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Crítica

Violência estampada no corpo

12.10.2015  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Akira Patiño

Em Buenos Aires

Ao entrar no teatro, o público se depara com um quadro familiar. A eventual impressão de felicidade padronizada, porém, é rapidamente desfeita diante do perceptível desequilíbrio estampado, de diferentes formas, nos rostos de cada um dos integrantes. As aparências não enganam, e sim revelam – parecem dizer os diretores Juan Coulasso e Jazmín Titiunik.

O espectador não demora a notar que os personagens – com exceção do pai opressor, dotado de voz e gestos militares – não se encerram naquilo que exibem. Mãe e filhos, todos reprimidos, pulsam. A mãe/esposa executa movimentos mecânicos, como fantoche, mas mantém olhar perplexo. Por isto, suas ações não se reduzam a coreografias cristalizadas.

À medida que a encenação avança, os personagens realizam processos de descongelamento. Eles começam a falhar e o descontrole faz com que soem mais humanos. O marido coloca as mãos da esposa em volta de seu corpo. Mas as mãos seguidamente caem. A insistência leva a uma reação inesperada: ela bate no rosto dele, marcando resistência ao seu autoritarismo. A partir do instante em que ocorre certa relativização da imagem soberana do pai, determinados conflitos vêm à tona de modo mais flagrante. Existe atrito entre os irmãos, que destilam violência em relação à mãe e vice-versa (a sequência de embates não-verbais entre mãe e filhos é possivelmente a melhor da encenação), como se houvesse uma redistribuição da agressividade dentro da família.

Resultado de uma criação coletiva, ‘Cinthia Interminable’ dialoga ainda com a gramática cinematográfica

Há, inclusive, um redimensionamento do lugar do texto para além da esfera verbal. Os elos nada harmoniosos entre os integrantes da família, a lógica de funcionamento catártica, são expostos mais por meio de partituras físicas que da transmissão de informações através do texto escrito (em si, bem sucinto). Pode-se afirmar que existe texto nos elementos que compõem a encenação, principalmente no que se refere aos atores, que preenchem suas presenças sempre que não portam falas. A interpretação da atriz Marisol Benítez, a um só tempo contida e transbordante, merece elogios. Valoriza uma personagem cuja ameaça de libertação não se concretiza. Ao final, o círculo vicioso, claustrofóbico, é restabelecido.

A montagem, contudo, não descortina conexões familiares através de abordagem realista. No campo temático, talvez sejam crianças se passando por adultos, chave de leitura justificada, pelo menos em parte, pelo tom estereotipado (para a figura do pai, propositadamente exagerado, enfático). Em termos de construção cênica, diversos fatores evidenciam oposição ao realismo: a considerável supressão do texto verbal, a interpretação de uma personagem feminina (Cinthia) por um ator (Germán Botvinik), a manipulação de objetos imaginários, a sucessão de movimentos repetidos e, em algum grau, a estrutura bastante realçada (com cenas intercaladas por blecautes).

Quadro familiar desconfigurado na peça argentina 'Cinthia Interminable'Akira Patiño

Quadro familiar desfigurado no espetáculo argentino ‘Cinthia Interminable’

Resultado de uma criação coletiva dos diretores, atores e de Gulliver Markert (a partir de uma ideia original de Eric Mandarina, integrante do elenco), Cinthia Interminable dialoga ainda com a gramática cinematográfica, seja por meio da breve evocação do cinema mudo, seja através da paródia a filmes de ação incessante. As menções generalizadas a produções repletas de tiros e explosões contrastam com um espetáculo que investe numa cena despojada, constituída por poucos – e expressivos – elementos. São os casos dos figurinos (de Ezequiel Galeano), que sugerem uma primeira imagem de idealização familiar por meio das camisas de desenhos infantis dos filhos; e pela iluminação (de Mariano Arrigoni) que, logo no início, destaca os integrantes da família diante da mesa, como se estivessem recortados do mundo, e, no decorrer do espetáculo, imprime temperatura própria a cada momento.

Cinthia Interminable se aproxima de tendências da cena argentina, em particular no que diz respeito à busca por uma espacialidade essencial, distante do supérfluo, à reincidência na temática da solidão e à interseção com outras manifestações artísticas.

.:. Publicado originalmente no blog Daniel Schenker. O espetáculo foi apresentado na 10ª edição do Festival Internacional de Buenos Aires, o FIBA, realizado entre 17/9 e 4/10.

Ficha técnica:
Criação coletiva: Eric Mandarina, Germán Botvinik, Gulliver Markert, Juan Fernández Gebauer, Marysol Benítez
Direção: Jazmín Titiunik e Juan Coulasso
Com: Eric Mandarina, Germán Botvinik, Jazmín Titiunik, Juan Fernández Gebauer, Marysol Benítez.
Cenário: Ezequiel Galeano
Figurino: Ezequiel Galeano
Iluminação: Mariano Arrigoni

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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