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Crítica

De Arthur ao besteirol: vias do cômico popular

13.11.2015  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Ayrton Valle

Em São Luís

Pão com ovo – A vingança de Zé Maria, espetáculo que abriu a X Semana de Teatro no Maranhão, é apresentado pela Santa Ignorância Cia. de Artes, de São Luís, como uma ‘comédia de costumes’. Mas, as peripécias vividas por Clarisse, Dijé e Zé Maria não seguem rigorosamente esta filiação, se o ponto de vista for o da estrutura dramatúrgica. Sobretudo porque a unidade de ação experimentada por um Martins Pena ou um Artur Azevedo não dialoga muito de perto com a forma livre da montagem. Nela um fio da meada narrativo, que de fato está lá, não esconde a sua contraface: a vocação para ser uma sequência de esquetes cômicos e não uma história com cenas interdependentes que se organizam em começo, andamento e fim. Alguns personagens pulam de uma situação a outra (às vezes ficam pelo caminho) enquanto outros vão chegando mais ou menos desavisadamente; e há ainda a participação de outros artistas populares que não são personagens, mas aparecem em números pontuais.

O mote são os quiproquós passados por duas ‘amigas’, funcionárias públicas, uma aparentemente “mais pobre” que a outra, e suas famílias, maridos, ‘ficantes’, amantes e agregados, todos convivendo na paisagem física e humana da São Luis atual, apresentados em chave de comédia popular. E é este espírito do cômico popular o que chama alguns procedimentos que indicam, aí sim, um diálogo factível entre passagens distantes entre si, do teatro maranhense e brasileiro. Pois, este mesmo gosto pela observação dos costumes a que a Santa Ignorância se dedica agora foi o que disparou o talento de Artur Azevedo, na segunda metade do século XIX, primeiro no Maranhão e depois no Rio de Janeiro, onde ele desenvolveu e solidificou sua obra. O mesmo gosto, mas não a mesma forma.

Azevedo, como sabemos, foi obrigado a partir da capital maranhense em direção à Corte. Perdera o emprego (era copista de repartição) por meter-se vez em outra a escrever satiricamente, observando o comportamento dos convivas na São Luis da época. Mais popular que o precursor Martins Pena, é Artur quem vai consolidar aquele gênero agora convocado pelo grupo de Cesar Boaes, fazendo no teatro a crônica da vida brasileira a partir do olhar sobre a sociedade carioca, na passagem para o período Republicano. Então o que de imediato chama a atenção é o grupo retomando de modo próprio essa linhagem de uma cena popular de longa data. E, nesta apresentação pontual que aconteceu na Semana, justo no Teatro Arthur Azevedo!

Limites mais delicados entre a inocência de certo humor e o politicamente incorreto, entre a autoafirmação e a autodetratação, nos deslocam provocativamente

Se por um lado a linguagem da montagem de agora não se liga em linha reta com aquela de outros tempos, por outro sobrevive, como laço distante, o mesmo desejo de levar ao palco certo contexto local razoavelmente desenhado, onde as situações e os tipos sociais giram em torno de coisas como amores fora da ordem e outros desvirtuamentos da moral vigente. Isto se dá através da caricaturização do comportamento, suas normas e transgressões, especialmente quanto a representação quase sempre crítica dos lugares de classe e da vontade de ascensão social ‘custe o que custar’.  É o que move, em síntese, o espírito da comédia de costumes e o que movimenta também, em chave própria (bem mais virulenta), o trabalho atual da Santa Ignorância. Para ficar em um único exemplo entre tantos possíveis: resguardadas as diferenças de época, a ‘quase nova rica’ Clarisse de Pão com ovo é bisneta, em termos históricos, do comendador Joaquim José de Oliveira, de O bilontra (revista escrita em 1886 com Moreira Sampaio e um dos primeiros grandes sucessos de Artur Azevedo). Trata-se de um novo rico carioca que quer ser barão a qualquer custo, decide ‘comprar’ o título, mas cai nas mãos de um impostor que passa-lhe a perna. Nos dois personagens, ontem e hoje, está a marca mais que brasileira de ascensão pelo título de empréstimo, pela notabilidade sem esforço, como nos explicava Sergio Buarque de Holanda no seu Raízes do Brasil ao analisar os fundamentos da nossa sociabilidade.

