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Crítica Militante

Trema! Festival: a curadoria da urgência

24.5.2016  |  por Francis Wilker

Foto de capa: Eric Gomes

Pode-se caminhar através de um festival como através de uma paisagem. (…) O fantasma do curador-uber, corajosamente criando sua própria obra a partir de obras de arte de outras pessoas não deve ser temido no campo performativo, de forma nenhuma. Pelo contrário, existe sim uma falta de coragem para conferir significado – e não é por modéstia, mas por medo da tarefa

Florian Malzacher

No campo da linguagem o trema se configura como um diacrítico, sinal gráfico utilizado em uma letra para alterar sua realização fonética ou demarcar a independência de uma vogal em relação a vogal anterior. Como verbo, tremer, está associado à ideia de agitar, deslocar, provocar ou sentir tremores. Nas duas acepções, uma palavra associada à alteração. Não por acaso, o lema do pernambucano Trema! Festival de Teatro, criado em 2012, tem como frase de sustentação: “Muda a língua, muda o texto, muda a cena”. Antes de explorarmos um pouco mais os contornos do festival de âmbito nacional que realizou sua quarta edição na cidade do Recife, entre 28 de abril e 8 de maio, sob a curadoria e coordenação do diretor e produtor Pedro Vilela, parece relevante configurar minimamente algumas reflexões sobre o quadro geral dos festivais de teatro no Brasil.

Nos últimos anos os principais festivais de teatro no país têm se deparado com crises que, para além de financeira, são também de sentido e de formato. Olhar-se no espelho gera importantes processos de autoavaliação das iniciativas – mais autocríticas – e dispara novas tentativas de organização, curadoria e programação. Exemplos recentes dessa busca podem ser notados na linha de concepção da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, por Antônio Araújo e Guilherme Marques; na composição da equipe e propostas para o Festival de Curitiba deste ano, por Marcio Abreu e Guilherme Weber; e no formato do Tempo_Festival do Rio de Janeiro, por Bia Junqueira, Cesar Augusto e Márcia Dias, apenas para citar alguns dos principais eventos dessa natureza.

O diretor e curador Marcelo Bones, um dos criadores do site Observatório dos Festivais, aponta em um de seus textos alguns fatores que afetaram de modo a não fazer mais sentido pensar a programação como uma espécie de “vitrine” do melhor da produção cênica nacional. Entre esses fatores ele destaca o fácil acesso às imagens de espetáculos produzidos nos quatro cantos do mundo, por meio da internet, o que diminuiria o aspecto “novidadeiro” dessas criações. Elenca também a ampliação das possibilidades de circulação de obras no país por meio de programas e editais públicos como Prêmio Funarte Myriam Muniz, Palco Giratório do Sesc, BR Distribuidora de Cultura ou mesmo fundos estaduais que apoiam a viagem de coletivos a outras regiões.

'Isso é para a dor', com a Primeira Campainha (MG) Eric Gomes

Cena de ‘Isso é para a dor’, com a mineira Primeira Campainha

Além dos pontos levantados por Bones, parece cada vez mais complexo pensar o que seria eleger o melhor da produção cênica. Sob qual ponto de vista? Considerando quais aspectos? É coerente com a diversidade de linguagens artísticas criar essa espécie de ranking do que seria mais representativo? Como olhar para a diversidade do teatro contemporâneo levando em conta as dimensões continentais e as diferentes condições de produção no território nacional? São algumas das indagações possíveis sobre o tema.

É nesse contexto que parece ter entrado em crise a narrativa comum do que seria um teatro brasileiro de qualidade. Narrativa assumida durante anos pelos nossos principais festivais de grande porte, transformando-os, em alguns casos, em mais do mesmo, ao passo que geravam um recorte hegemônico do que deveria circular por suas programações. Numa outra perspectiva, foram esses mesmos festivais que possibilitaram a tantas cidades ter acesso a criações emblemáticas de nossa cena em tempos de total ausência de políticas públicas voltadas à circulação de espetáculos. Vale ressaltar ainda que mesmo os grandes festivais amargam a falta de políticas que assegurem sua continuidade, apesar de cumprirem importante papel na difusão das artes cênicas, o que torna cada vez mais difícil pensar um trabalho de curadoria mais estruturado e planejado.

