Crítica
A nova montagem de A Santa Joana dos matadouros, que encerrou temporada no Teatro Glaucio Gill, no Rio, segue à risca certas plataformas do teatro brechtiano, particularmente no que se refere a colocar em prática o famoso distanciamento (ou estranhamento) para que o público não estabeleça uma conexão alienada, ilusionista, com o que assiste. Brecht não assumiu postura contrária ao entretenimento ou mesmo ao vínculo emocional entre espectador e espetáculo, mas ressaltou a importância de um senso de medida. A partir de dado momento, o espectador deveria adquirir consciência em relação à fábula descortinada diante dos seus olhos, ao invés de considerar a ficção como realidade. Para comprometê-lo com os temas levantados nas obras, Brecht se valeu de vários procedimentos denunciadores da mecânica da cena, como, entre tantos outros, fazer com que o ator interprete mais de uma personagem (o espectador se depararia com o ator entrando e saindo de diferentes personagens e ficaria impedido de travar identificação direta e passiva com alguma delas) e se afaste ocasionalmente da personagem para portar a voz do autor.
É como se por trás de uma camada houvesse sempre outra, como se não fosse possível subtrair rumo ao encontro de uma base comum, um marco zero
Marina Vianna e Diogo Liberano (que assina dramaturgia sobre o texto original, traduzido por Roberto Schwarz) dirigem a montagem com clareza didática. Logo no início da apresentação, a quarta parede é quebrada por meio da atriz Adassa Martins, que, em trajes contemporâneos, se posiciona de frente para o público, realçando a atualidade da sua fala. Há notadamente um desejo de inclusão do espectador, de conduzi-lo a um posicionamento, a tomar partido, diante do panorama de discrepância econômica e social entre ricos e pobres, do estado dos anulados por um sistema perverso, do jogo de manipulação comandado pelos poderosos que leva os menos favorecidos a firmar acordos nada justos.
A cena é propositadamente construída diante da plateia. No começo do espetáculo, os atores entram, tiram diversas camisas e as estendem sobre o palco. Retiram sucessivas camadas de roupa, como se o objetivo estivesse em chegar à exposição do próprio corpo. Mas a pele raramente desponta. É como se por trás de uma camada houvesse sempre outra, como se não fosse possível subtrair rumo ao encontro de uma base comum, um marco zero, como se não existisse o indivíduo puro, desvinculado das interferências do mundo, como se a perda da inocência não pudesse ser evitada. Não por acaso, os atores voltam a sobrepor camisas nos bastidores para retirá-las em seguida. Aparentemente rascunhados, improvisados, os figurinos, como se pode perceber, evidenciam conceito, assim como os demais elementos integrantes da encenação.
Responsável pela direção de arte, Bia Junqueira demonstra participação fundamental na concepção do espetáculo. A cenografia vai surgindo aos poucos diante do espectador, a julgar pela já mencionada superfície composta pelas camisas dos atores e pelos engradados dispostos em cena, sugerindo linha de produção em série. Os dois ganchos vermelhos suspensos simbolizam os matadouros – centrais na “trama” de Brecht, ambientada durante rigoroso inverno em Chicago, em meio à crise de 1929 – e uma das formas geométricas delineadas no palco é potencializada pela iluminação de Paulo César Medeiros, de modo a acentuar a sensação de opressão, que oscila entre contrastes (entre a claridade dura e um tom algo crepuscular). A intencional revelação da construção da cena é complementada pela presença do músico no palco (Arthur Braganti, que divide a direção musical com Rodrigo Marçal). O elenco – Adassa Martins, Gunnar Borges, João Velho, Leandro Santanna, Leonardo Netto, Luisa Arraes, Sávio Moll e Vilma Melo – explicita plena adesão ao projeto. A partir de um entendimento minucioso do texto, existe uma preocupação em dizê-lo bem. Ainda que haja eventuais destaques – Leonardo, João e Adassa –, os atores se somam num conjunto orgânico, entrosado.
A Santa Joana dos matadouros se impõe como um trabalho coerente que afirma fidelidade a Brecht sem, porém, que isto signifique apego a convenções. Marina Vianna e Diogo Liberano mostram que o texto continua lançando questões pertinentes nos dias de hoje.
.:. Publicado originalmente no blog danielschenker.wordpress.com
Ficha técnica:
Autor: Bertolt Brecht
Tradução: Roberto Schwarz
Dramaturgia: Diogo Liberano
Direção: Marina Vianna e Diogo Liberano
Com: Adassa Martins, Gunnar Borges, João Velho, Leandro Santanna, Leonardo Netto, Luisa Arraes, Sávio Moll e Vilma Melo
Direção de arte: Bia Junqueira
Iluminação: Paulo César Medeiros
Direção musical: Arthur Braganti e Rodrigo Marçal
Músico em cena: Rodrigo Marçal
Direção de movimento: Laura Samy
Produção executiva: Marcelo Mucida
Direção de produção: Ana Lelis
Realização: Moinho Produções
Idealização: Marina Vianna e Luisa Arraes
Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.