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Crítica Militante

A morte é fértil

20.7.2016  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Reprodução

O sentido instável, múltiplo, das representações da morte na obra oceânica de William Shakespeare (1564-1616) é o assunto de Shakespeare’s dead (Shakespeare está morto), livro de Simon Palfrey e Emma Smith, professor de Literatura Inglesa e professora de Estudos Shakespearianos, ambos da Universidade de Oxford. A dupla de ensaístas ajuda a celebrar, em trabalho nada mórbido, os quatro séculos de passamento do poeta.

Em volume fartamente ilustrado, Palfrey e Smith percorrem diversas peças a partir de certos temas, que podem ser a visão da morte, a morte na comédia, sexo e morte, histórias inglesas, a morte no palco. Escrevem sem preocupação excessivamente didática: dispensam a cronologia e usam de modo discreto a tradicional (e funcional) distinção entre textos históricos, tragédias e comédias geralmente aplicada às 38 peças shakespearianas. Mas os autores se expressam de maneira elegante e clara, considerada a densidade dos temas.

Shakespeare não se alinha estritamente a nenhuma doutrina. Permanece fiel à natureza dialética do teatro – apoiada no desacordo ou, quando menos, na diversidade dos pontos de vista sobre todas as coisas

O capítulo de abertura chama-se Algo após a morte e começa por citar o célebre solilóquio a que todos voltamos – engastado na primeira cena do terceiro ato da tragédia Hamlet, escrita em 1600. A fala solitária do príncipe segue a impressionar leitores e espectadores porque se afasta das escoras ideológicas ao admitir e ressaltar o medo da morte, sentimento que persiste apesar das esperanças que as religiões oferecem. O solilóquio sublinha o quanto as crenças consoladoras, conciliatórias, são frágeis, ou seja,reconhece que o território depois da vida é mesmo “o país ignorado de onde nunca ninguém voltou”.

“A mais famosa fala em Shakespeare prende-se ao terrível mistério da vida após a morte”, constatam os autores, de saída. Eles citam trecho do solilóquio:

Morrer dormir.
Dormir, talvez sonhar. Eis o problema:
Neste sono mortal que sonhos vêm,
Abandonadas as roupas carnais –
Nós perguntamos.
[…] Quem sofreria
Gemendo e suando numa vida mísera
Senão por temor de algo após a morte
– País não descoberto de onde nunca
Ninguém voltou – o qual nos paralisa
E nos faz tolerar os nossos males
Em vez de voar para o desconhecido.

“Com profunda ironia, a morte torna-se matriz da vida”, dizem os autores. E analisam:

O medo sentido por Hamlet não é simplesmente o de que existimos no escuro; nem o de que a perspectiva da morte gera o terror existencial de não ser. Curiosamente, é quase o oposto disso. O medo é de que, na morte, nós permaneçamos. Ou, mais exatamente, que consciência e autorreflexão perdurem. Se a morte fosse de fato esquecimento, se trouxesse um fim para o sofrimento e a frustração, para desejo e memória, então deveríamos desejar “piedosamente” estar mortos. Este é o sombrio anelo na imortal linha de abertura da fala: “Ser ou não ser, eis a questão”. Não existir é a mais doce, a mais feroz aspiração de Hamlet. Mas continuar a existir depois que a vida termina seria insuportável – e então ele consente em sofrer.

'Hamlet, Horatio, Marcellus and the ghost' (1796), gravura de Robert Thew, a partir de Henry FuseliReprodução

‘Hamlet, Horatio, Marcellus and the ghost’ (1796), gravura de Robert Thew, a partir de Henry Fuseli

Pode-se arriscar uma interpretação um pouco diversa. O solilóquio menciona textualmente “o medo (pavor, terror) de alguma coisa após a morte” (“the dread of something after death”). A interpretação dos autores é, sem dúvida, plausível: há o pavor de pura e simplesmente perdurar depois do corpo, para além da vida como a conhecemos, apoiada neste “invólucro mortal”, estas roupas carnais.

Mas ficamos a pensar se essa “alguma coisa”, esse “algo” não está ali a supor, a sugerir um complemento, um adjetivo que designasse a possibilidade de alguma coisa… terrível. O que tememos seria então essa possível natureza má do que haja depois da vida; o medo não é de que exista outra vida além desta, mas de algo perigoso, temível, a que a morte nos possa conduzir. Essa interpretação alternativa parece pensável simplesmente porque não se sabe o que existe para depois do corpo. Tememos por não saber.

