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Crítica Militante

Atos de liberdade crítica

14.6.2016  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Bob Sousa

Vive-se atualmente no Brasil um daqueles momentos históricos em que se torna plenamente possível compreender a força das narrativas socialmente compartilhadas para interferir na imaginação pública. Uma vez criadas, e bem difundidas, podem mudar os rumos da sociedade. Por outro lado, o momento também é propício para pensar como são moldadas tais construções simbólicas. Oferecer ao espectador a possibilidade de um exercício lúdico de aguçamento do espírito crítico sobre esses relatos é um dos principais atributos dos solos do ator Celso Frateschi, O grande inquisidor, e da atriz Denise Weinberg, O testamento de Maria.

Ambos têm como eixo de suas dramaturgias o ato de interpelar fabulações há muito enraizadas na cultura ocidental e, portanto, norteadoras de valores e comportamentos. Caberia aos dois monólogos a designação de teatro de ideias, pela potência dos argumentos, porém a forma é a da arte, não do palanque ou parlamento. Mobilizam o corpo, as emoções e a sensibilidade, tanto dos artistas quanto dos espectadores. Os temas são de ordem social e coletiva, mas o tratamento dado a eles tem a dimensão do indivíduo e oferece fruição prazerosa.

Trata-se de trabalhos com forte potencial de empatia porque moldados, desde os textos originais, na direção oposta da imposição de um ponto de vista, característica plenamente apreendida pelos dois intérpretes, cuja atitude diante do espectador, ao qual se dirigem diretamente em muitos momentos, é a do convite à indagação, e não necessariamente à adesão. O jogo proposto é o de explorar novos ângulos para o exame de acontecimentos cujas versões historicamente sedimentadas dificilmente haverá, na plateia, quem desconheça.

Denise Weinberg e Celso Frateschi são formados em coletivos teatrais e acostumados a participar de decisões sobre repertório levando em conta a mediação entre arte e sociedade

Dirigido por Roberto Lage, o solo de Frateschi é fragmento do romance Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e gira em torno da passagem dos evangelhos em que Jesus é tentado três vezes no deserto, e faz parte da chamada Trilogia do Subterrâneo, montagens compostas por textos do autor russo, que têm Frateschi como ator. O primeiro solo, O sonho de um homem ridículo estreou em março e o último, O subsolo, está previsto para julho. Na adaptação cênica, feita em parceria pela dupla, ator e diretor, o mesmo homem conta as três diferentes histórias, se é que se pode chamar assim a análise que o personagem faz de sua própria consciência e posicionamento ético no mundo a partir dos fatos por ele relatados.

O testamento de Maria, direção de Ron Daniels para o monólogo escrito pelo irlandês Colm Tóibín, também está fundado em uma narrativa religiosa que transcende o âmbito restrito da fé. Nesse caso, o registro nos evangelhos da imagem da mãe de Jesus Cristo que, mesmo para quem não professa do credo cristão e de dogmas como o da virgindade e da anunciação, ainda possui, em pleno século XXI, força normativa do comportamento feminino. Os contornos desse desenho permanecem validados em amplos setores das sociedades ocidentais, quase todas fortemente impregnadas dos valores da cultura de origem judaico-cristã.

É da sabedoria popular que quem conta um conto, aumenta um ponto. A proposta de (re)humanizar a mãe de Jesus por meio justamente do ato de limpar dessa figura o que religião acrescentou de abstrato é apenas o primeiro e mais evidente procedimento artístico em O testamento de Maria. Traço intensificado na montagem brasileira em virtude da opção radical de despojamento. No palco, apenas uma cadeira, um maço de folhas de papel e um praticável sobre o qual a atriz pisa descalça com um figurino que remete à rusticidade típica da dona de casa pertencente à base da pirâmide social. A trilha musical, executada ao vivo pelo seu autor, o compositor Gregory Slivar, ajuda a adensar a atmosfera com sonoridades distantes no tempo, enquanto estabelece um discreto, mas perceptível diálogo com a atriz.

Denise Weinberg e Gregory Slivar: sonoridades dialógicasJoao Caldas Fº

Denise Weinberg e Gregory Slivar: sonoridades dialógicas

Porém, ainda mais relevante do que ação de subtrair excessos é a de trazer de volta à reflexão o que geralmente é aplainado nas versões oficiais: as contradições, as vozes dissonantes, as hesitações, os equívocos, as traições, os conchavos. A narrativa de Maria restaura a complexidade intrínseca aos movimentos coletivos, assim como as tentativas de manipulação sobre aqueles que possuem o desejo legítimo de justiça e transformação do mundo. São as arestas apagadas não exatamente pela ação do tempo, de modo natural, mas pela ação do poder masculino, que dão relevância às memórias de Maria flagradas apenas algum tempo depois da crucificação.

