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Crítica Militante

Alegoria da imprecisão e impossibilidade

5.7.2016  |  por Gabriela Mellão

Foto de capa: Nana Moraes

Um projeto brasil, mesmo que grafado com iniciais minúsculas, é um projeto impossível. É tarefa inexecutável abarcar, ainda que poeticamente, as forças múltiplas e contraditórias que mobilizam os muitos discursos existentes sobre Brasil e ainda resgatar a memória desta nação para entender seu presente, reinterpretar sua identidade, reestabelecer contrastes, clichês e paradoxos.

Na ânsia de revelar teatralmente este Brasil irrevelável, a cia. brasileira de teatro (também escrita com letras minúsculas) justapõe uma série de discursos sobre o país. Eles são vários e distintos, amplificados por cerca de meia dúzia de microfones que ornamentam a cena. Compartilham uma única particularidade. Todas as suas manifestações evidenciam a impossibilidade de se discorrer sobre o Brasil.

Mais do que a busca por um retrato da brasilidade, o tema parece ter sido escolhido para instigar a construção de uma cena instável e inconclusiva, sintonizada com a arte criada na contramão da cultura na contemporaneidade.

Discurso pressupõe uma exposição oral de qualidade distanciada e reflexiva. É de maneira precisamente oposta que os atores Rodrigo Bolzan e Nadja Naira recebem os espectadores, minutos antes do início do espetáculo. A acolhida é calorosa, descontraída e íntima, ao som de canções brasileiras conhecidas e inventadas da voz e do violão do músico Felipe Storino.

Fica no espectador a impressão de estar diante de um homem, ou de um país, que segue seu fluxo apesar das incoerências da existência, imprimindo na fala seus tombos, seus fracassos, sua incompletude.

Como nos demais espetáculos do grupo, fica evidente o desejo de romper a divisa invisível que costuma segmentar palco e plateia e instituir um espaço entre ator e espectador de característica menos formal e mais fluída.

Não há falas endereçadas prontamente ao espectador, como em Vida, espetáculo a partir das iluminações do poeta paranaense Paulo Leminski que projetou o coletivo curitibano nacionalmente em 2010. Também não se vê a intimação direta no título, como em Isso te interessa? – o nome original da obra, Bon, Saint-Cloud (algo como Bom, Santo Cloud), não poderia ser menos convocatório.

É por caminhos distintos que projeto brasil busca chegar num mesmo local: a carne do espectador. Ela todinha, por inteiro, o cérebro inclusive.

O espetáculo, composto por uma sucessão de cenas fragmentadas e imprecisas, trafega pela rota da interrogação. Afirma-se no avesso das afirmações, sustenta-se em pilares instáveis, fixando sua âncora em solo solto.

A paisagem é nebulosa. O desejo evidente é por abertura. As cenas se prestam a infinitas possibilidades de leituras. Cabe a cada espectador finalizar o espetáculo em sua mente, a partir de associações instigadas por sua memória pessoal e a de seu país.

É interessante notar como Marcio Abreu equilibra expressão verbal e não-verbal, apoiando-se na dramaturgia revelada muitas vezes sem texto, através da movimentação corporal dos atores, a qual tem contribuição da diretora de movimento Marcia Rubin. Corpos titubeantes e atentos, que parecem sempre estar na iminência da ação, evidenciam ânsia por mobilidade, por transformação.

O encenador privilegia a comunicação irracional em detrimento da intelectual, ainda que o espetáculo tenha sido cuidadosamente estruturado com base nesta última e que abra espaço para falas que levantam bandeiras claras sobre assuntos de natureza sociopolítica.

Igualdade e intimidade são conceitos-chave. projeto brasil se inicia com um transbordamento de beijos. Este nasce sobre o palco circular negro, do encontro entre Bolzan e Naira. É em seguida irradiado para o público. Percorre bocas dos próprios espectadores sob a luz reveladora de plateia, que a incorpora em cena em vários momentos.

O amor libertário, sem distinção de partido, sexo ou faixa etária, é praticado ao som da colagem de uma sequência de discursos públicos reais, proferidos em nome do governo pela ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, defendendo a proposta de lei para o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção.

Ao fim, atores tomam para si o que foi ouvido, proclamando “igualdade entre todos os casais e todas as famílias”. Exaltam em alto e bom tom as virtudes da tolerância e do exercício da alteridade.

Ao mesmo tempo em que os beijos distribuídos no espectador celebram igualdade, também concretizam o desejo de Abreu romper barreiras entre intérprete e público.

O impulso quase involuntário de o espectador racionalizar é perturbado. Abismos propositais no texto e na encenação fazem de projeto brasil uma obra essencialmente aberta. E como na experiência da leitura de um livro, sensações e pensamentos novos surgem a cada revisitação.

Na obra da cia. brasileira irrompem rachaduras na tentativa de formulação conclusivaNana Moraes

Na obra da cia. brasileira irrompem rachaduras na formulação conclusiva

Um defloramento desdobra-se em significados ao ser apresentado por um balé de gemidos e corpos violados. Pode representar um estupro, servir de metáfora para descrever uma sociedade machista ou sugerir um país violento, cuja memória se inicia na selvageria do colonialismo, revisita ditadura e invoca a intolerância exacerbada da contemporaneidade.

