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Crítica

Consciência em ressonância

5.3.2016  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação

Qual a extensão do poder da arte?  Ela se manifesta ancestral, no caso do músico e compositor Neo Muyanga. Ou presume o calor da hora, a urgência, segundo a performance poético-política assim definida e concebida pelo DJ e ator-MC Eugênio Lima com mais de uma dezena de atuadores. Ambas as práticas e discursos sociopolíticos e criativos complementaram-se na mesma noite no Centro Cultural São Paulo. À apresentação do solo Revolting music – Inventário das canções de protesto que libertaram a África do Sul seguiu-se a ação coletiva Em legítima defesa.
O público da Sala Jardel Filho navegou pelas consciências musical, crítica e cidadã dos artistas negros que interligaram palco e plateia feito ágora africana, o continente-pólis-mãe que teve o Brasil como solo de uma das suas diásporas, a da escravidão, cujas feridas ainda não cicatrizaram.

O sul-africano Muyanga logo avisa sobre a tarefa de dar a ver, sozinho, os cantos de luta que influenciaram sua visão de mundo na infância e na adolescência em Soweto, junto às comunidades afetadas pelo regime de segregação racial, o apartheid. Acompanhado de suas “máquinas”, um piano acústico, violão e pedais que criam efeitos de voz adicionais à habilidade natural de modular o registro vocal, de fato enxergamos e escutamos nele a capacidade de povoar o espaço com sua presença.

Não se trata de show com estrita sequência de músicas. A atmosfera de celebração e rito se faz com despojamento no set de instrumentos, na postura dialógica e bem humorada com o público, nas breves e pacientes introduções a cada canção ou bloco, no tratamento antiespetacular da luz amortecida em brancos e azuis de alguma melancolia – como a lembrar que a tristeza é senhora nessas história de dor e de esperança.

Em sua produção estética em que a melodia e os arranjos soam extensões orgânicas do corpo, Muyanga parece um inventor de poemas que colocam a mensagem de protesto em outros modos de recepção, como o do espiritual e o da sensibilização

Cantando em inglês e, sobretudo, em dialetos africanos, Muyanga concentra na expressão vocal a sua linha de força. A voz é convertida em dispositivo cênico de imantar. Por meio do canto construímos imagens, por exemplo, do líder religioso de origem zulu, Isaiah Shembe (1869-1935), fundador de uma igreja que subvertia a proibição governamental da entrada de negros no local. Ou viajamos nos momentos mais percussivos quando mostra uma composição que tem raízes indianas, indonésias e chinesas, apesar da matriz africana, e emenda uma evocação a Fela Kuti (1938-1997), o ativista e multiinstrumentista nigeriano.

Em sua produção estética em que a melodia e os arranjos soam como extensões orgânicas do corpo, Muyanga parece um inventor de poemas fonéticos, visuais e evidentemente sonoros, numa integração que coloca a mensagem de protesto em outros modos de recepção, como o do espiritual e o da sensibilização. A veemência concreta se permite a delicadeza, também ela poderosa na arte – estamos diante de um criador parceiro do artista plástico conterrâneo William Kentridge, presente na 1ª MITsp com Ubu e a comissão da verdade, junto à Handspring Puppet Company.

Enquanto o pensamento era atiçado pelos afetos e consciências ali encerrados, na frontalidade com o palco e no estreitamento do vão, subitamente fomos recolocados em outra dimensão com os versos dos Racionais MCs: “A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras”, de Capítulo 4, versículo 3. É a deixa para o público girar o pescoço em direção aos fundos da sala e ver a fila de atores negros – a maioria ligada a outros coletivos da cidade de São Paulo – encarregados de propagar por entre as fileiras da plateia, em vários ângulos, outro formato de inventário à maneira da realidade brasileira contemporânea.

Performance 'Em legítima defesa' mobiliza plateiaDivulgação

Performance ‘Em legítima defesa’ mobiliza plateia

Como pesquisador e integrante do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e da Frente 3 de Fevereiro, Eugênio Lima compilou ou sampleou discursos, depoimentos pessoais, músicas, poemas e outras referências sobre racismo, a afirmação da negritude e contextualização histórica da diáspora negra. O público foi exatamente deslocado para enxergar no olho dos homens e das mulheres da performance as desigualdades flagrantes. Ao verbo forte da resistência direta, entreouvimos nuances como a abordagem da homoafetividade e o lançamento do princípio africano do “umbuntu”, originário da cultura Bantu, que significa: “Sou o que sou devido ao que todos nós somos”.

Nessa noite em que se deu margem ao improviso e à rigorosidade formal dos criadores e dos espectadores-criadores, testemunhamos como a arte emana seus poderes quando não admite concessões e ambiciona sua razão poética de ser o invisível e gritar sua existência.

.:. Escrito no contexto da ação da Prática da Crítica na 3ª MITsp, parceria da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, esta formada pelo site Horizonte da Cena, blog Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e site Teatrojornal – Leituras de Cena.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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