Não creio que se possam resolver essas flutuações de compreensão e de sentido facilmente; talvez nunca se dissipem. De todo modo, “as perplexidades de Hamlet tocam as mais profundas questões espirituais da época de Shakespeare”, dizem os autores, partindo da peça para o seu entorno social. Eles contrastam a fé católica e a protestante, dois caminhos rivais, supostamente contrários um ao outro, que se ofereciam (e se oferecem) às mentes ocidentais.

Autoconsciência moderna

Para a fé católica, as coisas seriam relativamente simples, avaliam Palfrey e Smith. Aja virtuosamente, observe os mandamentos, confesse os seus pecados, faça o que o padre manda fazer, e o caminho estará limpo quando a hora chegar. Já para Lutero, líder do cisma protestante desde as teses de 1517, tal concepção seria “um grotesco libelo contra Deus”. A verdade é outra: “Sabemos pouco e merecemos menos”, diria Lutero, em síntese.

Devemos, pois, nos entregar absolutamente a Deus, como fez Cristo, dizem os autores parafraseando o credo luterano. “Só podemos ser salvos pelo dom espontâneo da graça de Deus, manifestada como fé na Paixão de Cristo, e revelada na verdade das palavras sagradas”. “Lutero descobriu uma perigosa, radicalmente particular relação entre Deus e o indivíduo”, que importa na vocação sacerdotal “de todos os crentes”; essa vocação sacerdotal corresponde à capacidade de compreender a palavra divina, talento que todos teríamos; compreendemos o verbo revelado aos profetas, a Cristo e aos apóstolos, fixado na Bíblia.

Emma e Simon procuram esmiuçar a ética luterana: “Mas realmente ser um crente, com sua dura renúncia à liberdade, poder e escolha, é a mais árdua das tarefas. Não cessa a angústia, porque não existe fé sem angústia. A única vida verdadeira é a do tormento à maneira de Cristo, girando na voragem do pecado na esperança de que Deus nos venha libertar”.

O fato é que, quando a morte comparece direta ou indiretamente na cena cômica, tende a sabotar o riso, enervando-o, como se dá em Nelson Rodrigues

Feitas as contas, acrescento, nem católicos nem protestantes se emancipam. O livre-arbítrio dos primeiros tem como fronteira o pecado; e a graça divina dos luteranos e calvinistas não contemplaria os que usassem a liberdade de ler diretamente o texto sagrado interrogando-o ou negando-o. A liberdade do fiel é a servidão voluntária. Não foi o que Lutero quis dizer com servo-arbítrio?

A doutrina luterana da justificação pela fé “teve a mais profunda influência sobre a primitiva autoconsciência moderna (early modern self-consciousness) – uma consciência definida pela presença imanente e pelo horror iminente da morte”. O horror aqui é o de não ser digno da graça, o de não vir a ser salvo.

Deve-se reconhecer, com os autores, que a liberdade (relativa e ambígua) de acesso ao texto bíblico, promovida pela Reforma – que implica uma assembleia de fiéis alfabetizados –, tenha sido decisiva para as interrogações renascentistas, das quais o solilóquio hamletiano é um exemplo eloquente. Mas o que o solilóquio parece dizer prende-se antes ao país ignorado, não descoberto, ao fato mesmo de que não sabemos se há alguma coisa depois da morte – e em que consiste.

Ou seja, em Hamlet não se trata de salvação, dado que já não sabemos o que pode ser a salvação. A descrença ou o ceticismo substitui a fé: nesse sentido,o dito no solilóquio não se assimila a nenhuma crença, ainda que a reflexão feita ali descenda em certa medida das crenças preexistentes. Nele, deu-se um passo para além delas, para além do que elas eram em seu tempo.

Existir não é mais seguro que conhecer; o conhecimento mostra-se “radicalmente contingente”. Os autores afirmam: tudo o que você acredita saber ou possuir – tudo o que você acredita ser – pode repentinamente sumir, ver-se surrupiado, levado embora. Mas não se trata, é claro (acrescento), dos castigos temidos por católicos ou protestantes, mas de algo atado à raiz e às estruturas da vida humana. O que o solilóquio afirma de mais terrível é que estamos encurralados, presos entre vida e morte. A vida não é boa e a morte tampouco é uma saída.