Uma curadoria que coloca em evidência as mulheres, questões raciais, cultura indígena, travestis, educação e ativistas sociais parece afirmar a última frase de um grito de protesto entoado nas ruas virtuais e reais de nosso país: ‘Se há golpe, vai ter luta!’

É a partir desse contexto mais geral que faremos algumas aproximações ao Trema! Festival em busca de aspectos que possam contribuir para a reflexão sobre curadoria e desenvolvimento de jornadas de pequeno porte. O Trema! nasce bastante vinculado à noção de teatro de grupo e associado às experiências de circulação e troca do grupo pernambucano Magiluth com coletivos teatrais Brasil afora. Desse modo, há, no seu mito de origem, evidente desejo de diálogo e compartilhamento com outros artistas, bem como proporcionar que espetáculos que não figuravam nas programações de importantes festivais locais, como o Festival Recife do Teatro Nacional e o Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco, pudessem ser vistos na cidade. No que diz respeito à curadoria, Vilela denomina “curadoria do possível”, dada a escassez de recursos para a realização do festival.

A trajetória do Trema! apresenta algumas estratégias que, talvez, configurem modos de sobrevivência para festivais de pequeno porte. Entre elas:

– Prospecção de grupos com apoio para circulação (contemplados no Prêmio Myriam Muniz, por exemplo) e que interessem à curadoria do festival;

– Articulação de parceria com a instituição Sesc PE e com empresas geralmente focadas na prestação de serviços e não em patrocínio financeiro direto;

– Parceria com festival de outra cidade, de modo a compartilhar programação e otimizar custos, como na segunda edição, em 2013, com o Festival de Teatro do Agreste (Feteag). A parceria e o estabelecimento de ações coordenadas com outros festivais não é uma prática apenas do Trema!. Tem sido comum entre organizadores a partilha de produções internacionais ou mesmo coproduções, como na experiência do espetáculo Congresso internacional do medo (2008), do Grupo Espanca!, acolhido em circulação por meio do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil. Ou ainda o projeto de Internacionalização da Dramaturgia Espanhola capitaneado pelo Tempo_Festival em 2015, unindo a Acción Cultural Española – AC/E e os festivais Porto Alegre em Cena – Festival Internacional de Artes Cênicas, Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – Fiac e Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco, além da Editora Cobogó viabilizando a tradução, publicação e montagem de leituras dramáticas de quatro textos inéditos de autores espanhóis.

Essas dinâmicas que caracterizam os modos de produção do festival desde sua origem, quatro anos atrás, parecem figurar à margem dos processos mais vinculados ao patrocínio cultural que animam os grandes festivais. Desse modo, possibilitam ao Trema! uma quase contramão à lógica praticada por alguns patrocinadores, marcadamente interessada nos espaços publicitários, no alcance da mídia espontânea, em números de atendimento, embora já seja possível identificar, mais recentemente, editais e projetos de algumas instituições que se interessam por novos formatos e que se desvinculam da noção de produto, como é o caso do Programa Rumos Itaú Cultural.

No que diz respeito às parcerias públicas, somente na recente edição o Trema! iniciou um tímido diálogo com os governos municipal e estadual, repercutindo apoio ainda mínimo ao projeto. Talvez seja interessante apontar que no tensionamento entre a relação com patrocinadores e a busca por novos formatos e propostas falta aos próprios curadores e coordenadores dos festivais, às vezes, encontrar forças para redimensionar os seus desenhos e arriscar-se ao novo, condição tão inerente à criação artística.

Sobre essas dinâmicas e articulações que permitem a realização do festival, Vilela fala de suas motivações: “Uma busca por estabelecer outras vias de diálogo com patrocinadores e parceiros que passam fortemente pelas minhas necessidades como artista. Nos interessa outra rotação em torno do teatro que não seja baseada exclusivamente na perspectiva do lucro”.

