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Crítica Militante

Observatório do chão para cenas de rua

1.11.2016  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Fernando Pires

Em Porto Alegre

Uma crítica específica para o teatro de rua/na rua/na cidade faz sentido? Em que medida as variadas formas do teatro e, neste caso, as diferentes maneiras de habitar espaços pede olhares e atitudes críticas diferenciadas? Que importância teriam estes repertórios e estes discursos específicos em um país no qual o Ministério da Cultura identifica os espaços do teatro contabilizando apenas as salas fechadas e desprezando os lugares públicos abertos em que ele acontece?

Estas, entre outras questões, foram colocadas em movimento durante a oitava edição do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, que aconteceu entre 19 e 28 de junho de 2016 na capital gaúcha. Com uma pauta formativa incomum, o festival reuniu críticos, jornalistas, artistas e público em atividades que começavam ali, mas devem se estender por três anos, em várias ações. A primeira delas foi o seminário “As manifestações cênicas de rua – processo e crítica”, dividido em três etapas:

1) Sessões fechadas de estudos, com a participação dos jornalistas e críticos Michele Rolim e Renato Mendonça; do ator e pesquisador Márcio Silveira e do diretor artístico do festival, Alexandre Vargas, provocados por dois convidados: o crítico Kil Abreu (SP) e o diretor e pesquisador André Carreira (SC);

2) Prática da crítica, pelos jornalistas Michele Rolim e Renato Mendonça, com postagens no site especializado Agora;

3) Encontro aberto com o público, em que foram discutidas as questões relatadas pelos participantes (aqui com a participação do crítico Marco Vasques).

“A ambição sobre a prática e o pensamento do fazer teatral esteve vinculada ao território da crítica nesta edição. A intenção é debater se existe relação construtiva e horizontal entre a crítica de teatro produzida no Brasil e as manifestações cênicas de rua”, diz o coordenador artístico do Fitrupa, Alexandre Vargas.

Crítica relacional e integrativa

Na primeira parte das ações, em que este crítico entrou como provocador, acordamos desenhar, em dois dias de trabalho, algo menos que um elenco com respostas categóricas para uma abordagem à cena de rua. Nos pareceu mais estimulante e cauteloso pensar nos termos de um protocolo de questões, em que o acento estaria nas perguntas, quem sabe produtivas, que um crítico pudesse fazer diante de um espetáculo/manifestação na rua. Perguntas na direção do que acontece sem perder de vista o fato de que o crítico e seu ponto de vista também são partes do acontecimento e que, portanto, tais perguntas deveriam sempre que possível reverter a si mesmo. Por que a forma do protocolo? Como sabemos, no teatro o protocolo é um instrumento de registro da experiência. Para uma arte fugidia como a nossa sempre foi útil. Deve ser visto como um conjunto de notas nascidas das vivências e ensaios. Não serve para fechar determinações e sim para abrir questões e colocar o experimentado em movimento. Tomamos de empréstimo o protocolo para o campo da crítica por entender que a tarefa (pensar uma crítica para o teatro das ruas) é, neste momento, também uma tentativa, um gesto de ensaio.

As aventuras do fusca à vela, criação do Grupo Ueba, de Caxias do SulFrancesco Lisboa

As aventuras do fusca à vela, criação do Grupo Ueba, de Caxias do Sul

Daí que: teatro de rua, manifestações cênicas de rua, teatro na rua, teatro da cidade, teatro na cidade. O que todos esses títulos nos dizem? Antes de chegar à discussão sobre os modos para uma hipotética crítica ao teatro fora das salas, seria a própria condição do teatro sem paredes que nos interpelaria com algumas perguntas essenciais: o que a cena feita e apresentada nas ruas, quando assistida, constrói não só em relação a ela mesma, mas na cidade, com a cidade, sob os signos da cidade, através da cidade? E como? Para problematizar formas de criação e recepção radicalmente relacionais – qual seja, em que o ensimesmamento (da cena tanto quanto da crítica) não pareça útil – sugerimos cortar caminho procurando instrumentos em que os dispositivos críticos tenham vocação para considerar texto e contexto, os gestos estéticos em conexão com o seu entorno

Neste caminho para uma crítica relacional encontramos as ideias de Michel Foucault, que em conferência na Sociedade Francesa de Filosofia (maio de 1978), se perguntava: o que á a crítica? E localizava o ofício na área das “atividades polêmico-profissionais que trazem esse nome de crítica”. Atividades que compõem o campo de “uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir […], uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, com o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também, e que se poderia chamar, digamos, de atitude crítica”.[1] Pelo que, se conclui: a crítica é uma relação e é também a atitude que deriva desta relação. “Portanto, pelo que observa o filósofo, antes de se formular como discurso, a crítica caracteriza uma atitude. Uma atitude cuja natureza e função, como ele diz, se configura ‘em relação a outra coisa que não ela mesma’”[2]. Qual seja: sob esta perspectiva a crítica evita o personalismo e tende a horizontalizar-se ao mesmo chão do objeto. O exercício da alteridade é componente do trabalho de reflexão porque o eu crítico se constitui a partir daquilo que é o “não eu”, o de fora. É, no caso, um excelente princípio.