A morte espreita a vida em 'Vanitas', sem indicação de autor, de meados do século XVIReprodução

A morte espreita a vida em ‘Vanitas’, sem indicação de autor, de meados do século XVI

Sejam quais tenham sido as crenças de Shakespeare, “ele deve ter sentido a pertinência dessas questões para sua própria arte”, constatam os autores. A missa é uma espécie de drama? Ou é real? O quão literalmente devemos entender os eventos simbólicos? Pode a vida brotar de objetos inanimados – ou estar contida neles (o pão, o vinho)? Pode a vida vir da morte? Essas mesmas questões se exprimem por outro “miraculoso evento público – o teatro”.

Considerações diversas aparecem nesse primeiro capítulo de Shakespeare’s dead, capítulo que estende seus achados às demais seções do livro. O mais surpreendente para nós é saber que a primeira versão de Hamlet, publicada em 1603, em geral descartada em favor das versões posteriores (aquelas em que, a partir de 1604, se lê o solilóquio tal como o conhecemos), exibe uma inopinada visão católica da existência – no sentido de supor algo depois de nosso passamento, contemplando ainda o cenário que divide os fiéis em bons e maus. “Realmente, o primeiro texto impresso de Hamlet em 1603 revela uma teologia basicamente católica, antecipando sonhos paradisíacos em lugar dos mais familiares pesadelos.”

Embora essa não seja a visão consagrada pelas edições posteriores da peça, e embora raramente Shakespeare apresente a morte como redentora, há também o exemplo de Katherine, figura que pertence a Henrique VIII (1613). “A visão que Katherine tem do paraíso traz um conforto recusado à maioria das demais personagens”, destacam.

Acerca de crenças religiosas e sua relação com as peças, os autores entendem haver “uma sensibilidade que vai e vem, que se nubla a si mesma”, que enfim não se deixa capturar, não se fixa nesse ou naquele ponto, quadro ou crença. Shakespeare não se alinha estritamente a nenhuma doutrina. O dramaturgo permanece fiel à natureza dialética do teatro – apoiada no desacordo ou, quando menos, na diversidade dos pontos de vista sobre todas as coisas.

Morrer? Não, obrigado

A peça em pauta no capítulo seguinte é a estranha comédia Medida por medida (1604). A obra traz, em algumas de suas principais passagens, a ideia de que a vida é constituída por mortes várias, provisórias mortes que nos fariam provar, degustar ou amargar, em vida, o gosto do abismo. As consolações aqui, segundo os autores, seriam menos cristãs do que estoicas (a tradição do estoicismo acha-se identificada ao pensador e dramaturgo latino Sêneca, entre outros modelos); insistem na resignação e na resistência.

Medida por medida é uma peça marcada pela nota mórbida, sombria, mas também traz situações engraçadas que nos recordam que estamos, afinal, no campo da comédia. A certa altura, o Duque, disfarçado de frade, vai à cela de um malfeitor preso há nove anos. O homem, chamado Bernardino, não tem culpa nem inocência estabelecida; a acusação que lhe fizeram foi de assassinato, mas ninguém prova que ele tenha cometido o crime, e o suspeito tampouco o confessa, mas também não o nega… O Duque pretende achar um bode expiatório que substitua, na forca, o infeliz Cláudio, condenado por fazer sexo fora do casamento.

Gymnasium Patavinum (1654), de Giacomo F. Tomasini, gravura de teatro anatômico na Universidade de PáduaReprodução

‘Gymnasium Patavinum’ (1654), gravura de Giacomo F. Tomasini

Eis o diálogo, quando o Duque insiste em convocar Bernardino e este, firme, recusa a intimação. O prisioneiro já fora chamado a morrer pouco antes, convite que ele havia rejeitado… A tradução da peça é de Carlos Alberto Nunes, e estamos na terceira cena do quarto ato.

DUQUE – Senhor, induzido por minha caridade, ao saber com que pressa deveis partir deste mundo, vim para aconselhar-vos, confortar-vos e rezar convosco.

BERNARDINNO – Comigo, irmão? Absolutamente. Passei a noite toda bebendo; preciso de mais tempo para preparar-me; se não, eles me macetam o cérebro. Não consinto em morrer hoje, está decidido.

DUQUE – Oh, senhor! Mas é preciso! Por isso mesmo, suplico-vos pensar na viagem que ides empreender.

BERNARDINO – Pois eu juro que não há quem possa convencer-me de morrer hoje.

DUQUE – Mas ouvi-me…

BERNARDINO – Nem mais uma palavra. Se tendes alguma coisa a dizer-me, vinde à minha cela, porque de lá eu não saio hoje. (Sai.)

