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Crítica Militante

O lugar de Qorpo-Santo no discurso crítico

10.5.2016  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Adriana Marchiori

A história da recepção crítica da obra de Qorpo-Santo tem sido a história de sua assimilação a um aparato teórico-poético estranho e anacrônico a ela. Desde sua redescoberta, cem anos após a publicação das peças, o autor gaúcho tem sido lido à luz de correntes europeias modernas, como o teatro do absurdo e o surrealismo, em uma estratégia discursiva que o aliena de seu país e de sua época. A reflexão é oportuna porque, neste 2016, são celebrados os 150 anos da dramaturgia de Qorpo-Santo (suas 17 peças, uma delas inconclusa, foram todas escritas entre janeiro e junho de 1866) e os 50 anos da primeira encenação de sua obra, com a histórica montagem do diretor Antônio Carlos de Sena, em 1966, para três textos (As relações naturais, Eu sou vida; eu não sou morte e Mateus e Mateusa) no Clube de Cultura, histórico reduto de esquerda localizado no bairro Bom Fim, em Porto Alegre[1]. Dois anos depois, o grupo se apresentou no Rio, representando o reconhecimento nacional do escritor, saudado pelo crítico Yan Michalski como um marco que merecia uma reescrita da dramaturgia nacional.

A redescoberta de sua obra se deu em meio à ascensão do “teatro do absurdo”, como o crítico Martin Esslin se referiu à produção de autores como Beckett, Ionesco e Adamov, que por sua vez traduziam a busca de sentido do mundo pós-guerra em uma escrita que colocava em xeque os limites da linguagem com notas de nonsense. Havia notáveis semelhanças entre Mateus e Mateusa, de Qorpo-Santo, e As cadeiras, de Ionesco. Tudo isso alçou o brasileiro à categoria – pretensamente elogiosa – de “precursor do teatro do absurdo”. Posteriormente, o pesquisador Eudinyr Fraga – um dos grandes divulgadores da obra de Qorpo-Santo, tendo organizado uma edição de seu teatro completo – procurou associá-lo ao surrealismo.

Valendo-se de um método que tem algo de arqueológico, uma vertente recente e promissora dos estudos qorpo-santenses tem procurado reinserir o autor na história da cultura e do pensamento nacionais

Esta oposição binária expressa no título de um livro-ensaio de Fraga – surrealismo ou absurdo? – pauta até hoje a recepção crítica da obra teatral do autor, em que pese esforços isolados em outras direções, como a proposta da pesquisadora Denise Espírito Santo de associá-lo a “uma vertente do desvio e da negatividade”[2] do romantismo de um Bernardo Guimarães ou de um Álvares de Azevedo, aproximando-o do que Antonio Candido chamou de “poesia pantagruélica”.

Embora as referências europeias tenham exercido papel importante na fixação do nome de Qorpo-Santo na dramaturgia brasileira, como sustentações aparentemente sólidas inclusive para projetá-lo internacionalmente (o que ocorreu apenas em citações isoladas), a distância temporal proporciona uma visada crítica sobre aquele projeto teórico. Valendo-se de um método que tem algo de arqueológico, uma vertente recente e promissora dos estudos qorpo-santenses tem procurado reinserir o autor na história da cultura e do pensamento nacionais. Trocando em miúdos, trata-se de entender Qorpo-Santo como um autor brasileiro do século 19 que fazia jus a práticas então em voga, como o gosto pela comédia, embora dono de uma dicção singular que o torna um ponto fora da curva.

Exemplo de crítica ao discurso do pionerismo é oferecido por Luís Augusto Fischer em um ensaio sobre o dramaturgo:

É grande a tentação colonizada de tentar inscrever um dos nossos entre os grandes, ainda mais como precursor, a Europa mais uma vez se curvaria ante o Brasil, etc. País colonizado tende a buscar sempre tais compensações em relação aos países centrais, assim como as províncias tendem a fazer em relação ao centro do país. […] Mas não faz sentido, ao menos em termos lineares: precursor tem de produzir eco, ou será para sempre apenas um singular, categoria que, salvo engano, foi postulada desde sempre por Aníbal Damasceno Ferreira (na época mesmo das primeiras montagens, a condição essencial de Aníbal foi defendida de público, com vigor e destemor, por Janer Cristaldo).[3]

