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Crítica Militante

Cena polifônica para mirar e ver a guerra

30.10.2016  |  por Beth Néspoli

Foto de capa:

Toda arte nasce de inquietações possíveis às mulheres e aos homens de determinada época e a ela se dirige. Desde as eras mais remotas, tenta-se driblar essa espécie de condenação à contemporaneidade – a imersão na cultura dificulta o corte crítico – por meio de narrativas deslocadas de seu território de origem, afastamento cujo objetivo, no fim das contas, é o retorno ao tempo vivido com algum elemento de dissenso. Salvo engano, tal movimento, tanto no ponto de partida quanto no de chegada, pode ser detectado no espetáculo Cabras – cabeças que rolam, cabeças que voam, criação da Cia. Teatro Balagan, baseada na tríade guerra-festa-fé, que tem direção de Maria Thaís e texto de Luís Alberto de Abreu.

O programa da peça informa que Cabras é fruto de dois anos de investigação iniciada pelo Cangaço e estendida a outros movimentos de resistência, muitos deles criminalizados e reprimidos com violência extrema, não raro terminando em massacre coletivo e assassinato de lideranças. Assim, na gênese do espetáculo há um recuo no tempo e na geografia movido pelo desejo de reflexão sobre as rebeliões brasileiras – de todas as épocas.  Não é o primeiro coletivo a realizar tal percurso.

Ao tomar as guerras sertanejas como objeto de investigação artística, a Cia. Balagan moldou sua encenação a partir de escolhas formais cuja singularidade reside na abordagem de cunho arquetípico do ato de guerrear

No ensaio Os sertões, o jornalista Euclides da Cunha (1866-1909) abordou a complexidade de relações culturais envolvidas na ação dos sertanejos supostamente rebelados contra a instauração da República e organizados em torno da figura mítica de Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, cujos quatro últimos combatentes foram mortos no dia 5/10/1897 após um longo cerco do exército. Com o grupo Uzyna Uzona, o diretor José Celso Martinez Corrêa realizou no Teatro Oficina, entre 2002 e 2007, a transposição cênica desse livro na forma de uma saga composta de cinco espetáculos nos quais tratava de reconfigurar os sertanejos ora como camelôs, ora como sem-terra ou sem-teto, atualizando diferentes lutas.

Em outra chave, o Coletivo de Teatro Alfenim, dirigido por Márcio Marciano e sediado em João Pessoa, na Paraíba, trouxe à tona no espetáculo Quebra-Quilos (2007) o levante popular de mesmo nome ocorrido em Campina Grande, em 1874. Em jogo, mais uma vez, a desigualdade de forças e o desenlace violento. Na peça Vereda da salvação, levada ao palco por diferentes criadores, entre eles o diretor Antunes Filho (1964 e 1993) e o Teatro Kaus Cia. Experimental (2004), o dramaturgo Jorge Andrade também focou o tema ao retratar a labuta de um grupo de agricultores sem-terra cujo fim trágico ele credita à relação entre os desmandos dos latifundiários e o misticismo religioso nos rincões do Brasil. Da literatura de Guimarães Rosa ao cinema de Glauber Rocha muitas foram as abordagens das guerras sertanejas.

Contraditoriamente, porém, até muito recentemente resistia o mito de um Brasil sem guerras. Sobre essa crença a perscrutação de Cabras – ao menos potencialmente – incide.

Gisele Petty (destaque) e intérpretes que sõa também criadores da matéria cênicaAlexandre Catan

Gisele Petty e intérpretes que são também criadores da matéria cênica

Até as manifestações de julho de 2013, a narrativa de um país pacificado circulava com relativa fluidez, compartilhada pelo senso comum, mesmo diante de evidências demonstrando o oposto, como os massacres de camponeses e indígenas em luta por terra ou os assassinatos de lideranças de movimentos organizados nos campos, nas florestas e nos seringais. Sem contar as organizações criminosas e suas batalhas nos morros, bombas nas ruas, motins e decapitações em presídios. Ainda assim, a falácia da nação cordial talvez só tenha se tornado evidente muito recentemente, em meio às agressões de toda ordem, durante o processo que levou à deposição da presidenta Dilma, resultado da união de forças jurídicas, políticas e midiáticas.

Ao tomar as guerras sertanejas como objeto de investigação artística, a Cia. Balagan moldou sua encenação a partir de escolhas formais cuja singularidade reside na abordagem de cunho arquetípico do ato de guerrear. Em vez de optar pelo relato de determinada rebelião para desvelar a complexidade de relações nela implicadas, o grupo, que trabalha em processo colaborativo, investiu seu olhar sobre o modo de relação com o mundo que ainda resiste no sertão profundo. Em outras palavras, em lugar de retornar do campo da pesquisa com uma narrativa sobre as guerras travadas em região específica por personagens baseadas em figuras históricas ou anônimas, a escolha estética foi uma espécie de montagem-investigação do ethos guerreiro que coloca em cena a cosmovisão do sertanejo.

