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Crítica

‘Kassandra’ e o corpo enquanto mercadoria

18.1.2016  |  por Afonso Nilson

Foto de capa: Cristiano Prim

O termo “casa de diversão adulta” parece um tanto quanto incomum quando o associamos à mitologia grega ou mesmo a um espetáculo teatral. Podemos, talvez, pensar que o concubinato forçado por que passaram as mulheres troianas ao serem consideradas espólio de guerra tenha algo de comércio sexual, mas está muito mais próximo a estupro institucionalizado. Se em As troianas, de Eurípedes,  Cassandra, a princesa vidente, filha de Hécuba, chora e prediz catástrofes como vingança por ter sido tomada como escrava junto com as mulheres de Tróia, em Kassandra, o espetáculo da Cia. La Vaca, com texto do franco-uruguaio Sergio Blanco, a personagem parece estar mais resignada à ideia de que seu corpo é uma mercadoria.

O espetáculo acontece em uma conhecida “casa de diversão adulta” do centro da cidade de Florianópolis, fechada exclusivamente para a apresentação. As tradicionais luzes neon, palco com pole dance e cerveja a preços exorbitantes fazem parte do pacote. O texto é integralmente em inglês, mas um inglês precário, curto, gesticulado. É uma determinação do autor, que proíbe qualquer tipo de tradução, com exceção das didascálias. No texto, o mito de Cassandra, princesa de Tróia, irmã de Páris, estopim da guerra ao raptar Helena, e de Heitor, maior guerreiro troiano,  é perpassado em meio a flertes com clientes e elementos da cultura pop.

O que mais Kassandra vende que a torna uma prostituta? Sua transexualidade? Sim, ela é um travesti, mas apenas isso não a subjuga, pelo contrário, a fortalece como identidade, como personagem

Por que o inglês como a língua da encenação de um texto uruguaio no Brasil?  Talvez porque tal como no mito, Kassandra é tomada como prêmio pelo dominador. Ela é um troféu conquistado por um estrangeiro, um troféu para ser exibido e usado por meio do poder. O que Kassandra fuma? Malboro. Qual imagem a deixa feliz? Buggs Bunny, o Perna Longa. Para Kassandra, quem é hoje o invasor, o dominador, o usurpador? O fato de que Kassandra usa um inglês precário, um inglês falado por estrangeiro em situação de risco como modo de sobrevivência, talvez dê pistas suficientes para traçar possíveis respostas.

A opção do diretor Renato Turnes em usar em certo momento do espetáculo a música The winner takes it all, do grupo sueco ABBA, em uma espécie de declamação cantada parece, no contexto, bastante apropriada. Kassandra perde na Guerra de Tróia seu lar e sua cidade, esta completamente destruída e depois incendiada;  seu pai, Príamo, assassinado covardemente; seu irmão, Heitor, morto em batalha por Aquiles; sua mãe e irmãs são tomadas à força como concubinas; e ela própria passa de princesa de Tróia a escrava de Agamemnon, o principal comandante grego e responsável pela destruição de sua cidade. Ou seja, definitivamente o vencedor leva tudo.

Milena Moraes vai ao bordel com 'Kassandra', da Cia. La VacaCristiano Prim

Milena Moraes vai ao bordel com ‘Kassandra’, da Cia. La Vaca

E finalmente, por que um prostíbulo como espaço de encenação? Kassandra, a personagem de Sergio Blanco, era amante de seu irmão, Heitor; amante de Agamemnon, usurpador de sua pátria, e compara o tamanho de seus “dicks” e suas respectivas potências na cama. Mas isso não a torna uma prostituta. A sensualidade refinada de Kassandra, que ostenta um erotismo de luxo na ótima atuação de Milena Moraes, também não justifica o título. O que mais Kassandra vende que a torna uma prostituta? Sua transexualidade? Sim, ela é um travesti, mas apenas isso não a subjuga, pelo contrário, a fortalece como identidade, como personagem. As Troianas é uma tragédia sobre os derrotados e sobre as atrocidades por eles sofridas. Kassandra, que bebe em Eurípedes, se regozija na catástrofe. Não se revolta, se resigna, se deixa levar pelas intempéries. Se deixa vender como um animal capturado. Será essa sua derradeira punição? Talvez apenas seu mais novo cliente, o público, possa presumir uma resposta.

.:. Leia o texto de Sergio Blanco, Kassandra 

Ficha técnica:
Texto: Sergio Blanco
Direção: Renato Turnes
Com: Milena Moraes
Assistente de direção: Vicente Concilio
Trilha sonora original: Ledgroove
Figurino: Renato Turnes
Maquiagem: Robson Vieira
Máscara: Roberto Gorgati
Pole dance: Ana Lúcia Trua
Desenho de luz: Renato Turnes
Fotografia: Renato Turnes
Assistentes de fotografia: Robson Vieira e Hildo Santos
Arte gráfica: Camila Petersen
Pesquisador: Esteban Campanela
Equipe de produção: Milena Moraes, Esteban Campanela, Renato Turnes, Vicente Concilio.
Coordenação de produção: Milena Moraes

 

Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

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