Emma e Simon comentam, citando uma das peças exemplares do teatro medieval inglês, de autor anônimo: “A terrível injunção da moralidade Everyman (Todomundo) – não pode haver adiamento, nenhum atraso; você tem que morrer quando a morte chama, e o chamado é súbito – é desafiada pelo simples capricho de um zé-ninguém de ressaca”.

Eles dizem ainda: “Bernardino vive ao mesmo tempo sob a eterna máscara da morte e à meia-luz, num limbo magicamente protegido que a morte não pode alcançar”. Mais importante, acrescentam que “Bernardino torna-se um talismã do compromisso primário de Shakespeare: com o conhecimento sintético do palco mais do que com a lei mortal do corpo humano”.

Medida por medida é um exemplo precoce de tragicomédia”, dizem os autores, e a propósito citam John Fletcher, derradeiro colaborador de William Shakespeare. Os dois escreveram Henrique VIII, a última peça shakespeariana conhecida, e Cardenno (Cardenio), peça perdida em que parafrasearam Cervantes. O pesquisador Roger Chartier dedicou todo um livro às fontes e circunstâncias dessa obra, livro publicado no Brasil em 2012.

Fletcher define o novo gênero da tragicomédia, que faria fortuna no teatro inglês e no espanhol do século XVII – lembre-se, por exemplo, A vida é sonho, escrita por Calderón de la Barca em 1635. A tragicomédia é “assim chamada não por causa de assassinato e riso, mas porque exige mortes, o que não basta para transformá-la em tragédia, embora a leve um pouco para perto desta, o bastante para que já não seja comédia”.

Emma e Simon acrescentam que “estudiosos do século XIX cunharam o termo ‘problem play’ para essa e outras ‘comédias’ desconfortáveis”, entre elas Tróilo e Créssida, Bem está o que bem acaba e mesmo Hamlet (esta, apesar de eventuais elementos cômicos, não deve ser considerada comédia nem tragicomédia).

'Claudio and Isabella' (1850), na Tate Britain/AlamyReprodução

‘Claudio and Isabella’ (1850), da Tate Britain/Alamy

A morte como estímulo

Os autores partem desse ponto para falar da morte nas peças cômicas. Tendemos a pensar no gênero como se fosse uma espécie de zona franca, na qual o peso das questões últimas não se verificasse: “A comédia trata de jogo juvenil, erros não fatais, e de evitar, adiar e esquecer a morte”. Eles o afirmam para ressalvar logo depois: “Mas há mais para a morte na comédia do que isso. O fato ou o medo da morte é o estímulo para a vida, a necessária medida que dá tensão e energia para a ação. A morte fornece um padrão formal estabelecendo as fronteiras do jogo”.

Sem as divisas dadas pela morte, “a ação seria frouxa, haveria escolha demais, tempo demais, como tênis sem rede”. Assim, a ideia ou intuição do fim fornece “à história e às piadas sua impulsão, limites e ritmo”. A personagem ou a situação cômica deve estar sempre em dificuldade, “perseguida, pressionada e trabalhando em pequenos círculos, a ameaça de perda ou fracasso permanentemente presente”.

Ao falar sobre O mercador de Veneza (1597), os ensaístas dizem que a peça “é construída sobre um dos grandes princípios do drama shakespeariano – o de que a menor coisa, o mais rotineiro episódio pode gerar pensamentos de catástrofe”. Eles prosseguem:

O outro lado desse tipo de pensamento é que qualquer coisa – um simples objeto, uma metáfora – pode representar as maiores questões de vida e de morte. A comédia permite que o simples seja simples, o familiar, familiar – mas também sabe que, se olharmos com olhos mais minuciosos, deveremos ver algo muito mais sombrio e estranho.

O que nos remete a noções formuladas para o entendimento do teatro moderno, especialmente as modernas misturas de comicidade e drama. Uma dessas noções é o “sentimento do contrário” de que fala Pirandello: a possibilidade de ver, sob uma figura ou evento humorístico, algo de doloroso ou problemático que a princípio não se havia notado. Vale ainda mencionar certa comicidade da desilusão, certas situações insustentáveis – mas, por paradoxo, sustentadas – que informam a dramaturgia de Nelson Rodrigues.

Os exemplos, aqui, podem ser Seis personagens à procura de um autor, do dramaturgo italiano, “comédia” que ao final confunde e atravessa as fronteiras entre ficção e vida (com duas mortes não ficcionais, mas “reais” no desfecho), e A falecida, que Nelson Rodrigues chamou de farsa trágica (denominação usada também por Ionesco para a sua As cadeiras). São descendentes da percepção shakespeariana do que há de ambivalente e cambiante na vida e, portanto, nos seus espelhos.

