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Artigo

Um país revolvido sob a arte de Shakespeare

20.1.2016  |  por Valmir Santos

Foto de capa: João Caldas Fº

São muitas as peculiaridades deste Repertório [em cartaz no Sesc Vila Mariana, São Paulo, de 5/11/2015 a 30/1/2016]. Ele combina um clássico constante nos palcos brasileiros a outro raramente montado entre nós. Atores de diferentes gerações e estilos desdobram-se em múltiplos papeis. Jogo de cintura que também é exigido do diretor Ron Daniels e seus colaboradores. Contrastes e complementaridades entre Macbeth e Medida por medida resultam numa terceira margem das percepções humanas sobre morte, poder e medo, para início de conversa.

O poder, o gozo e a virtude soam anacrônicos nos personagens masculinos que detonam as maiores vilezas nas duas obras. A consciência os rói, mas os atos lhes escapam das mãos. Macbeth sente a dor do pensamento após matar o rei hospedado em sua casa. “Saber o que fiz, melhor seria não saber quem sou”, declara. Em Medida por medida, o governador provisório confessa aos botões a vergonha por se apropriar da virgindade de uma noviça com a promessa de soltar o irmão dela que condenara à morte por transar antes do casamento. “O que é isso, Ângelo? Quem é você? Será que você é tão sórdido que a deseja justo pelas coisas que a fazem tão boa?”, vaticina. Esses constrangimentos irrompem imaginária e irracionalmente com um mesmo ator nos respectivos papeis, Thiago Lacerda.

A cenografia de inspiração elisabetana de André Cortez e a intervenção fantasmagórica de Alexandre Orion compõem paralelos que salvaguardam a materialidade dos muros, túneis e saídas nos tempos atuais de discursos e exércitos fundamentalistas

Na Grécia Antiga, era comum a comédia suceder à apresentação de uma tragédia no mesmo dia. Havia uma perspectiva cidadã. No caso de Medida por Medida, poderia se pensar em quem leva a culpa no cartório. O corruptor ou o corrupto? Quem seduz ou é seduzido? O sujeito que pratica indecência, convicto, ou o falso moralista de plantão? Não há lugar para verdades absolutas no jogo das variações sobre a moral, o desejo e a heresia. Shakespeare é demasiado humano na gangorra dessa comédia. Em vez de julgar, expõe a régua e o compasso ao público instigado a tirar suas próprias conclusões. A consciência, de novo, é o fiel da balança.

O diretor compartilha da filosofia de que toda crise enceta a oportunidade de novas liberdades. Geram e pedem linguagem. Radicado nos EUA, o niteroiense Ronald George Daniel, de nome artístico Ron Daniels, concebe o díptico com forte mirada à contemporaneidade brasileira. Procedimentos de direção de ator e de cena surgem mais entranhados em sentidos simbólicos e sociopolíticos, se lembrarmos de Rei Lear (2000) e Hamlet (2012).

Fábio Takeo e Luisa Thiré em 'Macbeth'João Caldas

Fábio Takeo e Luisa Thiré em ‘Macbeth’

Essas produções o reconectaram ao país quando já não criava por aqui havia mais de três décadas. Dono de profícua carreira no exterior – desde 1964 –, durante cinco anos ele assinou a direção artística do The Other Place, na década de 1970. À época, esse estúdio de investigação teatral operava praticamente sem orçamento, ainda que vinculado à Royal Shakespeare Company, companhia inglesa da qual também foi diretor associado, sediada em Stratford-upon-Avon, cidade natal do poeta. A especialização no legado do dramaturgo, portanto, implicou driblar contextos de precariedade ou lidar com recursos mais robustos, irradiando montagens de teatro e de ópera em várias regiões do mundo.

Convicto do pressuposto popular ao visitar qualquer peça de Shakespeare – “Não sejamos pretensiosos!”, adverte o diretor, avesso a rebuscamentos de toda ordem –, ele mantém parceria com Marcos Daud na tradução dos textos, principal plataforma de voo. Os diálogos e solilóquios intentam expressar a fala familiar aos grandes centros urbanos, o “português gostoso”, como ele diz.

À equipe, Ron Daniels descreveu as passagens festivas da comédia do Repertório como “blocos de escola de samba”, alas em que as presenças de figuras carnavalescas ou clownescas são pontuadas por números musicais, sob composições originais e ritmos extraídos do berimbau e da rabeca, na concepção de Gregory Slivar.

Já na tragédia, a paisagem sonora da guerra associa o mesmo instrumento tradicional da capoeira à rotação de helicóptero e rajadas de metralhadora. Som e fúria ao fundo ou na superfície da ação. “Camadas que aproximam o espectador da narrativa, dos personagens, espelhando a realidade sem a necessidade de atravessar um nevoeiro histórico”, explica.

Diante das temáticas brutais e sistêmicas de violência, os espetáculos emanam teatralidade com igual contundência, modulando soluções de visualidade, cenografia e movimentação dos corpos. O ícone da caveira, por exemplo, aparece em máscaras, figurinos e adereços. Tanto entre as sombras e manchas vermelhas da ensanguentada Macbeth como na solar, anárquica e não menos eticamente instável Medida por medida.

Cena alegórica no final de 'Medida por medida'João Caldas

Cena alegórica no final de ‘Medida por medida’

O espaço cênico é compreendido como um campo relacional. Abrem-se outras janelas ao espectador, para além das tensões dramatúrgicas e dos momentos em que os atores enunciam o texto diretamente à audiência, conforme a intimidade pública que Shakespeare instaura ao revelar seus personagens por inteiro.

Emprestado da arte contemporânea, o expediente da instalação é incorporado pelo desenho cenográfico de André Cortez, de inspiração elisabetana, com suas cinco entradas, fluxos e refluxos. E pelos painéis grafitados por Alexandre Orion, intervenção fantasmagórica nos subterrâneos da metrópole cindida. Os artistas compõem paralelos que salvaguardam a materialidade dos muros, túneis e saídas nos tempos atuais de discursos e exércitos fundamentalistas que põem até a metáfora em risco de morte.

Traços da memória viva, as singularidades do processo de criação do Repertório remetem à formação do diretor no Brasil, como na fase amadora do Teatro Oficina na virada da década de 1950 para a de 1960, ao lado de José Celso Martinez Corrêa e demais artistas movidos pela inquietude juvenil, experimental, e pelas ideias existencialistas dos escritores Jean-Paul Sartre e Albert Camus. É assim que Ron Daniels revolve e atualiza suas raízes, tocando as faces trágica e cômica de Shakespeare para construir dialéticas sobre a cultura, a realidade e o homem brasileiros.

.:. Publicado originalmente no programa de mediação com o público do Repertório Shakespeare, a convite do Sesc e sob curadoria de Ruy Cortez.

.:. Leia reportagem de Maria Eugênia de Menezes sobre a estreia do projeto, aqui.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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