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Crítica Militante

Paisagem em labirinto

1.12.2016  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Lenise Pinheiro

Observador atento da realidade no ato de rebelar-se contra ela, desde a primeira hora, o Grupo Folias D’Arte estabelece em Solidão um produtivo estranhamento na sua trajetória de quase duas décadas. Aqui os conflitos sociopolíticos estão submersos nas águas maternais do obscuro. Os artistas potencializam o inconsciente e vão beber direto na fonte do boom literário latino-americano das narrativas que exprimem o realismo gravitando o maravilhoso ou o mágico.

O espetáculo dirigido por Marco Antonio Rodrigues e escrito por Sérgio Roveri imprime essa desafiadora materialidade onírica e desenha linhas de fuga a partir da crise aguda do sujeito e da sociedade. Já o contexto histórico cabe vem da livre associação de cada espectador.

Em tese defendida no início da década de 1970, dedicada à obra do escritor colombiano Gabriel García Márquez, o peruano Mario Vargas Llosa observou que criar mundos verbais implica uma dissidência do real. No caso do trabalho mais recente do Folias, a insatisfação é entredita por meio de imagens produzidas nos planos da palavra, do corpo e do vácuo. Para tanto, sabemos que uma das leis da física no teatro diz que menos pode ser mais: a rigor não existe espaço vazio.

Ao final da sessão, o título da peça do Folias D’Arte repousa sobre nossos ombros. O paradoxo de ‘Solidão’ é incitar a capacidade da arte de nos dar asas e ao mesmo tempo acionar um sensor antiqueda

O espetáculo transporta à visão da história intuída pelos diferentes sentidos do que se entende por razão, como formulou o ensaísta cubano José Lezama Lima em A expressão americana (1957). O autor que expandiu a acepção de latinidade apoiado no nome original e na geografia única do continente – a América distante da prerrogativa exclusiva dos EUA – preconizava ler o passado à luz do presente sob as lentes da imagem entendida como a última das histórias possíveis. Ou seja, a linguagem seria imprescindível aos sentidos e às causalidades do historicismo, o conjunto de doutrinas que tem por princípio explicar a conduta, os valores e todos os elementos (artes, filosofia, religião etc.) da cultura humana.

Seria da natureza da imagem plasmar o mundo dos fatos que Lezama definia como uma imensa condenação inanimada, uma “estéril planície” que só o conhecimento poético, oposto ao racional, poderia animar com o seu sopro, como situa a professora e tradutora Irlemar Chiampi no prefácio à edição brasileira, de 1988, mesmo ano da mais recente Constituição da República Federativa do Brasil, a chamada Constituição cidadã.

Lezama é uma boa companhia para o espectador se aproximar da criação colaborativa do grupo. O discurso lógico é ausente. Pisa-se o universo das formas e texturas de corpos, de espíritos e de coisas que pertencem ao reino das inutilezas, dos inomináveis, das imanências.

E novamente a literatura. Quando García Márquez nos dá o chão, o céu e a chuva de Macondo, em Cem anos de solidão (1967), e o mexicano Juan Rulfo a aridez das paragens de Comala, em Pedro Páramo (1955), a matéria-prima desses artífices é a palavra e sua capacidade de instaurar milagres no imaginário, primo equidistante do real e do simbólico.

São 12 atuantes no espetáculo que flerta com o realismo mágico da literaturaLenise Pinheiro

São 12 atuantes no espetáculo que flerta com o realismo mágico da literatura

Solidão levanta voo do piso do Galpão do Folias (como do palco do teatro do Sesc Santana, na primeira de estreia) com capacidade incomum de reimaginar as contradições a que estão sujeitos os povos de países da América Latina e do Caribe. A arte não deixa de florescer pelas mãos e pensamentos do sujeito colonizado, subjugado a ditaduras e golpes, refém do subdesenvolvimento econômico, não importa. Para o sujeito metafórico, para citar Lezama outra vez, a morte não apaga as memórias do cárcere assim como o Cinema Novo guarda incontáveis lições de como a precariedade depura pérolas na cabeça inventivas.

O espetáculo é concebido a partir desse território livre e de alto risco. Como não há brecha para sofismas, simulacros e ideações no campo estrito da cena – tampouco o coletivo quer desqualificar a ambição pela busca da verdade do lado de fora, vide a constância com que entrevemos a rua a cada vez que o portão principal do galpão abre-se à dramaturgia espacial –, outra verdade é descortinada por 12 atores. Numa sessão para pouco mais de duas dezenas de almas, essas mulheres e homens, mutantes fabulares, não vacilaram na convicção do que representavam naquela noite. Sem integridade não haveria suspensão e a fruição estética cairia por água.

A chegada de um cigano a um vilarejo abre a estação de alteridades em que viver e morrer não se bastam: há muito mais a ser revelado para além desse intervalo em narrativas atemporais que podem até configurar um panorama histórico, no jogo de associação, mas sem fundamentações a priori ou a posteriori.

Afinal, a circunscrição colombiana fica patente na evocação de personagens de García Márquez, de cores da bandeira nacional, de figurinos, adereços, danças e músicas de matizes locais, a cumbia sublimada, o que não é pouco para um território que assoma o imaginário alheio por meio da série Narcos e acaba de assinar um acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Evidente, portanto, o processo de transculturação (ou espelhamento) com o país vizinho e a verve caribenha dos cabarés tantas vezes revisitados pelo Folias.