Para manter o foco sobre o contraponto entre a intricada teia do vivido e as posteriores simplificações heroicizadas o autor faz uso de um recurso simples, mas eficaz. Maria está sob a proteção, melhor seria dizer vigilância, dos amigos do filho imbuídos da tarefa de fazer o primeiro registro do evangelho, o chamado Novo Testamento. Ela os chama de guardiões e seu desabafo, contra eles, tem origem na percepção de que a história está sendo elaborada por meio de uma ótica muito particular, fundada em um tipo de interesse que ela, analfabeta, e assim impedida de decifrar as letras naquele calhamaço de papeis, não consegue apreender, mas cuja extensão intui.

Pode-se dizer que o autor irlandês não inventa nada, trabalha com relatos conhecidos como a ressurreição de Lázaro, o milagre da transformação de água em vinho, mas o relato de Maria permite enxergar uma geografia acidentada onde parecia só haver superfícies planas. Vale atentar para o alvo central da crítica: a valorização do rito do sacrifício, essa espécie de negociação com a matéria preciosa da vida.

Milenar, indelevelmente registrado desde a Ilíada, de Homero (o comandante do exército grego Agamennon sacrifica sua filha Ifigênia no altar da deusa Artemisa, a quem ele havia ofendido, para que os ventos voltem a soprar e a frota, parada em Áulis, possa seguir para a Guerra de Troia), esse ritual, também citado no Antigo Testamento (Deus ordena a Abrão que mate e queime em oferenda seu único filho Isaque), está na base do evangelho: a morte do cordeiro que redime os pecados da humanidade. A relevância da negação de tal fundamento, no texto, não escapa à atriz que valoriza essa ação em sua minuciosamente elaborada partitura físico-emocional.

Denise Weinberg deixa evidente que não é o corpo santificado que entra em cena, mas o corpo carne de uma mãe que perdeu um filho de morte terrível. Embora assuma a “voz” de Maria, em nenhum momento o faz pela via da ilusão em busca de se confundir com tal figura. Ao não se esconder atrás da personagem e falar diretamente ao espectador, ela atua no sentido de não deixar a plateia perder a consciência de estar partilhando de um encontro teatral, um lugar onde a imaginação é livre. Nessa liberdade reside a potência crítica da arte, em qualquer tempo.

Tal qualidade de atuação é outro aspecto comum, aos solos de Frateschi e Weinberg. Conexão que não existe por acaso. Ambos são artistas formados em coletivos teatrais e acostumados a participar de decisões sobre repertório levando em conta uma série de variantes, desde a mediação entre arte e sociedade, passando pela análise do panorama político-social, interesses e inquietações dos criadores envolvidos até as condições econômicas de produção e de recepção.

Weinberg é uma das fundadoras do Grupo Tapa (em 1974, no Rio de Janeiro, desde a fase amadora) ao qual esteve diretamente vinculada por cerca de 30 anos seguidos, assumindo muitas vezes o protagonismo. Não por acaso O testamento de Maria é o seu primeiro monólogo, nunca antes solitária em cena. Na mesma década de 1970 em que nascia o Tapa, Frateschi iniciou sua trajetória já em estreita articulação entre arte e militância tendo participado da 1ª edição do Teatro Jornal, dirigido por Augusto Boal no histórico Teatro de Arena. Desde então ambos buscam manter as metas estabelecidas na juventude. No trabalho de artistas assim, as temáticas e experiências formais costumam ganhar o primeiro plano, não a vaidade pessoal, por mais virtuosa que seja a elaboração.

Diferentemente do solo da atriz, não é o despojamento, mas aquilo que os criadores definem como “menor grandeza” a opção estética da Trilogia do Subterrâneo: uma ampla gama de pequenos gestos, de expressões faciais sutis, por vezes apenas uma ironia no olhar, coreografias mínimas de tessitura esmerada. É assim que Lage e Frateschi criam a movimentação cênica no reduzido palco do Teatro Ágora que ganha volume e densidade devido aos elementos cenográficos criados por Sylvia Moreira na mesma linha de precisão, discrição e multiplicidade.

Frateschi vai a Dostoiévski: crise de valores éticosBob Sousa

Frateschi vai a Dostoiévski: crise de valores éticos

À poética de Dostoiévski (1821-1881), amplamente estudada, toda aproximação ligeira corre o risco da redução, conscientemente enfrentado nesta crítica. É muito comum citar a indagação sobre a existência Deus como uma das chaves de sua literatura. Porém, mais do que uma questão de fé, é a derrocada de todo um sistema de valores éticos baseado em figuras irradiadoras da autoridade – Deus e seus representantes, padres, pastores, reis, czares, pais – que entra em crise.