É também do olhar para a realidade local que surge mais tarde, em junho de 2015, a Trema! Revista de Teatro de Grupo, financiada pelo Fundo de Cultura de Pernambuco. “Em Recife, não existe uma revista exclusiva de teatro. Criamos uma por perceber essa necessidade e entender a revista como meio de formação, dado seu aspecto pedagógico e reflexivo, bem como de registro, de memória”, afirma. A publicação procura analisar temas contemporâneos a partir do ponto de vista do teatro, porém, que possam mobilizar interessados de diferentes áreas. Nas suas cinco primeiras edições, convidou artistas e pesquisadores de distintas regiões do país a refletirem sobre temas como: especulação, violência, ficção, corpo e facção. Além disso, a cada edição é veiculado o perfil de um grupo pernambucano como modo de difundir os coletivos do estado.

Para Vilela, Trema! se configura como uma plataforma que possibilita integrar diferentes iniciativas que têm no seu centro o fenômeno teatral. “Trema! não é um grupo de teatro, mas uma plataforma que articula diferentes linhas de ação em torno do teatro, como o festival e a revista que tem outro núcleo de trabalho. Agora em junho iniciaremos um coletivo de criação que será o Trema Teatro. E por fim a Trema Produção, que pretende oferecer serviços locais mais especializados. Essa multiplicidade de ações alimenta também a vontade de trabalhar com diferentes colaboradores, caso de Olívia Mindêlo e de Thiago Liberdade na realização da revista e de Mariana Rusu, do festival”, explica o curador.

Retomando a discussão sobre o festival, um aspecto que chamou a atenção na edição de 2016 foi a ampliação do recorte, não mais limitado à produção do teatro de grupo. Talvez essa revisão se expresse como espelhamento da própria trajetória do artista que se desvincula do grupo Magiluth após oito anos de trabalho. Sobre essa mudança, argumenta Vilela: “Pesquisa de linguagem continuada é um norte para a curadoria, porém, alguns artistas que têm desenvolvido trabalhos importantes não estão mais vinculados a grupos. Por exemplo, a Grace Passô, que tem um trabalho continuado, mas desvinculado do Grupo Espanca!”.

Grace Passô em 'Grãos de imagem: vaga carne'Bernardo Cabral

A atriz Grace Passô em ‘Grãos de imagem: vaga carne’

Apesar dos desafios de produção, o movimento que o festival parece realizar em sua quarta edição, integrando nove espetáculos, é a afirmação de um pensamento curatorial. Se antes as possibilidades e condições de circulação dos próprios grupos pareciam pautar, em alguma medida, as escolhas de curadoria, em 2016, sem desconsiderar esse aspecto e as estratégias de sobrevivência que o festival vem consolidando desde sua origem, possivelmente outros motivos tenham sido definidores da programação.

Diante das urgências de um Brasil dividido entre projetos distintos de nação, radicalmente polarizado entre defensores e detratores do governo da presidenta Dilma Rousseff, eleita com mais de 54 milhões de votos, o Trema!, feito antena parabólica a antever o agravamento da crise política que culminaria no afastamento da presidenta, opta por uma curadoria dessa urgência e toma claramente um partido nessa discussão.

“Buscamos trabalhos de destaque que trouxessem questões que precisam ser debatidas urgentemente. Já que lá fora, na rua, está tão difícil debater, ânimos exaltados, uma sociedade tão polarizada, que o teatro possa ser esse lugar onde seja possível elevar o nível das discussões, nos colocar em exercício de reflexão e discussão novamente”, diz Vilela.

Se na primeira semana de governo do presidente provisório Michel Temer foram tomadas medidas que fragilizaram os movimentos sociais e culturais, como a extinção do Ministério da Cultura – MinC (que se tornaria uma secretaria subordinada ao Ministério da Educação) e também do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, entre outras pastas, o Trema! se antecipou ao forte movimento de ocupações realizado por artistas e movimentos sociais em órgãos ligados ao MinC em pelo menos de 22 estados e que culminou no recuo do presidente interino, pressionado a recriar o Ministério da Cultura dias depois.

