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Crítica

Evoé, Marçal de Souza

7.1.2017  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Paulo Amaral/FCCR

Num poema que costuma acompanhar as edições da peça Rasga coração (1974), intitulado Somos todos profissionais, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, riscou o chão: “(…) viemos aqui cumprir nossa missão/ a de artistas/ não a de juízes de nosso tempo/ a de investigadores, a de descobridores/ ligar a natureza humana à natureza histórica”. O grupo Teatro Imaginário Maracangalha, de Campo Grande (MS), pratica esta filosofia com precisão no espetáculo de rua Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno (2010).

Inequívoca a determinação do cortejo cênico em denunciar a violência contra os povos indígenas a partir da memória de luta e da injustiça flagrante no assassinado do líder guarani Marçal de Souza (1920-1983), o Tupã-i, o “Deus Pequeno”, como ele foi batizado em criança na língua tupi. Como vimos na Praça Afonso Pena, no centro de São José dos Campos, a criação transmite uma dignidade essencial no olhar dos cinco atores tocados pelo amor incondicional à sabedoria e ao conhecimento através da procura permanente da verdade. E isso não é uma platitude.

Estamos diante da memória e da presença de um homem notável, de existência complexa, de difícil transposição para um roteiro de peça em espaço público. ‘Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno’ saúda e reaviva a força desse líder guarani

Existe a minha verdade, a sua e a verdade, como diz a tradição cultural do griô na África. Quando as provas gritam nos autos e a justiça sucumbe, então a arte tem muito a dizer, mostrar e dar o que pensar. A quem jamais ouvira falar do sul-mato-grossense Marçal de Souza e de sua trajetória incomum – como este jornalista admite; o Brasil não conhece o Brasil e a ignorância é genocida –, a narrativa documental é aterradora.

Escrito em colaboração com os atores, o roteiro do ator e diretor Fernando Cruz condensa passagens biográficas com ênfase nas formações ideológica e sociopolítica do homenageado.

Souza ficou órfão aos oito anos. Foi educado numa missão presbiteriana, morou com a família de um oficial do Exército no Recife, onde estudou até a segunda série do que equivale hoje ao ensino fundamental. Na década de 1940, já adulto, voltou ao Mato Grosso do Sul, onde trabalhou como enfermeiro (diplomado pela Organização Mundial da Saúde, a OMS) no posto da Fundação Nacional do Índio, a Funai, na aldeia Campestre em Antônio João, onde morou nos últimos anos de luta pelos direitos dos povos indígenas. Até a trágica noite de 25 de novembro de 1983, vítima de uma emboscada na aldeia Campestre, no município Antônio João, a pouco mais de 50 quilômetros de onde nascera 62 anos antes, em Rincão do Júlio, região de Ponta Porã, fronteira com o Paraguai.

Dois homens foram até a casa dele em busca de remédio para o pai de um deles que passava mal naquele momento, por volta de 21h. Souza era assistente de enfermagem em posto da Funai. Abriu a porta de casa e levou cinco tiros à queima-roupa, um deles na boca.

Os pistoleiros queriam calar a voz do homem notabilizado pela eloquência e domínio da língua dos guarani kaiowá e dos guarani ñhandeva, presentes na região. Sua morte despertou a atenção da imprensa internacional e das representações dos direitos humanos quanto ao histórico descaso dos governos brasileiros para com a demarcação das terras e o conluio com fazendeiros. Foi um deles, Líbero Monteiro de Lima, quem mandou executar a enésima liderança indígena no Brasil, por meio do capataz Rômulo Gamarra. Como num processo de Kafka, autoridades locais conspiraram para que a tramitação se arrastasse e os acusados foram inocentados em dois julgamentos, até a prescrição do caso. “A impunidade é mais dolorosa do que a morte“, ecoa a obra.

Evolução de tecidos e bambus em 'Tekoha - Ritual de vida e morte do deus pequeno'Paulo Amaral/FCCR

Evolução com tecidos e bambus em ‘Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno’

A consciência crítica em Marçal de Souza ampliou-se desde o convívio com os antropólogos Darcy Ribeiro e Egon Shaden na década de 1940, na condição de guia e intérprete do guarani. Essa interlocução fraterna e intelectual fez com que defendesse, sem concessões, a sua cultura de origem. Converteu-se em um dos principais porta-vozes da causa indígena. Dias antes do homicídio, recusara suborno em dinheiro para que convencesse os kaiowá a abandonarem uma aldeia já demarcada, motivação mais provável de sua execução.

