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Crítica

Cintia e Erivelto, um rito desestabilizador

18.11.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Márcio Vasconcelos

Em São Luís

Merece análise a performance Sintética idêntica ao natural apresentada na última noite da Semana de Teatro no Maranhão devido a potencia crítica de alguns dos procedimentos criativos adotados por Erivelto Viana, que atua como Cintia Sapequara. Ela comanda a cena durante todo o tempo, quase duas horas de sessão. Ao todo, o público percorre cinco pequenos espaços, cada um deles com uma atmosfera distinta e peculiar, sempre tendo Cintia como figura central.

Na primeira sala – provavelmente um espaço de convivência do hotel – há grandes poltronas de vime com almofadas coloridas, uma mesa de centro repleta de copos gigantes de pipoca e um telão no qual são exibidos filmes/vídeos. O público excessivo como frequentemente ocorre nos festivais, mais numeroso do que parecia desejável, se acomoda também no chão, entre os móveis. Na tela é exibido um clipe intitulado O Meu sangue ferve por você no qual Cintia contracena com Hamilton Lima, identificado nos créditos como o Sidney Magal do Maranhão. Há ainda umas imagens de Cintia caminhando entre o casario do centro histórico de São Luís interagindo com uns vendedores ambulantes. De longe, duas outras colegas travestis observam. Há uma música tocando, Cintia dança uma coreografia sinuosa, quadris que rebolam em movimentos verticais. Um dos ambulantes decide interagir, tira a camisa e mostra corpo e costas repletos de tatuagens, e dança com ela sobre o riso dos colegas. O clima é de provocação e talvez só a câmera proteja Cíntia de uma violência que parece muito próxima de se deslanchar.

E aquela figura morena de peruca loira, maquiagem carregada, pele brilhante de suor sob o calor intenso da sala parece oferecer ao espectador, e a si mesma, o tempo de tornar familiar toda a estranheza de sua figura

Em seguida, ainda na mesma sala, mais um vídeo é exibido, no qual Cíntia é sequestrada por bandidos e resgatada pelos soldados do Grupamento Tático Aéreo (GTA-MA), uma divisão da polícia militar (uma rápida pesquisa na internet mostra o GTA em ação de salvamento de banhistas e montanhistas). Em ritmo acelerado, tropas inteiras são acionadas por conta do sequestro e saem correndo com metralhadoras em punho. Mascarados, cercam uma região de barracos para supostamente proteger a travesti que pede socorro entre dois bandidos numa das janelas. O vídeo traz ainda a entrevista de um comandante do GTA que fala sobre o sequestro de Cintia e como planejam libertá-la. Os artistas realmente contaram com o apoio do grupamento, como é possível constatar nos créditos. Com estética inspirada nas séries policiais norte-americanas e nos programas mundo-cão da TV brasileira, a abordagem do vídeo, mesmo realizada na linha do humor, provoca forte estranhamento e tem potencial para provocar interrogações sobre a relação entre policias e travestis: quando as tropas seriam mobilizadas para salvar alguém como Cintia? Que pessoas por acaso sequestradas mereceriam tal atenção? São questões que inevitavelmente saltam das imagens.

Ele é ela em 'Sintética idêntica ao natural'Márcio Vasconcelos

‘Sintética idêntica ao natural’

Ficaria nisso, no humor da linha besteirol, se fossem somente os vídeos, se não houvesse o contraponto entre essa primeira sala, na qual predomina o espetacular e o aparatoso – com os quais em geral se aborda o universo do transformismo –, e o espaço seguinte, de vertente intimista, que oferecerá outra qualidade de aproximação do universo trans. Quando o espectador adentra o segundo ambiente, Erivelto está em processo de transformação. O corpo vestido num colant curto, com enchimentos para peitos e bunda, tênis, polainas, e finaliza a maquiagem em silêncio diante de um espelho. Finda a tarefa, coloca a peruca loira e, acende luzes fortes num segundo ambiente da sala e ali acomoda os espectadores aos quais serve um chá. E aqui o tempo é outro, extremamente ralentado.