De muitos modos a curadoria do Trema! estabeleceu uma ação política em resposta ao contexto brasileiro, como deram a ver algumas experiências:

– O grupo mineiro Primeira Campainha, formado por mulheres, com sua poética existencial e que opera na plagicombinação de linguagens;

– O grupo cearense As Travestidas, que apresentou no tradicional Teatro de Santa Isabel o seu Quem tem medo de travesti?, espécie de peça-manifesto que aborda questões relativas ao cotidiano de travestis e transexuais;

– O celebrado Jacy, do grupo potiguar Carmin, que toma a vida privada de uma mulher desconhecida para traçar uma análise da conjuntura política do Brasil e, mais precisamente, do Rio Grande do Norte, partindo da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias. Em uma das cenas, o grupo desenha a árvore genealógica do poder político no seu estado, evidenciando uma verdadeira oligarquia;

Grãos de imagem: vaga carne, recente solo da atriz, diretora e dramaturga mineira Grace Passô, em que uma voz toma o corpo de uma mulher negra para abordar aspectos como identidade, pertencimento numa busca por autoconhecimento e afirmação;

– Entre os grupos de Pernambuco, o coletivo Grão Comum apresentou pa(IDEIA) pedagogia da libertação, que tem como tema a educação brasileira e a trajetória de Paulo Freire. Já o grupo Totem levou à cena Retomada, criação a partir de pesquisa de rituais sagrados com os povos indígenas do estado (Pankararu, Xucuru e Kapinawá). Soledad foi o espetáculo da Cria do Palco que abordou a história da militante paraguaia Soledad Barrett Viedma (1945-1973), que atuou no Recife junto a movimentos sociais. Até mesmo o único trabalho voltado para crianças, Vento forte para água e sabão, montagem da Cia. Fiandeiros, parte da inusitada relação de amizade entre uma bolha de sabão e uma rajada de vento, um encontro de alteridades.

Uma curadoria que coloca em evidência as mulheres, questões raciais, cultura indígena, travestis, educação e ativistas sociais parece afirmar a última frase de um grito de protesto entoado nas ruas virtuais e reais de nosso país: “Se há golpe, vai ter luta!”.

Olívia, Vilela, Mariana e Thiago no lançamento da revista 'Trema!'Lucas Emanuel

A partir da esq., Olívia, Vilela, Mariana e Liberdade no lançamento da revista

Embora a curadoria de Vilela tenha demonstrado forte capacidade de dialogar com o momento presente, o Trema!, como jovem festival que é, e por sua natureza menos vinculada à lógica do mercado cultural, talvez possa conseguir pistas para questões que, possivelmente, afetem a outros festivais:

– Como fazer tremer a cidade por meio de novos modelos de relação com o festival?

– Como fazer tremer os artistas por meio de redimensionamentos de formatos e geração de espaços de convívio?

– Como fazer tremer o público ao convidá-lo a reinventar os seus modos de ser espectador?

– No seu caso mais específico, como articular de modo mais potente e explícito a revista e o festival?

O curador e pesquisador alemão Florian Malzacher, que ministrou em 2015 uma rápida oficina no Goethe Institut de São Paulo – por iniciativa da MITsp em parceria com o Observatório dos Festivais –, argumentava sobre a noção de uma curadoria performativa, definida por ele como aquela que entende a si mesma como a criação de situações sociais estruturadas no espaço e no tempo. Intuo que duas situações que pude vivenciar este ano possam convergir com essa noção de curadoria que extrapola o entendimento comum da função. Portanto, recorro a elas para encerrar as reflexões aqui compartilhadas.

Noite de 29 de abril de 2016, Teatro de Santa Isabel, no Recife. O discurso das Travestidas em contraste com a imponência elitista de um teatro burguês. No elenco, duas travestis ganham a boca de cena.

Noite de 7 de março de 2016, Teatro Municipal de São Paulo. Um grupo de atrizes e atores negros ocupa o teatro após a apresentação de 100% São Paulo, performance-manifesto do coletivo alemão Rimini Protokoll que discute as questões raciais no Brasil incorporando cidadãos não-atores. Em um momento da intervenção, os artistas contam quantos espectadores negros estão presentes no teatro. Após a contagem que revela uma assustadora minoria, uma frase não parou de ecoar em mim: “Plateias podem ser violentas”.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

.:. O site do Trema! Festival de Teatro.

Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.

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