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Crítica

Expansões e limites manifestos

9.1.2016  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Patrick Tedesco

Reunindo diferentes bandeiras, as manifestações de junho de 2013 obtiveram ganhos importantes, como o que diz respeito ao preço das passagens de ônibus, cujo aumento foi o estopim do movimento, mas questões estruturais que figuraram entre as reivindicações, a exemplo do fim da corrupção e da melhoria dos serviços públicos, não foram articuladas estrategicamente em um projeto político. As demandas são igualmente ou mais graves hoje do que eram na ocasião.

A herança simbólica de junho de 2013, entretanto, vai além de seus eventuais ganhos e limitações. Desde então, foram inúmeras as peças que traduziram, nas mais criativas formas, a ideia do gigante que acordou. Não tem sido rara a inserção de cenas de protestos nas produções. Em outros casos, as próprias manifestações servem de motivo principal, como ocorre em No que você está pensando?, primeiro trabalho do coletivo Cena Expandida, estreado em 2014, que teve nova temporada no segundo semestre de 2015.

Com nomes ligados ao Teatro Sarcáustico, grupo proeminente da cena gaúcha há 10 anos, como Thais Fernandes (que assina direção e dramaturgia, ao lado de Tainah Dadda) e os atores Douglas Dias e Juliana Kersting, o Cena Expandida tem como proposta a exploração das fronteiras entre as artes cênicas e o audiovisual. Na temporada 2015, no Teatro Renascença, em Porto Alegre, Dias e Juliana foram substituídos por Eduardo Cardoso e Fernanda Petit, esta uma atriz já familiar ao público gaúcho, tendo trabalhado recentemente em projetos como O mal-entendido e Medeamaterial.

No que você está pensando? traz, já no título, a pergunta com a qual as redes sociais provocam seus usuários. É por meio de uma rede que o casal de jovens não nomeados da peça se reencontra depois de um relacionamento no passado. Ele é um programador que trabalha na área do software livre e de games, amante de rock, filmes, séries e causas como o meio ambiente e a “paz mundial”. Ela é uma atriz, performer, modelo e musicista que participa de eventos feministas e outros movimentos.

Há um notável esforço da montagem em dissolver linguagens artísticas com a intenção de chegar, talvez, a uma nova síntese (nem apenas teatro, nem apenas audiovisual)

A dramaturgia toma como moldura As cadeiras, de Ionesco. No texto do dramaturgo romeno de língua francesa, um casal de idosos recebe convidados ilustres (os quais o público não vê, embora os personagens se dirijam a eles) para a revelação de uma mensagem proferida por um Orador. No desfecho, como se sabe, o Orador tem problemas de dicção e nenhuma mensagem é efetivamente transmitida, gesto típico do Teatro do Absurdo, que coloca em xeque a própria possibilidade da comunicação. O ano era 1952, e a Europa ainda experimentava a ressaca das catástrofes provocadas pela crença cega em oradores excêntricos que garantiam ter uma mensagem de salvação.

Cria-se o paralelo com o trabalho da Cena Expandida: em uma rede social, o garoto tem a identidade secreta de Orador-Chefe, uma silhueta que convoca manifestações nas ruas do país, garantindo ter uma “verdade” a revelar. Fãs de Ionesco podem adivinhar mais ou menos o desfecho, mas isso não tira a graça da história. A garota não sabe da identidade secreta dele, conflito que move a trama.

A figura do Orador-Chefe está em certo descompasso com o que ocorreu em junho de 2013 e com as demais manifestações realizadas no país recentemente, uma vez que tiveram uma organização muito mais pulverizada do que centralizada em um líder. Também é o caso de notar que a metáfora do Orador, emprestada de Ionesco, perde parte de sua força em um cenário político no qual os brasileiros estão descrentes de suas lideranças. As informações podem ser facilmente verificadas na internet, o que torna o ambiente menos receptivo a quem queira posar de salvador da pátria valendo-se do anonimato.

Criação do Cena Expandida incorpora projeçõesPatrick Tedesco

Projeções integram a criação do Cena Expandida

No plano formal, há um notável esforço da montagem em dissolver linguagens artísticas com a intenção de chegar, talvez, a uma nova síntese (nem apenas teatro, nem apenas audiovisual). Recursos gráficos das redes sociais são recriados em projeções em vídeo a serviço da ação. A linguagem das conversas virtuais serve de modelo para os diálogos, que são propositalmente compostos por frases curtas e, às vezes, superficiais, embora a dramaturgia não deixe de propor debates sofisticados, como a oposição entre o mundo “real” e o mundo da internet ou entre os ativismos virtual e presencial. Não há, no palco, um telão-clichê no qual as imagens são projetadas; as inserções em vídeo são integradas à cenografia e podem ocorrer inclusive sobre a roupa branca da atriz.

Dizer que uma peça trata de muitos assuntos ao mesmo tempo pode soar como um elogio (alguém falou em Shakespeare?) ou uma ressalva, dependendo do contexto. No que você está pensando? tem uma dramaturgia que procura dar conta de uma multiplicidade de tópicos (amor, política, tecnologia, etc.) quando talvez pudesse fazer escolhas. Se a montagem não aponta, ainda, um projeto estético consolidado, sugere desenvolvimentos futuros. A seu dispor, o Cena Expandida tem pelo menos dois trunfos: um horizonte claro de atuação, marcado pelo hibridismo entre as mídias, e a ausência de um passado ao qual deva fidelidade.

.:. Publicado originalmente no site do jornal Zero Hora, em 4/1/2016.

Ficha técnica:
Direção e dramaturgia: Tainah Dadda e Thais Fernandes
Com: Eduardo Cardoso e Fernanda Petit
Concepção de vídeos: Thais Fernandes
Trilha sonora original: Luciano Mello
Cenografia: Daniel Fetter
Figurinos: Daniel Lion
Adereços: Debora Maier
Iluminação: Bathista Freire
Assessoria de imprensa: Bruna Paulin – Assessoria de Flor em FlorProdução: Cena Expandida e Fio Produtora Cultural
Realização: Cena Expandida

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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