O público se acomoda sentado em círculo sobre pequenos pedaços de pano cuidadosamente colocados um a um no lugar pela anfitriã que ao fim também senta, ela própria, no círculo entre dois espectadores. O que vem a seguir é silêncio. Cintia apenas olha para as pessoas por um tempo. Há uma medida muito precisa no olhar – nem subserviente, nem arrogante. É alguém que está ali, em serena exibição, aparentemente pronta a acolher uma interação, mas também sem exigir que isso se dê. E aquela figura morena de peruca loira, maquiagem carregada, pele brilhante de suor sob o calor intenso da sala parece oferecer ao espectador, e a si mesma, o tempo de tornar familiar toda a estranheza de sua figura.

Na noite de domingo, o serviço de chá se alongou muito, porque havia cerca de 30 pessoas na sala. Cintia distribuiu xícaras, serviu um a um aos espectadores, sempre dobrando cuidadosamente um guardanapo com sua marca desenhada. Ao fim voltou à roda e aguardou que ela própria fosse servida por alguém. Talvez o festival tenha atraído uma plateia de artistas locais, ao menos era o que parecia. Difícil saber como a cena se daria com um público menos generoso. Mas o fato é que o estoicismo com que todos suportaram o calor intenso sem qualquer sinal de hostilidade, o silêncio, os sussurros de agradecimento e as trocas de olhares fizeram daqueles quase 40 minutos de rito um momento de acontecimento teatral. E, convém ressaltar, parte importante disso se deve à atitude de Cintia que em nenhum momento estava investida daquela arrogância, quase sadismo com que a/o performer usa o poder provisório que a cena lhe dá para colocar o público em situação desconfortável. Gentilmente, depois de muito tempo, alguém sugeriu a ela que o chá poderia ser gelado na próxima vez. Mas outros repetiram a dose quando oferecido.

O duplo ou a máscara, tateia o criador e a criaturaMárcio Vasconcelos

O duplo ou a máscara, tateiam o criador e a criatura

Passa-se ainda para uma terceira sala, mais fresquinha, onde há um balcão, plantas, objetos de decoração. Cintia se aproxima de um, de outro, como se quisesse conversar. A proposta parecia essa e se as pessoas tivessem entabulado conversa entre si talvez ela participasse de uma ou outra. Mas havia aquele silêncio teatral no ar. Na quarta sala, Cintia começa a dançar em silêncio, depois coloca música, pouco a pouco amplia a iluminação colorida apertando interruptores em lugares estratégicos. Dança sozinha. Não chama ninguém para dançar de modo explícito. A peruca cai. E agora quem dança é Erivelto/Cintia. Só quando deixa a sala, algumas pessoas começam a dançar. Mas está terminada a apresentação. Ela não volta.

Integrante do BemDITO Coletivo, Erivelto criou Cintia há quase uma dezena de anos e é possível imaginar que a relação de trabalho com tal figura venha se transformando ao longo do tempo. Cintia é duplo? É máscara? Sua atitude espetacular a um só tempo faz dela um atrativo e a protege da intolerância. Se o transformista é alguém que borra a demarcação de gênero, na performance acompanhada, Erivelto desestabilizou também o lugar social da travesti ao trazê-la montada, mas despida da máscara espetacular. No lugar disso, o olho no olho, a transmissão de afeto, a experiência do convívio – rito que está na origem do teatro.

.:. Escrito no contexto da X Semana de Teatro no Maranhão, em São Luís (9 a 15/11). A jornalista viajou a convite da organização.

Ficha técnica:
Idealização: Erivelto Viana e Ricardo Marinelli
Direção: Ricardo Marinelli
Performance: Erivelto Viana / Cintia Sapequara
Equipe técnica: Diones Caldas, Ruan Paz e Yuri Azevedo
Colaborações artísticas: Cristian Duarte e Gustavo Bittencourt
Design gráfico: Aurélio Dominoni
Consultoria de make-up e hair: Marcelo Nascimento
Produção: Bem Dito Coletivo
Fotos: Márcio Vasconcelos e Nilce Braga
Parceiros colaboradores: Alessandro Bruge, Ayrton Capaverde, Casa do Povo (SP), Casa Selvática (PR), Laborarte, Pousada Portas da Amazônia, Santa Ignorância Cia. De Artes,Thelma Bonavitta e Wellington Guitti. Este Projeto foi contemplado com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2012

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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