Na introdução à Antologia do teatro brasileiro: Séc. XIX – Comédia, organizada por Alexandre Mate e Pedro M. Schwarcz (na qual Qorpo-Santo está presente ao lado de Martins Pena, Machado de Assis e Artur Azevedo, entre outros), João Roberto Faria anota:

Qorpo-Santo é um dramaturgo do nosso tempo, por permitir releituras no palco num nível de experimentalismo incomum. Por outro lado, é inegável que ele dialogou com as tendências dramatúrgicas que conhecia como leitor ou espectador. Assim, apesar de abordar conteúdos que faziam parte do universo da comédia realista, afastou-se da polidez de Alencar, ou da comédia refinada de Machado de Assis.[4]

Da novíssima safra de estudiosos, Maria Clara Gonçalves propõe desvencilhar-se de um Qorpo-Santo mitológico. Em vez disso, procura entendê-lo

não como um gênio, um vanguardista avant la lettre, um mero bufão disparatado ou um louco, mas como um homem de letras, sobre o qual influíram ideias estéticas e filosóficas de seu tempo e também motivações concretas que o levaram a conferir, em seu teatro, feições particulares ao repertório intelectual de que dispunha e às ideologias que defendia.[5]

A pena rumorosa do autor na montagem de 'Santo Qorpo...'Luis Paulot

A pena rumorosa do autor na montagem de ‘Santo Qorpo…’

O cenário é próspero para uma releitura da obra do dramaturgo, que ganhou interesse renovado nos últimos tempos, pelo menos no âmbito acadêmico. Se os seus 130 anos de morte, em 2013, passaram praticamente em branco[6], o ano seguinte viu a estreia, em Porto Alegre, do espetáculo Santo Qorpo ou O louco da província, que funde a vida e a obra do autor, recriando livremente no palco trechos do romance Cães da província (1987), de Luiz Antonio de Assis Brasil, e da Ensiqlopèdia ou Seis mezes de huma enfermidade, a monumental obra de Qorpo-Santo em nove volumes (dos quais são conhecidos apenas seis), que inclui sua produção teatral. A montagem de 2014 estreou no dia 14 de março, em temporada de apenas um mês, mas de alta carga simbólica, que assinalou a reabertura do Teatro Universitário – Sala Qorpo Santo, no Campus Centro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, depois de cerca de seis anos fechado para reforma.

Santo Qorpo tem direção de Inês Marocco, conhecida na cena gaúcha por traduzir cenicamente, com o jovem Grupo Cerco, duas obras de Erico Verissimo – O sobrado (2008), baseada em O tempo e o vento, e Incidente em Antares (2012). Também reunindo um elenco de novos talentos, o Santo Qoletivo reinsere o dramaturgo no contexto do século 19, evocando uma Porto Alegre meio histórica, meio ficcional, na qual – seguindo o romance de Assis Brasil – a biografia de Qorpo-Santo é contraposta aos crimes da Rua do Arvoredo. O episódio é uma célebre lenda urbana porto-alegrense segundo a qual a população, na época, teria se alimentado de embutidos produzidos com carne humana decorrente de assassinatos (as mortes de fato ocorreram, mas não há evidências históricas sobre as linguiças humanas). A dramaturgia é assinada por Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana.

Neste procedimento contextual, a montagem do Santo Qoletivo se distancia de Labirinto – espetáculo de 2011, com fragmentos de textos de Qorpo-Santo, ambientado pelo diretor Moacir Chaves e a Cia. Alfândega 88 nos anos 1960 (época da redescoberta do autor) – mas se aproxima da peça Dr. QS. – Quriozas qomédias (2005), do grupo gaúcho Depósito de Teatro e do encenador Roberto Oliveira, trabalho que também levava à cena o personagem Qorpo-Santo e horrorizou a crítica Barbara Heliodora, quem, por sinal, nunca foi muito fã do autor.

