como se apresenta:/ esta é a nossa Florença/ e a coisa é de se morrer de riso.”[i]

O importante é que a consciência de classe, presente em maior ou menor grau em todos os personagens, engendre brechas de escalada social, subvertendo, mesmo que timidamente e por debaixo dos panos (ou dos lençóis!), a ordem estabelecida

Em termos gerais, a peça evidencia um quadro social ainda em formação, representado pelo jovem, belo e rico Calímaco que se opõe ao velho, estúpido, mas também rico Messer Nícia. Este, casado com a cobiçada Lucrécia, comporta-se à maneira de um nobre e, por excesso de apreço ao nome e fortuna conquistados como famoso jurista, será capaz de qualquer coisa para ter um herdeiro. Já Calímaco, movido pela súbita paixão por Lucrécia, obtém o auxílio de Ligúrio, Siro e Frei Timóteo, para enganar o velho Nícia, aconselhando-o a conceber o adultério como única solução ao caso.

Os arranjos promovidos pelos criados e pelo frade, que objetivavam a concreção dos desejos de Calímaco, passam a demonstrar outra faceta no momento em que deflagram a instrumentalização das relações tanto familiares, quanto clericais. Observa-se que o auxílio prestado não vale por si só, mas somente porque obedece a uma via de mão dupla, geralmente mediante um generoso pagamento em ducados. Nesse ponto, o comportamento de Frei Timóteo, personagem que auxilia na condução da ação com intervenções entre as cenas, é marcante de uma nova “ética”: consciente de que a Igreja havia perdido grande parte de seu poder político, o frade tenta ajustar-se ao panorama que o circunda, assimilando a estratégia mercadológica. Afinal, se todos somos indivíduos dotados de vontade e raciocínio, a única ética que deve ser seguida será aquela responsável por conduzir-nos ao poder, sem que exista preocupação moral de nenhuma ordem.

Esse tipo de virtú burguesa capaz de interpretar a Bíblia de acordo com interesses mundanos ou de fazer alianças visando ao prazeres carnais e ao lucro, também exerce seus poderes em Lucrécia, que passa de esposa fiel e religiosa a adúltera convicta – mas que, ainda assim, não deixava de obedecer aos ditames de Deus. O importante é que a consciência de classe, presente em maior ou menor grau em todos os personagens, engendre brechas de escalada social, subvertendo, mesmo que timidamente e por debaixo dos panos (ou dos lençóis!), a ordem estabelecida.

Elenco de 'A mandrágora', destaque do repertório do TapaDivulgação/Grupo Tapa

Elenco de ‘A mandrágora’, destaque do repertório do Tapa

Por esse exato motivo, a primeira montagem de A mandrágora em terras nacionais foi capitaneada pelo teatrólogo Augusto Boal em 1962, durante a fase de Nacionalização dos Clássicos no Teatro de Arena de São Paulo. Foi a primeira peça da fase a ser adaptada à realidade brasileira da época, já que a ameaça da tomada de poder pelos militares não deixava de rondar-nos: “A mandrágora, em nossa versão, foi feita não como peça acadêmica, mas como esquema político ainda hoje utilizado para a tomada do poder. O poder, na fábula, era simbolizado por Lucrécia, a jovem esposa guardada a sete chaves, mas mesmo assim acessível a quem queira e por ela lute – sempre que se lute tendo em vista o fim que se deseja e não a moral dos meios que se usam”[ii].

Tal como no Arena, a montagem do Grupo Tapa, longe de ser acadêmica, coloca em evidência aspectos relevantes e urgentes em nossos palcos. Suas cenas atualizam a famosa obra do “diabo florentino” e intensificam contradições e impasses típicos de um tempo em que a proposta do homem livre e autônomo colide tragicamente com os avanços do capitalismo.

Logo na primeira cena do espetáculo, Siro, criado de Calímaco, desperta de um baú para acordar seu patrão – o mesmo baú utilizado para guardar as moedas ofertadas por Ligúrio a Frei Timóteo. Essa explícita e imediata ilustração da forma-mercadoria, que coisifica o homem e rompe com a ideologia da livre iniciativa, apresenta-se através de um expediente extra-textual que tensiona os diálogos. Também algumas canções inseridas pelo grupo entre as cenas parecem mais próximas de um recurso brechtiano se comparadas com as originais[iii], uma vez que, ao intensificarem o tom sarcástico já presente nos diálogos, elas fornecem uma violenta pausa na comicidade estruturante da peça.

Não podemos fugir do choque e da brutalidade engendrados pela canção sobre o deus-moeda, ao qual todos os espectadores são fiéis. Também não podemos correr do assustador espelhamento proveniente das marcações das personagens que, mesmo não participando de algumas cenas, permanecem estáticas no palco nos mirando, como se fôssemos um reflexo perverso e periférico de uma ideologia burguesa que até hoje tenta esconder o quanto se serve do atraso e da imobilidade de classe para conclamar a liberdade, a meritocracia e o poder individual.

A atuação de Guilherme Sant’Anna como o velho Nícia, assim como a de André Garolli e de Cinthya Hussey, na pele de Ligúrio e Lucrécia, respectivamente, dão ao espetáculo, que já pode ser considerado um dos clássicos do repertório do grupo, uma vivacidade impactante. Confirma-se, ao fim da montagem, o motivo de seu retorno aos palcos paulistanos (o grupo encenou a peça pela primeira vez em 1988, remontando-a em 2004), uma vez que a direção de Eduardo Tolentino continua a mobilizar o debate de uma obra que está longe de esgotar-se em si mesma. E é essa mobilização e inquietação reflexiva características do espetáculo do Tapa que podem inspirar – quem sabe? – o nosso canto coletivo.

Referências:
[i] MAQUIAVEL, Nicolau. A mandrágora. São Paulo: Abril Cultural, 1976, pg. 14.
[ii] BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, pg. 181.
[iii] As canções presentes no texto original de Maquiavel foram criadas a pedido de seu amigo, Francesco Guicciardini, cuja principal preocupação era que uma plateia popular não compreendesse o enredo sem que houvesse uma curta explicação entre as cenas.

Serviço:
Onde: Teatro Aliança Francesa (Rua General Jardim, 182, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3017-5699, ramal 5602)
Quando: Quinta e sexta, às 20h30; sábado, às 20h30; e domingo, às 19h. Até 29/11
Quanto: R$ 30 e R$ 40 (sábado e domingo)
Duração: 90 minutos

Ficha Técnica:
Direção e tradução: Eduardo Tolentino de Araújo
Com: Guilherme Sant’Anna, André Garolli, Bruno Barchesi, Cesar Baccan, Cinthya Hussey, Maria do Carmo Soares e Paulo Marcos
Figurinos e cenário: Lola Tolentino
Iluminação: Nelson Ferreira
Produção geral: Cesar Baccan
Realização: Grupo Tapa

Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestra em Artes Cênicas e bacharela em Letras com habilitação em português e inglês pela USP. Desenvolve pesquisa sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no período de exílio latino-americano, atuando principalmente nas áreas: estudos culturais, teoria crítica, história do teatro brasileiro e teatro político.

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