Cabras dentro e fora das cercasAlexandre Catan

As cabras e as cercas da discórdia

O intuito de destacar a singularidade dessa escolha não é de maneira alguma valorizar ineditismo ou novidade formal – e é possível apostar que também não era a meta do grupo na gênese da criação –, mas sim refletir sobre a interferência da estética adotada na recepção. Ao menos potencialmente, a linguagem de Cabras propicia abertura de um espaço interno no espectador para questões como: Onde começa a guerra? Em mim ou no outro? Convocada por força externa existiria sem que pudesse acionar algo no íntimo de cada indivíduo? São questões que ressoam a partir do amálgama de estranhamento e familiaridade que perpassa todo o espetáculo.

Amálgama presente desde o prólogo musical quando soam como se viessem de desertos longínquos os acordes rascantes produzidos pelos arcos que deslizam nas cordas das rabecas tocadas por uma dezena de atores e atrizes. Sensação de distância intensificada pelos figurinos que lembram remotamente os samurais guerreiros; adereços de cabeça que alongam as testas e os rostos pintados de vermelho; bandeiras e estandartes que tremulam junto às cabeças dos atores presas em curtos mastros amarrados às cinturas; e pelo sol, um grande círculo vermelho suspenso sobre a areia/terra que cobre todo o espaço retangular de apresentação. A familiaridade só chega algum tempo depois, com o reconhecimento do estribilho da canção Mulher rendeira no canto áspero das rabecas manuseadas por aqueles seres silentes, meio enigmáticos, de movimentos ralentados.

Welington Campos: desestabilização de ponto de vista Felipe Stucchi

Welington Campos: desestabilização de ponto de vista

O ritmo do prólogo já anuncia o destemor do tempo estendido que desacelera urbanidades. Anuncia ainda que no princípio não está o verbo, mas sim a materialidade da cena, termo que define a presença dos corpos dos atores e a concretude do espaço de atuação e dos objetos nele tornados estéticos. Já naturalizada na cena contemporânea, tal valorização da carne muitas vezes se dá em detrimento do verbo, porém isso não ocorre em Cabras. Se por um lado as palavras não têm o predomínio da produção do sentido, por outro têm alta densidade poética e atuam sobre a significação geral com mesma força expressiva dos demais elementos. Parte considerável da beleza da dramaturgia se deve à prosa lírica de Luís Alberto de Abreu, que assina o texto final.

São vinte narrativas curtas, organizadas em quatro blocos assim nomeados pelo grupo: guerra, guerra-fé, guerra-festa e, por último, guerra – fogo, paz, fogo. Se o espectador quiser pode rearranjá-las em outras sequências sem prejuízo de sentido e provavelmente muitos o tenham feito nos caminhos labirínticos da memória. Como peças de um quebra-cabeças, podem ser juntadas em diferentes ordenações. Uma escolhe priorizar as disputas entre clãs familiares, outra a figura do jagunço desgarrado, outra ainda a construção de cercas. Sobre essas, há os que ficam dentro e os que saltam delas, provocando discórdias.

Permanente vendeta entre clãs inimigasCris Maranhão

Permanente vendeta entre clãs inimigas

Na elaboração da dramaturgia, o primeiro e mais evidente procedimento perturbador diz respeito à desestabilização do ponto de vista. Mais do que simplesmente eliminar um narrador onisciente, o autor faz oscilar o sujeito da fala. Essa ora vem da boca de um cabra-homem jagunço que projeta o dia de sua morte e a figura do inimigo com a dignidade que ele merece, ora de uma cabra-animal ruminante que filosofa trepada no galho da árvore solitária postada na lateral do palco diante do sol vermelho. Na trama da permanente vendeta entre clãs inimigas, o relato de uma batalha pode vir do cão vira-lata que, repentinamente e por curto tempo, se transmuta em lobo e sacia fome em carne humana, ou de uma bala de revólver, ou ainda de um porrete e até de um punhal.

Entre as vinte narrativas, há também as que dão conta de seres híbridos, em instabilidade característica das culturas pré-modernas, quando a noção de sujeito ainda não estava totalmente delimitada. Vale tomar um fragmento da fala do ferreiro:

“Me invulto. Invultar nesse sertão é coisa comum, costumeira mesmo. Tem quem se invulte em cão, lobisome chamado, ou pé de pau, em serpente. Teve um caso, aqui perto, de um desses que saiu de casa, rastejou virado em cobra, longe, até na moradia do desafeto e cravou duas presas de cascavel na perna do tal. O ofendido não durou nem uma noite. E isso com novena de beata quase santa e reza de curador afamado! Dessas coisas não me invulto, aprecio não… me invulto é em fogo. Nesse mesmo fogo que você vê nessa forja onde ferro amansa a dureza. É assim: primeiro eu olho e fico, assim, dum jeito meio pasmado, com o movimento vermelho dele e, quando dou fé, já fui, já estou lá, sou outro, sou chama que consome carvão, avermelha ferro, que acolhe vento frio do fole e me retomo com mais força e quentura. Labareda minha lambe ferro frio, a fogueira amolece, tempera o aço do facão. É assim”.