Em regra, a crítica à cena de rua vem sendo feita no próprio evento, no contato dos artistas com suas plateias. É uma forma legítima de testarem olhares críticos naquela base relacional a que se referia Foucault, ou integrativa, como quer Antonio Candido

Mais concentrado nas relações entre forma e contexto, o crítico Antonio Candido vai mostrar, na sua tese Formação da literatura brasileira, as bases para uma crítica integrativa, assim definida: “Não há uma crítica única, mas vários caminhos, conforme o objeto em foco – que pede por vezes maior apoio na análise formal, por vezes atenção maior aos fatores externos à obra”.[3] Ou seja, a obra não se resume a questões de conteúdo, de assunto, de tema. E também não se resume a questões de estrutura, de comunicação, de linguagem. A obra é a um só tempo forma e pensamento e a crítica não pode perder de vista esta perspectiva “integrativa”. Daí a necessidade de o crítico não se conformar a parcialidades, operando sempre um movimento amplo e constante entre o geral e o particular, a análise e a síntese, a informação e o juízo de gosto, o significado histórico do conjunto, da época, e o trabalho singular dos artistas.

Por isso é necessário trabalhar de imediato com a noção de síntese. A crítica não dá conta de abarcar todos os aspectos possíveis do real, nem na vida ordinária, nem no contexto já sintético da obra de arte. “É necessário assumir operações de redução da obra aos seus aspectos essenciais, às suas dominantes, em prejuízo à riqueza infinita dos pormenores”[4]. Por outro lado, a análise será sempre mais rica quando conseguir identificar o essencial do objeto analisado – elementos que mesmo não dando conta do todo são a representação mais funda do seu significado.

Protocolo

Partindo destas ideias chegamos então às perguntas para o protocolo, primeiro discutidas entre os participantes do grupo fechado e posteriormente compartilhadas no encontro aberto com o público. As notas e perguntas que seguem nasceram então deste estudo comparado, tentando projetar de uma maneira relativamente objetiva, no teatro, alguns elementos do repertório da teoria crítica e da filosofia. Algumas destas perguntas estão em diálogo com o texto Sobre um ator para um teatro que invade a cidade, de André Carreira.[5]

El juego de Antonia, do Centro de Pesquisa Teatral do Ator (RS)Francesco Lisboa

Dramaturgo cubano Virgilio Piñera inspira CPTA gaúcho em El juego de Antonia

Notas e perguntas:

– Sobre a rua como espaço de disputas, de perdas e ganhos: nestes espaços de disputa e dissenso, o que é e como sobrevive a forma teatral quando colocada como elemento na  paisagem urbana? O que as soluções formais, estéticas, têm a ver com os termos de pensamento que estão em jogo no dissenso, na disputa? Sob a perspectiva não do quadro recortado da sala fechada, mas do amplo cenário da cidade, como a forma teatral os constitui (a estes cenários) e ao mesmo tempo é constituída por eles?

– Qual é, nos termos de Foucault, a qualidade relacional que está sendo proposta? Lembremos que nas ruas ela acontece em muitas e diferentes direções, desde as maneiras de apropriação do espaço até a escolha dos assuntos e modos de encenação, narrativa, atuação, cenografia, etc. Então: quais são as relações entre formas e temas, resultado artístico e processo social?

– Como o espetáculo se configura na rua, como ele articula esta relação com o espaço ocupado, invadido, habitado?

– Nos termos propostos por Antonio Candido: que relações são possíveis entre o geral e o particular, no caso específico da cena de rua? O contexto ganha mais importância na análise que aquele de um teatro “de sala”? Se sim, o que define essa importância?

– Sobre o espaço tomado como coisa física: que implicações tem a porosidade das ruas, como o espetáculo lida com elas? Como o espetáculo lida com este “suporte sem bordas” que é a geografia urbana?

– Que tipo de relação o espetáculo faz com estas categorias: a instabilidade do fluxo urbano, mas também a acomodação do fluxo[6], no sentido da repetição, da rotina? Que sentidos esta relação gera?

– “Na cidade as percepções do real e do ficcional se fundem e se sobrepõem de forma intensa e dinâmica”.[7] Diante disso: o que nos parecem essas formas de afirmação ou negação da ficção? Como se dá o trânsito entre o real e a ficção, no contexto do espetáculo/intervenção assistido? Que leituras possíveis este enfrentamento, se estiver lá, gera? Que percepções novas sobre o real podem surgir daí? Nas ruas, quais as relações entre o ordinário do fluxo de vida e a invenção da arte? Por extensão? Por ocultação? Por contraste, ironia, surpresa, espetacularização? O que estas relações expressam em termos de sintaxe (estrutura) e semântica (significados)?