Marçal de Souza conheceu de perto a dita civilização dos brancos e articulou conhecimentos à sabedoria autóctone. Tornou-se antológico o discurso que fez num encontro público com o papa João Paulo II, em junho de 1980, em Manaus, três anos e pouco antes de ser morto:

“Queremos dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, aquilo que para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência neste grande Brasil, chamado um país cristão. (…) Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto, não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas (…). Nunca foi contada essa verdadeira história do nosso povo. Eu deixo aqui o meu apelo de 200 mil indígenas que habitam e lutam pela sua sobrevivência neste país tão grande e tão pequeno para nós”, argumentou ao microfone.

Enfim, estamos diante da memória e da presença de um homem notável, de existência complexa, de difícil transposição para um roteiro de peça em espaço público (não seria descabida uma aproximação com a trajetória do seringueiro, sindicalista, ativista político e ambientalista acreano Chico Mendes). Porém, à já mencionada dignidade dos atores-narradores corresponde, ainda, a propriedade político-poética sobre o biografado agora evocado pela arte milenar do teatro. Como se Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno o saudasse para reavivar sua força e utopia.

A dramaturgia delimita os pontos-chave diante da pletora de informações. A linha do tempo não é maçante em sua ação clara, em simbiose com os elementos igualmente sintéticos nos adereços, objetos e cenografia artesanais (os bambus ou taquaras são o carro-chefe multiforme, viram até perna-de-pau). Suportes artesanais de plasticidades (tecidos) e sonoridades (sopros, percussão) cabem de forma justa nas bolsas de mão do elenco, feitas, ao que parece, de algodão cru, como os figurinos dominantes. Assim como caminham pelas clareiras da praça e seu entorno, eles carregam o material cênico nos ombros até demarcarem um território. Ao final, recolhem tudo nas mesmas sacolas e lembram um grupo de retirantes.

Cruz (vermelho) é cofundador do sul-matogrossense Teatro Imaginário Maracangalha (2006)Paulo Amaral/FCCR

Cruz (vermelho) é cofundador do sul-matogrossense Teatro Imaginário Maracangalha (2006)

O título Tekoha tem a ver com o espaço do pertencimento na cultura guarani. A expressão “teko” pode significar modo de estar, sistema, lei, hábito ou costume. Laços com a terra tradicional. Os atores revezam em cena as figuras de Marçal de Souza e dos representantes da justiça, da Funai, além do fazendeiro e do capataz. Uma armação de óculos de aros marrons vai ao rosto de cada um dos atores nas passagens representativas das visões de mundo do líder. Apesar da gravidade dos fatos, a abordagem não trai o apelo popular e a potencialidade do humor para a reflexão.

Por outro lado, não alivia na manipulação da justiça ao arguir sobre os procedimentos técnicos de descarado favorecimento aos acusados, uma sequência da ordem das perversões institucionais.

Em sua década de trajetória, o Teatro Imaginário de Maracangalha distingue os insumos poéticos para a construção artística a partir da lupa sobre a realidade (os acontecimentos narrados são de estarrecer) e a ação direta quando mobilizado a intervir no cotidiano de urgências. Por isso as extensões do sagrado e da concretude sociopolítica comparecem nessa experiência de mediação com o ritual dos índios. Um trabalho que espelha nossa profunda ignorância da ancestralidade, e de como ela incide no presente brasileiro.

– Escrito no contexto do 31º Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, de 2 a 11 de setembro de 2016.

Líder guarani Marçal de Souza (1920-83)Reprodução

Líder guarani Marçal de Souza, o Tupã-i (1920-1983)

Ficha técnica:
Dramaturgia: Fernando Cruz e atuadores
Direção: Fernando Cruz
Com: Ariela Barreto, Fernando Cruz, Fran Corona, Moreno Mourão e Renderson Valentim
Pesquisa: Patrícia Rodrigues
Alegoria: Lício Castro
Cenografia: Zéduardo Calegari Paulino
Figurino: Ramona Rodrigues
Sonoplastia: O grupo
Preparação corpo em cena: Breno Moroni
Produtora e contrarregra: Ana Capilé
Vídeo e foto: Diogo Gonçalves – Ateliê Passarinho
Designe gráfico: Maira Espíndola
Assessoria de imprensa: Carol Alencar Cozzati
Fotografia: Diogo Gonçalves

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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