Estas semelhanças com algumas das características da comédia de costumes acabam aqui. Mas há, sem dúvida, outras fontes, abraçadas intuitiva ou deliberadamente pela companhia. A mais evidente entre elas é a do humor televisivo, para muitos já grosseiro e aqui certamente ainda mais mal educado. A marcação rudimentar das cenas no espaço, em planos quase todos frontais, como se houvesse uma câmera a desenhar o contexto, nos diz isso.  Outra relação possível, talvez mais distante, é com o besteirol, movimento do teatro carioca oitocentista com o qual este espetáculo tem em comum a estrutura de fragmentos, de sketches, e o apelo ao prosaico, retomado como ridículo, além do desprezo pelo teatro com verniz de alta cultura. Mas, dele, o besteirol, já se distancia quanto ao ponto de vista. O besteirol mantinha em geral um imaginário basicamente de classe média mesmo quando tratava de personagens à margem, o que definitivamente não acontece aqui, senão como atualização paródica.

Cena de 'Pão com ovo', que abriu mostra no MaranhãoHamilton Junior

Cena de ‘Pão com ovo’, que abriu mostra no Maranhão

Como o nome já indica, a montagem da Santa Ignorância segue mesmo é a formalização de uma estereotipia ligada à representação das camadas populares, do povão.  Com uma singularidade evidente: a  piada nasce em espelho, a partir da condição própria de quem a conta, e isto parece  legitimar de alguma maneira o representado. A autorreferência e a auto-ironia acentuam o efeito cômico sem, entretanto, cair no patético, como às vezes acontece. O grupo tenta se equilibrar no fio da navalha, nos limites mais delicados entre a inocência de certo humor e o politicamente incorreto (muitas vezes incorretíssimo), entre a autoafirmação e a autodetratação, em movimentos  que, para dizer o mínimo, nos deslocam provocativamente.

Se a direção do olhar for outra, no entanto, o espetáculo também pode ser tomado como uma fala politizada, através da qual se assume totalmente o lugar e as condições em que aquelas  personagens, representações sociais, foram colocadas. Assim, toda a sexualidade à beira do escatológico, o quase grotesco e o caricato das inversões de gênero (são duas personagens femininas representadas por dois atores) seriam resultados de um único ato recorrente:  o de  ‘autoexplicitar’ uma condição, mas como coisa  afirmativa, contornando o lugar da vítima que é muitas vezes o esperado e, paradoxalmente, também pode ser o mais impotente entre todos.

De uma maneira ou de outra, essa mistura de revista do ano, show de humor musical, crônica virulenta do cotidiano e stand up comedy tem no seu resultado cênico ao menos duas forças opostas. De um lado o grande talento cômico dos seus intérpretes, Cesar Boaes e Adeilson Santos, bem apoiados por Charles Junior. Mesmo nas excessivas duas horas e tanto de espetáculo são raras as ‘barrigas’, permanecendo a cena bem viva durante toda a representação. O que se deve – muito – ao despudor que só os bons palhaços conseguem reger com a graça necessária.  Também ao‘feeling’ para tirar das situações um frescor renovado e à vocação para o improviso quase sempre certeiro, característica dos melhores atores do gênero.

Por outro lado, estando o diretor Cesar Boaes em cena, e com tantas tarefas a tocar, a montagem ressente-se claramente de um olhar de fora.  O fato de quase tudo ter efeito não quer dizer que o conjunto seja o melhor resultado possível. Nossa impressão é a de que o espetáculo, se mais enxuto, se diria melhor. É evidente que há capricho no alongamento de cenas e números que certamente se diriam num tempo mais curto, sem prejuízo ao riso.

Por fim, e talvez mais importante, valeria a pena pensar na presença de um dramaturgo que dialogue com o gênero e com o universo de interesse da companhia. Que possa ser um parceiro de trabalho, possa ajudar a pensar a maneira como os quadros, mesmo na forma de fragmentos, se totalizam de um modo mais consequente.  Esta unidade a partir de materiais diversos, no caso, não é uma regra, algo que deva se aplicar a qualquer circunstância. É simplesmente o que já está intuído na própria montagem, que inicia anunciando os seus motes, mas tem dificuldade em articulá-los na sequência.

A busca por uma dramaturgia mais ambiciosa quanto à estrutura narrativa pode certamente dimensionar o já vivíssimo trabalho da Santa Ignorância em outras experiências ainda mais interessantes com a cena e com o público. Isto sem largar mão do fundamental, que já foi alcançado pelo grupo: a vocação inequívoca para a lida com o popular, com a observação da vida e a sua tradução nos termos que já estão apontados e que, salvo engano, estão a caminho de demarcar o espaço de uma construção de linguagem que pode fazer diferença na cena local.

.:. Escrito no contexto da X Semana de Teatro no Maranhão, em São Luís (9 a 15/11). O jornalista viajou a convite da organização.

 

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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