'Labirinto', direção de Moacir Chaves com a carioca Cia. Alfândega 88 Guga Melgar

‘Labirinto’, direção de Moacir Chaves com a carioca Cia. Alfândega 88

Em Santo Qorpo, o consumo de carne humana é metáfora da sociedade moralmente viciada que Qorpo-Santo procura denunciar. Sua política, ainda hoje, é motivo de debate entre leitores e estudiosos: há quem veja em seus textos um elogio ao desvio da norma e há quem o entenda como um moralista acima de tudo. O espetáculo não procura reprimir esta instabilidade: está em cena um certo antecipador do abolicionismo (embora ele mesmo tivesse um escravo) e o misógino (que de fato sempre foi). Mais do que isso, ao elencar quatro atores para viver Qorpo-Santo em diferentes cenas, a diretora materializa um dos princípios do autor: hoje sou um; e amanhã, outro – título de uma de suas peças.

Trazê-lo ao proscênio na forma de personagem é expandir um procedimento que já era seu: ele mesmo se transmutou da vida para o texto em peças como O marinheiro escritor, na qual figura certo Leão (seu nome de cartório, como se sabe, era José Joaquim de Campos Leão) e Um credor da Fazenda Nacional, na qual se identificou com o papel-título. A apropriação de peças de sua autoria na textualidade do espetáculo é engenhosa. Além da inserção de cenas claramente retiradas de peças como Mateus e Mateusa, Eu sou vida; eu não sou morte, A impossibilidade da santificação ou A santificação transformada e Um assovio, outras citações se dissolvem disfarçadamente no roteiro, enriquecendo a experiência do público. Embora o trabalho seja uma defesa apaixonada da lucidez de um homem tido como extravagante em seu tempo, é repleta de comicidade a cena em que Qorpo-Santo enxerga Napoleão III, trazendo à baila uma oportuna interrogação: será que o louco é ele ou somos nós?

O cenário de Martino Piccinini é simples, jogando com poucos móveis, a exemplo das cadeiras (que remete sutilmente à peça de Ionesco), e a iluminação em chiaroscuro de Fernando Ochoa acentua a tragicidade da biografia de Qorpo-Santo em sua heroica luta para provar que não é louco, defendendo-se de acusação da própria mulher. Os figurinos de Rô Cortinhas evocam a época do autor, caracterizando os quatro atores que o interpretam com sobretudo escuro, bengala e cartola e trazendo certa elegância de época para todos os personagens. Se a jovialidade e certa inexperiência do elenco ainda estão presentes dois anos após a estreia, a força e a graça com que defendem seus personagens tornam a montagem uma experiência singular, assim como o homenageado.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Referências:
[1] O diretor relembra o episódio nesta entrevista publicada em 2013.

[2] SANTO, Denise Espírito (Org.). Qorpo-Santo: miscelânea quriosa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 13.

[3] FISCHER, Luís Augusto. Maluco provincial, inventor de talento. In: ______. Coruja, Qorpo-Santo & Jacaré: 30 Perfis Heterodoxos. Porto Alegre: L&PM, 2013.

[4] FARIA, João Roberto. Introdução. In: MATE, Alexandre; SCHWARCZ, Pedro M. (Orgs.). Antologia do teatro brasileiro: séc. XIX – comédia. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012, p. 50.

[5] GONÇALVES, Maria Clara. Dissonâncias do Qorpo: considerações sobre o status do teatro qorpo-santense no panorama dramático brasileiro. Anais Abralic Internacional (2013), v.1, n.2. Disponível em: bit.ly/1RbEMY6. Acesso em: 19 mar 2016.

[6] Reportagem publicada no jornal Zero Hora em 2013 traz reflexões sobre a ocasião.

Ficha técnica:
Santo Qorpo ou O louco da província
Autoria: Roteiro livremente inspirado no romance Os cães da Província, de Luiz Antonio de Assis Brasil e textos de QS
Direção: Inês Marocco
Com: Áquila Mattos, Eduardo Schmidt, Gabriela Boccardi, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar, Ketti Maria, Magda Schiavon, Naomi Luana e Rodolfo Ruscheinsky
Cenografia, arte gráfica e fotos de cena: Martino Piccinini.
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Fernando Ochoa.
Assistência de direção: Gabriela Boccardi e Magda Schiavon.
Dramaturgia: Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana
Orientação musical: Adolfo Almeida Jr.
Criação e execução da trilha sonora: O grupo
Assistência na orientação musical: Eduardo Schmidt
Produção: Jeferson Cabral e Juçara Gaspar
Divulgação: Juçara Gaspar e Eduardo Schmidt

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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