– Ainda sobre a suspensão ou não da mimese: nas ruas, o que acontece quando a cena já não representa? Que tipo de ruído ao ambiente uma cena de rua de base performativa causa, se comparada a uma intervenção de base narrativa, mimética, representacional?

– Nos termos em que Antonio Candido entende a síntese no discurso crítico: no teatro de rua haveria um chamado mais urgente quanto à necessidade de síntese, em função do volume de informações disponíveis? Se sim, em que termos essa síntese do olhar “para a rua” se daria?

– Sobre o juízo de valor: há diferenças nos modos de valoração, se compararmos o teatro “de sala” com o teatro na rua? Se sim, quais e o que os define?

– Qual o grau de permeabilidade entre o espetáculo e seu entorno? Os artistas ignoram, evitam, contornam ou incorporam intervenções e restrições que o meio impõe? O que estas atitudes acarretam ao fluxo do espetáculo?

– Como observar diante de uma cena muitas vezes “sem centro”? Como definir as bordas do trabalho crítico diante de uma cena sem bordas?

– O que nos dizem os comentários dos espectadores, mesmo os que passam e não param? A tendência a termos uma paisagem humana mais diversa e menos estável modifica o olhar sobre a recepção? Em que medida a recepção, nestes termos, pode influenciar o juízo crítico?

– Como considerar os lances acidentais, como olhar os pequenos dramas, fora do roteiro? Relações transitórias entre plateia e atores podem ser mais relevantes e transformadoras que a grande cena.

– Marcio Silveira, no encontro aberto com o público: “Peter Brook dizia que o teatro é o espaço vazio, mas o teatro de rua se defronta com um espaço preenchido pela materialidade da cidade, pelas pessoas, pelos acontecimentos, pelo movimento. A disputa é constante: com o poder público, com a vida agitada, com o público específico da apresentação. Como reconhecer a condição de representação em um ambiente como os centros urbanos em que muitos transeuntes estão praticando a transtextualidade (nos termos de Jorge Dubatti)? (…) O teatro de rua é a ocasião em que os diferentes se encontram para reconhecer suas diferenças. Nada acontece quando os iguais se encontram O quanto há de convívio e de disputa na cidade? O teatro de rua luta pela atenção espectatorial. Você quer me ver? Tenho o direito de estar aqui? O quanto o teatro de rua interfere, questionando o que é público e o que é privado? A cidade só se politiza quando se desorganiza”.

Teatro das ruas

            A discussão segue, o protocolo está aberto. No ambiente do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, onde a proposta é estender a ação pelos próximos anos, e além. Por fim, vale à pena lembrar que se por um lado o esforço de reflexão sobre formas específicas é sempre bem-vindo, o teatro das ruas nunca precisou da crítica, ao menos não a institucional, para ser. Uma crítica “positiva” pode ajudar, quando muito, a trilhar os caminhos até os editais e afins. Mas, naturalmente esta é uma função menor. Em regra, a crítica à cena de rua vem sendo feita no próprio evento, no contato dos artistas com suas plateias. É uma forma legítima de os artistas testarem olhares críticos naquela base relacional a que se referia Foucault, ou integrativa, como quer Antonio Candido. E deve ser o chão, a condição primeira para o olhar especializado que não queira se deixar reduzir ao formalismo. Sobretudo em um país que neste momento é comandado por gestão ilegítima, que tende a seccionar os espaços de reunião, de dissenso. As ruas brasileiras, hoje em conflito, têm a sua própria narrativa e a cada dia renovam seus repertórios. Uma cena e uma crítica interessadas em perceber o mundo além do próprio umbigo não podem esquecer isso, sob risco de anulação, pela força de um teatro poderoso que se inventa espontaneamente todos os dias e em todos os lugares do país.

(Em colaboração com Marcio Silveira, Michele Rolim, Renato Mendonça e Alexandre Vargas).

.:. O jornalista, crítico e curador Kil Abreu viajou a convite da organização do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Referências:

[1] FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? (Crítica e Auflärung). Trad. Gabriela Borges, revisão Wanderson Nascimento, publicada no Bulletin de la Société française de philosofie, vol. 82, n.2, p 35-63, abril-jun 1990, reproduzido em Espaço Michel Foucault – www.filoesco.unb.br/foucault, consultado em março de 2013. Citado por Ana Maria de Bulhões-Carvalho, em: A crítica como atitude – variações sobre a crítica. Revista Questão de crítica. Rio de Janeiro. Vol. VI, nº 60, dezembro de 2013.

[2] BULHÕES-Carvalho, Ana Maria. Idem.

[3] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira – momentos decisivos. São Paulo: Ouro sobre azul, 2014.

[4] Idem.

[5] Em: Revista Moringa. João Pessoa, vol. 2, n. 2, 13-26, jul./dez. de 2011.

[6] Termos usados por André Carreira. Idem.

[7] Idem.

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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