Qualquer semelhança com Meu tio o Iuauretê, personagem que se transmuta em onça no conhecido conto de Guimarães Rosa (1908-1967), não é mera coincidência. Abreu aprendeu similar sabedoria na lida com as palavras, na combinação de sonoridades, formas, cadências. Porém, como observa o crítico literário Alfredo Bosi, para além do tratamento com fonemas, a linguagem de Guimarães Rosa atua no plano dos grandes significados. Na sua análise, as fábulas roseanas “velam e revelam uma visão global da existência, próxima de um materialismo religioso, porque panteísta, isto é, propenso a fundir numa única realidade, a Natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo.”

Terra e multiplicidade de cores no espaço de representaçãoFelipe Stucchi

Terra e multiplicidade de cores no espaço de representação

Para o jagunço roseano “o sertão é tudo”. Estabelecido na era moderna, o paradigma cartesiano de separação entre corpo e mente, entre sujeito e objeto, também separou o homem do território e fez da natureza e dos outros seres vivos, inimigos incluídos, objetos a serem submetidos. Ao contrário disso, na cosmovisão que a arte da Cia. Balangan traz para a cena a certeza da participação de cada indivíduo no todo. Daí advém a dignidade do inimigo e a ausência de vitimização – o referido aspecto dissonante nesses tempos de divisões internas em que a erro está sempre no outro.

Ao escolher investigar a guerra a partir de uma cosmovisão pré-moderna Cabras não propõe ao espectador um recuo no tempo, mas desvela a possibilidade de problematizar a vitimização e repensar compartilhamento de responsabilidade.

Não por acaso, o espetáculo é coral. Cada narrativa é dividida entre duplas ou trios de atores e atrizes com evidente domínio da matéria cênica da qual são também criadores.  Na forte visualidade já característica da Balagan, as vestimentas e os objetos – Márcio Medina assina cenografia e figurinos – se transmutam em diferentes formas e cores enquanto o palco é a cada momento atravessado por  sons os mais diversos produzidos pelos corpos dos intérpretes em um dinamismo que tornam a fruição do espetáculo um prazer para os sentidos. Há ainda extensa pesquisa musical executada ao vivo pelos artistas.

Num estudo de título auto-explicativo, Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir, o crítico literário alemão Hans Ulrich Gumbrecht defende uma cultura da presença na qual a noção de sujeito cartesiana não seja mais dominante. Nela, as negociações que organizam a sociedade agenciariam os fluxos vitais que inscrevem homens e matéria numa mesma cosmologia. Na sua visão, uma cultura assim enriqueceria a experiência de ser e estar no mundo.

Não que tais ideias estejam explícitas como lições no espetáculo. Longe disso. Cabras é menos discurso racional e mais beleza formal. Menos proposição e mais enigma. Faz ressoar reflexões, em vez de impor pensamento. Guimarães Rosa encerra misteriosamente o romance Grande sertão: veredas com o símbolo do infinito. Esse é o desenho – imagine o número 8 deitado – do percurso dos atores pelo espaço de representação com arquibancadas dispostas nos centros dos dois círculos do signo. Não deve ser acaso. “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.”

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
Cabras – cabeças que voam, cabeças que rolam
Onde: CEU Heliópolis Arlete PersolI (Estrada das Lágrimas, 2.385, São João Clímaco, São Paulo, tel.11 2553-4300)
Quando: 7 e 8 de novembro, às 20h
Quanto: gratuito, retirar ingresso
Duração: 110 minutos
Recomendado para maiores de 12 anos

Onde: CEU Jaguaré (Avenida Kenkiti Simonoto, 80, Jaguaré, São Paulo, tel. 11 3719-2343)
Quando: 2 e 3 de dezembro, sexta às 20h e sábado às 17h
Quanto: gratuito, retirar ingresso
Duração: 110 minutos
Recomendado para maiores de 12 anos

Encontro com o Espectador: O espetáculo Cabras – cabeças que voam, cabeças que rolam mobiliza o quinto diálogo entre público, artistas e críticos na segunda-feira, dia 31/10, às 19h30, no Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa, 664, Bela Vista, São Paulo. A ação deste Teatrojornal – Leituras de Cena acontece toda última segunda-feira do mês em parceria com o Ágora.

Equipe de criação:
Direção: Maria Thaís
Autoria: Luís Alberto de Abreu
Dramaturgia: Luís Alberto de Abreu e Maria Thaís
Com: André Moreira, Deborah Penafiel, Flávia Teixeira, Gisele Petty, Gustavo Xella, Jhonny Muñoz, Maurício Schneider, Natacha Dias, Val Ribeiro e Wellington Campos
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Direção musical: Dr Morris
Preparação musical (Rabecas): Alício Amaral
Iluminação: Aline Santini
Assistente de direção: Murilo De Paula
Operação e montagem de luz: Michelle Bezerra
Direção de palco: Rogério Santos
Divulgação: Patrícia Boudakian
Design gráfico: Regina Cassimiro
Produção executiva: Leonardo Devitto
Direção de produção: Géssica Arjona

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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