Menu

Crítica

Os discursos do corpo

19.12.2015  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Frederico Chigança e equipe

Fiel aos preceitos da performance, o La Pocha Nostra preocupa-se, essencialmente, com a criação de imagens em Spiritus mundi vs aztec ouroborus. Na obra que foi apresentada dentro da programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP, o grupo liderado pelo mexicano Guillermo Gómez-Peña trouxe cenas que procuravam comunicar-se com o público muito mais pela via imagética do que propriamente pelo discurso engendrado por seus participantes.

Ao longo de toda a encenação, a conjugação entre arte e ativismo político era explícita, constante. A partir de um workshop com artistas brasileiros, o La Pocha criou um trabalho que, como outros de sua feita, está concentrado em dissolver as fronteiras entre os gêneros artísticos. O que é (em essência) teatral surgiu acompanhado de vídeos e de interferências sonoras. Aproximou-se da lógica da instalação e do happening. Mas não é apenas na dissolução dos limites entre linguagens que esse coletivo se concentra. A organização, criada em 1993, vale-se da profusão de disciplinas para confundir também as bordas que ainda acreditamos existir entre artista e espectador, prática e teoria, realidade e ficção.

Fenômeno global, a discussão sobre identidades sexuais e o surgimento de indivíduos transgêneros vêm transformar as arraigadas noções que temos sobre feminino e masculino

Ao longo de 90 minutos, todas essas noções são postas sob suspeita. As línguas se amalgamaram para formar um novo idioma, um estranho e familiar amontoado de inglês, espanhol e português. Da mesma maneira, as interferências em vídeo. Por vezes, focadas na criação de um contraste evidente entre o que ia à cena e o que tomava a tela, com o uso de imagens de filmes hollywoodianos ou claramente ligados a uma linguagem cinematográfica mainstream. Em outras situações, com a ambição de estabelecer um diálogo entre a imagem criada ao vivo e a imagem mecânica.

Tal abordagem múltipla não impediu que, a guiar os performers, houvesse um propósito dominante. As discussões de gênero ganham vulto dia a dia. Fenômeno global, a discussão sobre identidades sexuais e o surgimento de indivíduos transgêneros vêm transformar as arraigadas noções que temos sobre feminino e masculino. Quanto há de construção cultural nos comportamentos que costumamos tratar como inatos? Uma construção cultural que impregna não só gestos e palavras, como também corpo e pensamento. Convém, ainda, levar em consideração o contexto em que a obra foi apresentada. Um Brasil convulsionado pelas transformações políticas. Atônito diante da evidência de seu conservadorismo. Surpreso pela fragilidade de seu ideal de igualdade entre sexos. Despreparado para a violência desmedida tortamente escondida por trás de sua casca de afabilidade.

Mexicanos do La Pocha Nostra exprimem força imagéticaFrederico Chigança e equipe

Mexicanos do La Pocha Nostra exprimem força imagética

A confusão entre caracteres distintivos de cada gênero é um dos meios do qual o La Pocha Nostra se vale amplamente. Com as balizas desestabilizadas, o público depara-se com o corpo masculino feminilizado pela ausência de pelos e pelos cabelos longos. Com o indivíduo com seios, mas genitália masculina sugerida. Com a mulher que tenta masculinizar-se. É essencialmente nos corpos de cada performer que a obra se dá. Todos os conceitos e ideias a circular expressam-se pela materialidade do corpo. Pela fragilidade, vulnerabilidade e força do corpo.

Tanto é assim que a proposta se fragiliza quando o discurso toma o primeiro plano. Na parcela final do trabalho, talvez em uma ânsia por entendimento completo ou pela tentativa de criar algum tipo de impacto emocional entre os espectadores, a violência expressa e sofrida pelo corpo torna-se pretexto para uma exposição de contornos objetivos e factuais. Em uma parede, uma projeção anuncia quantas mulheres foram vítimas de violência, quantas crianças submetidas à prostituição, quantos homossexuais assassinados em crimes de ódio. Dados sobre a violência contra povos indígenas ou as recentes medidas de repressão à ocupação das escolas paulistas pelos estudantes também vêm à tona. A mensagem política direta não é ponto a ser questionado. Mas seu propósito, quando tudo já havia sido dito de outras maneiras, talvez possa ser observado com alguma desconfiança.

.:. Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12), em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

Ficha técnica:
Criação coletiva: Guillermo Gómez-Peña, Michèle Ceballos, Saul Garcia Lopez, Daniel B. e Dani d’Emilia, do La Pocha Nostra
Apoio: Centro Compartilhado de Criação

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

Relacionados