No romance original, o fragmento nominado O grande inquisidor é fruto de um diálogo entre dois dos irmãos Karamazov – o ateu Ivan e o monge Aliócha. O primeiro assume ser o autor do relado, que ele chama de poema, no qual Jesus retorna à Terra na Espanha do século XV e, ao atrair admiração popular por sua bondade e seu milagres, é preso pelo Santo Ofício.

O que se segue é o discurso de um inquisidor tomado por forte convicção de que o prisioneiro é mesmo o filho de Deus. Diante do cativo silencioso, ele defende o projeto de poder da Igreja, que se confunde com o seu próprio, mesmo com a consciência de que se trata de um desvio (para ele necessário) dos preceitos éticos cristãos originais. Um discurso que vai aos poucos revelando suas contradições internas e as dúvidas de quem o está criando.

É a segunda vez que Frateschi encena esse texto, a primeira com direção de Rubens Rusche (2010), mas a possibilidade de traçar paralelos com questões da atualidade se acentua agora. Se as crises, e as desordens que provocam, são necessárias e produtivas para mudar uma ordem injusta e realizar transformações, também trazem incertezas, e a angústia coletiva decorrente abre espaço para os salvadores (da pátria, dos homens, das almas). Há sempre alguns deles de plantão.

É possível o estabelecimento de uma sociedade baseada unicamente na racionalidade e organizada em torno de acordos entre homens e mulheres de subjetividades autônomas? E se apenas alguns conseguirem conviver com tal liberdade responsável? Bastaria para o estabelecimento de uma sociedade justa? E se a maioria sucumbir à manipulação de uns poucos que ocuparão o vazio da autoridade extinta? Se há oportunistas é também porque há sempre pessoas prontas a abrir mão de sua autonomia e liberdade em troca de segurança? São essas algumas das perguntas que saltam da argumentação do personagem central de O grande inquisidor.

No que diz respeito à recepção, os solos de Frateschi pedem o oposto da adesão. O espectador realmente mobilizado muito provavelmente viverá um processo intenso de discussão silenciosa com o que vê e escuta. Como afirma o linguista Mikhail Bakhtin em seu difundido estudo Problemas da poética de Dostoiévski, os heróis do romancista russo não são objetos a serviço da voz de um autor, não são tipos sociais ou psicológicos bem definidos. São seres humanos, pensam no momento mesmo em que falam e, por isso, são inacabados.

Cada um dos protagonistas dos solos de Frateschi claramente fala para investigar a própria existência, e o sentido dela, em articulação com o mundo ao redor. Em cada um deles, o ponto de vista se altera nesse processo – não por acaso o ato da fala é instrumento da psicanálise. Poderia ser banal, mas é Dostoiévski. Como observa Bakhtin, “a todas as personagens centrais é dado pensar nas alturas e nas alturas buscar, em cada uma delas há uma ideia grandiosa e não resolvida”.

Ao examinar a própria consciência e escavar suas memórias, as personagens têm a coragem de detectar dentro de si, não sem alto custo emocional, também a mesquinhez, a covardia e o escapismo. A confissão do ato vil sempre contornada nas narrativas oficiais envolvendo figuras públicas é mais um ponto de conexão entre os solos da Trilogia do Subterrâneo e O testamento de Maria. Finalmente, para além dos temas tratados, os solos propõem um valioso exercício de liberdade crítica.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
O grande inquisidor
Onde: Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa, 664, Bela Vista, São Paulo, telefone  11 3284-0290)
Quando:  Sextas, às 21h30; sábados, às 21h; e domingos, às 19h
Quanto: R$ 60 e R$30 (meia)
Duração: 55 minutos
Capacidade: 50 lugares
Acessibilidade: sim

Ficha técnica:
Autoria: Fiódor Dostoiévski
Adaptação: Celso Frateschi
Com: Celso Frateschi
Direção: Roberto Lage
Cenografia e figurinos: Sylvia Moreira
Iluminação: Wagner Freire
Trilha sonora: Aline Meier
Imagens: Eliza Gomes
Comunicação: Pedro Becker
Assessoria de imprensa: Baião de 3
Operador de luz: Osvaldo Gazotti
Operador de som e vídeo: Luiz Campos
Manutenção: Carlos Alberto Ferreira Lopes e Marcelo Ferreira Lopes
Produção: Ágora Teatro

Atriz fala diretamente ao espectador e sua consciênciaJoão Caldas Fº

Atriz fala diretamente ao espectador e sua consciência

Ficha técnica:
O testamento de Maria
Texto: Colm Tóibín
Tradução: Marcos Daud e Ron Daniels
Concepção, adaptação e direção: Ron Daniels
Com: Denise Weinberg
Música original e execução ao vivo: Gregory Slivar
Cenografia: Ulisses Cohn
Figurino: Anne Cerruti
Iluminação: Fábio Retti
Curadoria artística: Ruy Cortez

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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