As instâncias do fazer, do saber e da incerteza ficcional soam interdependentes nas intervenções dos artistas dentro e fora do set. A pintura está em deslizar, plástica e corporalmente, as sequências mediadas pelo narrador como se fossem ilhas que se tocam, quase se confundem, mas seguem seus cursos. Suas estações. As histórias vazam da entrada principal do galpão, dos fundos das arquibancadas, dos mezaninos, das laterais e das paredes. O Folias sempre soube se aproveitar dessa arquitetura, desde que abriu o espaço multiuso nos baixos do Minhocão, em Santa Cecília, região central de São Paulo. Isso foi há 15 anos.

Soa redundante falar do domínio de espacialidade quando o núcleo de integrantes está junto boa parte deste tempo. Mas tal domínio é particularmente decisivo para transmudar o espectador sem que saia do lugar. Isto torna cenicamente verdadeiras as bases irreais das situações em que o elenco se lança com franca intensidade.

Apesar da coesão dos atuantes nos desvios labirínticos, todos viscerais, é incontornável não apontar a composição encantatória do narrador de Ailton Graça, o cigano Chema, um brincante de alma e ancestralidade africanas. Inclusive quando descola dele para encarnar a morte ou a figura insolente de um pombo a atirar excremento na cabeça do pobre homem amarrado a um tronco, alusão ao enlouquecido patriarca da árvore genealógica de Cem anos de solidão.

O elemento catalisador na cenografia de Sylvia Moreira é uma tela, ao fundo, com galhos-raízes-veias tingidos de sangue e em relevo. A planta sem folhas indica o estado vegetativo em diferentes níveis de percepção.

Airton Graça e Lui Seixas: gelo nos trópicosLenise Pinheiro

Airton Graça e Lui Seixas: nos trópicos

Numa criação em que paisagens e atmosferas calam fundo, lembramos a Soledad enamorada de seu novelo gigante (cuja leveza corporal de Joana Mattei tenta desatar); a mulher enlameada, Lupe, de sugestão autóctone ameríndia (por Rafaela Penteado); e o homem transportado em carrinho de mão, como que sentado em posição de lótus a segurar uma barra de gelo (por Luis Seixas) nos abrasados trópicos.

As imagens geram uma ambígua correlação de causa e efeito. Solidão impacta pela alquimia da irrealidade cotidiana que o teatro do Folias D’Arte é capaz de nos convencer por cerca de duas horas. O trabalho concretiza ou quem sabe subverte o que o seu cofundador e dramaturgo Reinaldo Maia (1954-2009) cogitou como “um pensamento puro cênico”. Assim ele entendia a alternativa à fricção das estruturas do drama e do épico. Reivindicava “uma usina de conceitos, que não abandona a capacidade de fazer divertir o público, que desmascare este mundo e leve a refletir”, conforme a pesquisadora e organizadora Iná Camargo Costa no prefácio a Teatro reunido: Reinaldo Maia (2010, edição do grupo).

Ao final da sessão, o título da peça de fato repousa sobre nossos ombros. O paradoxo é incitar a capacidade da arte de nos dar asas e ao mesmo tempo acionar um sensor antiqueda. Como nos versos do cantautor uruguaio Jorge Drexler, o espetáculo expõe as cicatrizes e não vaticina a ilusão de que viver é indolor.

Em sua desordem assertiva, Solidão é obra parelha à de agrupamentos latinos como o colombiano La Candelaria (El paso, 1991) e o peruano Yuyachkani (Ultimo ensayo, 1998). Nos traços comuns, o poder de autoanálise, uma boa dose de ceticismo, o devir como inscrição e uma visada histórica crítica, mesmo quando subliminar.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

.:. Leia a crítica de Patricia Freitas a partir de Solidão.

Ficha técnica:
Direção: Marco Antonio Rodrigues
Dramaturgia: Sérgio Roveri
Com: Ailton Graça (Chema), Bete Dorgam (Concha), Clarissa Moser (Mariposa), Joana Mattei (Soledad), Lui Seixas (Giuseppe), Nani de Oliveira (Velha), Pedro Lopes (Aristeo), Rafael Faustino (Velho), Rafaela Penteado (Lupe), Rodrigo Scarpelli (Jimeno), Simoni Boer (Tereza de Dios e Maribel) e Suzana Aragão (Malva)
Dramaturgista: Gustavo Assano
Desenho de luz: Tulio Pezzoni
Composição e direção musical: Sonia Goussinsky, Rafael Faustino
Canção Os reis do agronegócio: música de Chico César, letra de Carlos Rennó
Movimento cênico: Joana Mattei
Cenografia e figurinos: Sylvia Moreira
Design gráfico: Humberto Vieira
Fotografia: Lenise Pinheiro
Operador de som: Adriano Almeida
Assistente de cenário e figurinos: Sofia Fidalgo
Pintura artística de telões: Fernando Monteiro de Barros
Máscaras e adereços: Carlos Francisco, Luiz Carlos Rossi e For Produções
Execução dos figurinos: Judite Lima
Costureiro: Otávio Matias
Contrarregragem: Marcelo Machado e Giovanna Kelly
Cenotécnicos: Carlos Ceiro, João Donda
Direção de produção: Ricardo Grasson
Produtor executivo: Tomás Souza
Produção geral: Gelatina Cultural

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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