A dança da violência de Giovana Soar e Rodrigo Bolzan termina sob bombardeio de explosivos negros, os quais estouram nos corpos dos atores e na parede circular preta que envolve parte do palco – usada para tornar o espaço mais intimista. Sangue negro escorre por todos os lados. Se fica a dúvida de que faceta do país está sendo evocada neste baile metafórico, a relação estabelecida entre opressor e oprimido revela com nitidez as cores de trevas do poder abusivo.

A tentativa de eliminar vestígios do massacre é ineficaz. O sangue pode ser lavado, as roupas realinhadas, mas o incidente permanece, de algum modo, marcado. Reverbera em Bolzan na cena seguinte, em que ele expõe o discurso do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, proferido numa conferência da ONU, como se a indicar que na história de um país, ou cidadão, não há acontecimentos episódicos.

O Brasil vibra paradoxal pelo olhar cia. brasileira, vigoroso e cambaleante, amoroso e detestável em medidas similares. Revela-se sempre nas rachaduras que irrompem da tentativa da formulação de conclusões. Como no discurso de Bolzan, escrito por Abreu a partir de improvisos do ator, as palavras são abundantes. Surgem sem cessar, mas juntas não compõem uma narrativa inteligível. Podem ser expressas através de pedaços de palavras, como tentativas infrutíferas de comunicação de um gago. Podem compor paisagens, fragmentos de pensamentos, histórias, sensações. Mesmo quando se estruturam, alcançando a almejada solidez, a lógica permanece vaga, dando sucessivas rasteiras na mente dos membros da plateia.

Fica no espectador a impressão de estar diante de um homem, ou de um país, que segue seu fluxo apesar das incoerências da existência, imprimindo na fala seus tombos, seus fracassos, sua incompletude.

Criada coletivamente pelos atores e o encenador, a dramaturgia se aproxima das experimentações linguísticas do autor Valère Novarina, francês da contemporaneidade que inovou a escrita teatral ao se despojar do hábito de entender e interpretar.

Do ato de se debruçar sobre o Brasil, estudando-o através de seminários conduzidos por historiadores, antropólogos, escritores e filósofos e da pesquisa em campo realizada em cinco regiões do país durante turnê de repertório, vão ao palco impressões estilhaçadas, reminiscências dessa experiência.

Altruísmo, humanismo, utopia, selvageria, o sonho por uma sociedade libertária e sem distinção de classes e o desprezo pelo fanatismo são temas que circundam a obra. Incansavelmente revisitados na história, estes conceitos transformados recentemente em arroz e feijão na cesta básica do brasileiro, são revigorados por Abreu.

projeto brasil permanece com letras maiúsculas na memória racional e sensorial do espectador. Afinal, não revisita a história do país para criar uma discussão política. O faz para elaborar uma investigação sobre arte.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
Projeto brasil
Onde: Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1000, Belenzinho, São Paulo, tel. 2076-9700)
Quando: Quinta a sábado, às 21h30; domingo e feriado, às 18h30. Até 17/7
Quanto: R$ 25,00 a R$ 7,50
Duração: 80 minutos
Não recomendado a menores de 16 anos
Visite o site da cia. brasileira de teatro

Ficha técnica:
Direção: Marcio Abreu
Com: Giovana Soar, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan
Músico: Felipe Storino
Dramaturgia: Giovana Soar, Marcio Abreu, Nadja Naira, Rodrigo Bolzan
Trilha e efeitos sonoros: Felipe Storino
Assistência de direção: Nadja Naira
Direção de movimento: Marcia Rubin
Orientação de texto e consultoria vocal: Babaya
Iluminação: Nadja Naira e Beto Bruel
Cenografia: Fernando Marés
Figurino: Ticiana Passos
Direção de produção: Giovana Soar
Produção executiva: Isadora Flores
Administrativo e financeiro: Cássia Damasceno
Produção e operação técnica: Henrique Linhares
Produção local: Jose Maria, Lili Almeida e Géssica Arjona
Projeto gráfico: 45JJ
Fotos: Marcelo Almeida, Maringas Maciel e Nana Moraes
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Operador de luz: Henrique Linhares e Elisa Ribeiro
Técnico de som: Chico Santarosa e Miro Dottori
Contrarregragem: Fernando Marés, Liza Machado e Elisa Ribeiro
Cenotécnica: Anderson Quinsler
Artistas Colaboradores: Ranieri Gonzalez, Edson Rocha, Renata Sorrah e Cássia Damasceno
Oficinas de aprimoramento: Eleonora Fabião, Erelisa Vieira
Seminários: Eleonora Fabião, Mario Hélio Gomes de Lima, André Egg, Sandra Stroparo, Itaércio Rocha e Aly Muritiba
Entrevistas e encontros: Dona Eva Sopher, Hélio Eichbauer, Maestro Letieres Leite, Sr. Dimitri Ganzelevitch, Fabiano de Freitas e Teatro de Extremos, Favela Força, Bruno Meirinho e Ilê Ayê

Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.

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