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Crítica Militante

Histórias de superação em ‘Amadores’

5.8.2016  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Ligia Jardim

No final de 2015, um anúncio nos jornais procurava “artistas amadores e pessoas sem experiência no palco para espetáculo teatral”. O trabalho seria remunerado. Mais de duzentas pessoas responderam a esse chamado e, em abril deste ano, junto com cinco atores profissionais, treze delas estrearam no Sesc Consolação, em São Paulo, a peça Amadores, da Cia. Hiato, com direção de Leonardo Moreira.

O espetáculo foi construído com os relatos de cada um dos envolvidos. Experimentar os limites entre o biográfico e o ficcional não é novidade para a Cia. Hiato. Em dois de seus últimos trabalhos, Ficção e 2 Ficções, as histórias de vida do diretor e dos atores ganharam contornos dramáticos, em um processo chamado por Leonardo Moreira de dramaturgia cúmplice. Em Amadores, porém, busca-se um aparente contato mais direto com a realidade, gerando uma zona de indeterminação potente e vibrante.

Por meio do espelhamento possível com os não-atores, o público é impelido a relatar a si mesmo, atendendo a um chamado à ação característico do teatro contemporâneo. Ao recriar sua própria narrativa de vida, coloca em perspectiva crítica sua trajetória

Nesse sentido, são abertos múltiplos focos de atenção que embaralham as identificações criadas e desfeitas ao longo do espetáculo. Em um dos momentos mais comoventes, a dona de casa e ex-modelo Rose Sforcin fala de suas dores relacionadas à maternidade. Após o nascimento do primeiro filho, ela teve um bebê natimorto e sofreu dois abortos espontâneos. Faz-se um silêncio incômodo durante sua participação, até o momento em que ela confessa adorar cantar e puxa o coro para uma música sertaneja. Esse universo contrasta com o de Loupan, ator de filmes eróticos cujo depoimento parece saído de uma novela televisiva, com humor planejado e recursos para cativar a plateia. Seria seu relato mais ficcional que o de Rose? A peça não responde. O fato é que, ao longo do espetáculo, Loupan procura cativar o público tocando violão e cantando um dos maiores sucessos de Pixinguinha, Carinhoso. A dona de casa, por sua vez, irá fingir que conversa com os filhos pelo celular.

Assim, alguns dos participantes contam relatos mais plausíveis, outros mais delirantes: uma professora que não foi contratada no serviço público por ser obesa, um estudante de ciências sociais ex-viciado em crack, um atendente de telemarketing que dança Por Elise, de Beethoven, um angolano que teve seu nome trocado quando chegou no Brasil. Há o risco de acreditar que tudo é, de fato, verdade ou mentira. Mas se não é nem uma coisa, nem outra, o espectador é obrigado a construir, ele mesmo, sua posição diante da obra.

Amadores: Identificações embaralhadasLigia Jardim

Amadores: Identificações embaralhadas

O caso do ator Thiago Amaral em Amadores é ainda mais paradigmático. No início da temporada, ele convocava todos os homens do elenco para dançar a música vibrante Single ladies, de Beyoncé. Essa cena ganha contornos singulares quando se coloca em tela a atuação do ator em Ficção, no qual ele falava da dificuldade de seu pai aceitar sua homossexualidade. A música escolhida, não por acaso, foi interpretada por Liza Minelli no filme Sex and the city II, que na trama se apresentava na festa de um casamento gay. Após uma das apresentações em Amadores, Thiago foi vítima de um grave acidente, fato que foi incorporado à peça e o ator passou a atuar em uma cadeira de rodas.

Em Amadores, por meio do espelhamento possível com os não-atores, o público é impelido a relatar a si mesmo, atendendo a um chamado à ação característico do teatro contemporâneo. Ao recriar sua própria narrativa de vida, coloca em perspectiva crítica sua própria trajetória. A moldura teatral da peça sublinha o real com o traçado cênico, fazendo-o ser reconhecido e atingindo, dessa forma, uma dimensão política. Não é, portanto, uma obra construída a partir de um único ponto de vista e nem se pretende total.

O fio condutor de Amadores é também sui generis. As diferentes narrativas são alinhavadas pela trama do filme Rocky, um lutador, escrito e estrelado por Sylvester Stallone em 1975. É uma estória de superação que marca também uma reinserção de Stallone na ordem simbólica da cultura do entretenimento. É com esta obra que ele abandona a carreira de ator de filmes pornográficos e entra para a elite hollywoodiana. O tema da superação é recorrente também na literatura de autoajuda e na televisão. Ter a indústria cultural, criadora de ficções pseudo-naturalistas, como elemento aglutinante em Amadores serve de contraste aos relatos que se apresentam na peça como mais fidedignos que os reality shows ou os programas de auditório.

Ressoa o enigma sobre o que é relato pessoal, o que é ficcionalLigia Jardim

Ressoa o enigma sobre o que é relato pessoal, o que é ficcional

Em larga medida, Amadores remete a 100% São Paulo, da companhia alemã Rimini Protokoll, que se apresentou na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo em março deste ano. 100% São Paulo apresentou-se como um exercício de estatística, no qual 100 paulistanos, selecionados para compor uma amostra significativa dos moradores da cidade, respondiam a questões diversas, que iam desde seus hábitos cotidianos até a opinião sobre temas polêmicos como o aborto e a pena de morte. À frieza desse trabalho, Amadores responde com temas mais humanizados. Por exemplo, ao invés de fazer um recorte de renda familiar, pergunta como é o sofá da casa de cada um. Se as respostas dadas são ou não válidas, caberá a quem assiste decidir.

Após a temporada no Sesc Consolação, Amadores teve três sessões no Itaú Cultural. Ainda não há datas previstas para uma próxima reestreia.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Ficha técnica:

Criação: Cia Hiato – Aline Filócomo, Aura Cunha, Fernanda Stefanski, Leonardo Moreira, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Marisa Bentivegna, Paula Picarelli, Thiago Amaral e Yumi Ogino
Com: Aline Filócomo, Chicão Paraizo, Dalva Cardoso, Dom Lino, Fabi de Farias, Fernanda Stefanski, Giovanni Barontini, Márcia Nishitani, Maria Amélia Farah, Maurício Oliveira, Nairim Bernardo, Nsona Kiaku Arão Isidoro Jorge, Oswaldo Righi, Paula Picarelli, Roberto Alves, Ronaldo de Morais, Rose Sforcin e Thiago Amaral

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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