Os autores poderiam abonar essas ilações quando dizem: “A morte é inimiga das comédias frágeis, fáceis” (embora as comédias superficiais, feitas somente para desopilar o cérebro, permaneçam válidas, pois não somos de ferro). O fato é que, quando a morte comparece direta ou indiretamente na cena cômica, tende a sabotar o riso, enervando-o, como se dá em Nelson.

Finale

A dupla de ensaístas nota que o tempo de Shakespeare não foi nada fácil para as crianças; muitas morriam bem antes de chegar à idade adulta, como ocorreu com três irmãs e com o filho do escritor. Sobreviver à peste, às epidemias, às más condições sanitárias era golpe de sorte para os ingleses da época.

Morria-se das mais variadas causas e de todas as formas nas peças shakespearianas – mas, curiosamente, elas jamais visaram de maneira direta a morte por peste, cruelmente presente naquele período. Assim como nenhuma delas se situa na Londres contemporânea do poeta. Shakespeare não foi um autor realista em sentido estrito: a exposição das circunstâncias e singularidades da vida na Inglaterra, à moda naturalista, “não era seu estilo”.

Emma Smith, coautora do livro e curadora de mostra, ao lado de pintura de Tom de Freston Oxford Mail

Emma Smith, coautora do livro e curadora de mostra, ao lado de pintura de Tom de Freston

O zelo ao mostrar situações violentas, sabendo que a vida é máxima quando “encosta na morte” (segundo Vianinha e sua Medeia), e com isso garantir impacto sobre os espectadores está, no entanto, acima de qualquer dúvida:

O extraordinário cuidado que Shakespeare tem ao compor cenas de morte encontra-se nas partes que escreveu para os atores, e no modo muito específico pelo qual esses papéis foram transcritos, distribuídos, aprendidos, ensaiados e então representados. Os atores não tinham uma cópia do texto integral [playtext] (normalmente havia apenas uma cópia completa). Eles recebiam somente a sua parte (ou partes), uma folha ou rolo de papel listando na devida ordem a sua entrada, as deixas de fala (normalmente entre uma e três palavras) e as suas próprias falas.

É interessante lembrar que as convenções do teatro elisabetano para as cenas de morte – e para as de violência e catástrofe de modo geral – diferiam das usadas no teatro grego. Enquanto os atenienses evitavam exibir cenas chocantes, preferindo contá-las ou referi-las em diálogo, as personagens do tempo de Shakespeare matavam e morriam sobre o tablado.

Como Simon Palfrey e Emma Smith ressaltam, havia necessariamente alguma liberdade na execução das indicações cênicas, até porque estas eram sintéticas; mas tinham de ser efetivadas de modo atento e preciso. Com essa finalidade, dramaturgos e atores inventaram, para as passagens fatais, o truque da “deixa de morte”, que era pronunciada por duas vezes, dando tempo aos artistas de se organizarem no palco.

A morte “era de fato representada diante dos olhos do público”. Se a cena não se consumasse ou se deixasse a desejar, todo o espetáculo estaria exposto “a parecer tolo e falso”. Guardadas as convenções do tempo, esse é um aspecto naturalista em uma prática teatral em geral isenta de imitações literais. Certamente haveria mais a dizer, mas nos limitamos a sugerir, para encerrar, que se publique o livro de Palfrey e Smith no Brasil. Alguém se habilita?

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

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Serviço:

Shakespeare’s dead (192 páginas, 80 ilustrações, £ 19,99 ou R$ 85,60)
Autores: Emma Smith e Simon Palfrey
Editora: Biblioteca Bodleian/Universidade de Oxford (2016)

Referências:

BRYSON, Bill. Shakespeare – O mundo é um palco: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantes e Shakespeare – História de uma peça perdida. Tradução: Edmir Missio. Revisão técnica: Andrea Daher. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

PALFREY, Simon; SMITH, Emma. Shakespeare’s dead. Oxford: Biblioteca Bodleian/Universidade de Oxford, 2016.

SHAKESPEARE, William. Medida por medida. Em: Teatro completo – Comédias. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

______. Romeu e Julieta & Hamlet. Tradução: Ana Amélia de Queiroz C. de Mendonça e Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

______. Hamlet, Prince of Denmark. Londres: Penguin Books, 1964.

SMITH, Emma. Guia Cambridge de Shakespeare. Tradução: Petrucia Finkler. Porto Alegre: L&PM, 2014.

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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