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Crítica

A um passo da imobilidade

13.2.2017  |  por Gabriela Mellão

Foto de capa: João Caldas

O que torna o homem humano? Será que os atos mais elementares da vida são suficientes para fazer do homem um homem? Samuel Beckett questiona o sentido de humanidade em Esperando Godot, clássico escrito após a Segunda Guerra que faz ecoar a desesperança de seu tempo. A obra se limita a tratar sobre o que é mais primário ao indivíduo, o sobreviver, como se o viver fosse um despropósito, uma ostentação.

Duas montagens do texto do autor irlandês, em cartaz em São Paulo, evidenciam a analogia entre a desolação do pós-guerra retratada por Beckett e a da atualidade: a primeira sob direção de Elias Andreato (que também atua na obra) e a outra encenada por Cesar Ribeiro, do Grupo Garagem 21.

Os personagens criados nos ‘Godot’ em cartaz parecem confortáveis em suas situações sub-humanas. Não há vestígio de desejo, dor ou esperança nas interpretações das duplas

“Nada a fazer”, repetem os protagonistas Vladimir e Estragon enquanto esperam, sem qualquer razão de ser, alguém de nome Godot. Não o conhecem. Tampouco sabem quando ou se este irá aparecer.

A espera revela-se desprovida de sentido, tão ridícula quanto a vida, num contínuo tirar e colocar de botas, dormir, acordar, comer cenouras e conjecturar inutilidades. O tempo parece desvanecer através de uma sucessão de dias desperdiçados.

A peça apresenta dois deles, um em cada ato. Um como o espelhamento obscurecido do outro. E como o reflexo da escuridão é escuridão, muito pouco se altera. Não há vislumbre de sol nesta noite sem fim.

As ações da dupla de protagonistas são cíclicas e insignificantes. Através delas, Beckett introduz na história do teatro a dramaturgia da inação, rompendo com noções de clímax ou progressão dramática vigentes nos textos teatrais de seu tempo.

Coisa nenhuma acontece de fato na cena. Além disso, não há construção de personagem, história com começo, meio e fim ou mesmo conflito. A força com que Beckett presentifica o nada em cena, evocando destroços de uma civilização, elucida, talvez, a chama dessa peça que, desde a estreia em 1953 em Paris, sob direção e atuação de Roger Blin, é constantemente remontada, mundo afora. No Brasil, teve algumas versões memoráveis, dentre elas a primeira encenação profissional da obra, com atuação de Cacilda Becker e direção de Flávio Rangel (1969), e uma outra realizada por Antunes Filho (1976) com elenco exclusivamente feminino.

Nelson Kao

Campos, Olyva e Sakurai na acepção do Grupo Garagem 21

Em ambos os espetáculos da atual temporada na cidade, Didi e Gogo (como se tratam entre si os protagonistas) surgem descolados da realidade em que se encontram. Embora as peças de Andreato e Ribeiro sejam bastante díspares, há uma leveza comum na caracterização dos personagens. Nas duas, eles agem como homens amortecidos e ultrapassam tanto o registro dramático como trágico, tangenciando o cômico. São clowns que parecem se refugiarem desta terra esquecida por Deus e pelo homem nos escudos da idiotização.

Diante da apatia emocional, a palavra perde força. O desalento de Beckett ganha forma, sobretudo, na expressividade corporal dos atores. Andreato trabalha fisicamente temas tratados no texto, como desumanização e incomunicabilidade, mas no geral é o trabalho corporal de Ribeiro que se destaca, através de uma coreografia de movimentos cotidianos estilizados que materializa um habitar num mundo de dimensões irreais.

Os protagonistas encontram-se em meio a um descampado. O local é povoado apenas por uma árvore solitária, a qual se mostra mais ativa do que os próprios humanos. Quando, no segundo ato, folhas brotam de seus troncos, produz-se o único ato verdadeiramente significante de vida. Para simbolizar este milagre da existência, Ribeiro faz uso de latinhas amassadas. Nada mais pessimista, paradoxal e ainda assim coerente com a sociedade contemporânea.

Nelson Kao

Paulo Campos e Ulisses Sakurai, dirigidos por Cesar Ribeiro

Esperando Godot é talvez o exemplo maior do pessimismo de Beckett. Ao lado de As cadeiras, de Ionesco, marca também o nascimento do Teatro do Absurdo, exercício de linguagem que, em contraposição à realidade despropositada do homem contemporâneo, parece cada vez menos um retrato ficcional, como se o absurdo tivesse sido codificado pela humanidade de hoje.

De certa forma, tanto a montagem de Andreato como a de Ribeiro se fundamentam na invasão do absurdo no dia a dia da humanidade. O primeiro busca amplificar a relação existente entre a obra e o tempo. O palco estampa os mecanismos de um relógio. A árvore, ao centro, é formada por ponteiros, que também lembram agulhas de bússolas. Presos a esse tempo de solidão e desesperança, os personagens movem-se como mecanismos automatizados, confinados nesta engrenagem maior, ao som cadenciado de um tique-taque.

Ribeiro também investe na desumanização dos personagens. O encenador os constrói tendo como inspiração o expressionismo e a linguagem de HQ. Sua estética sombria abarca também a árvore que ocupa o centro da cena, uma instalação de fios de plástico vermelhos que caem até o chão como lágrimas afiadas, criada por Telumi Hellen, responsável também pelos figurinos. A beleza plástica da montagem de Ribeiro é notável. Ainda que a obra pudesse ter se valorizado de uma iluminação mais misteriosa, o diretor mostra-se apto a construir um mundo insólito e a submergir o espectador dentro dele.

Por mais descoladas da realidade que possam ser as duas montagens, humanos povoam o palco. Isto é frisado pelo próprio Vladimir. Quando o personagem Pozzo invade a cena, no segundo ato, indagando sobre a identidade da dupla, Didi replica sem titubear: “Somos homens”.

O que faz com que Didi e Gogo sejam humanos, afinal?

A filósofa alemã Hannah Ardent defende a diferenciação entre natureza e condição humana. “Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”, defende ela no livro A condição humana.

João Caldas

Fontana, Torres e Andreato na obra de Beckett

Os personagens criados nos Godot em cartaz parecem confortáveis em suas situações sub-humanas. Não há vestígio de desejo, dor ou esperança nas interpretações das duplas Andreato/Claudio Fontana e Paulo Campos/Ulisses Sakurai. Eles se reconhecem como homens apesar de suas ações, que beiram a instintividade, serem identificáveis com as dos animais. Ao menos na teoria, já que Beckett inverte a hierarquia habitual existente entre homens e bichos dando somente a Lucky, personagem explicitamente animalizado do texto, o duplo poder de dançar e pensar. Através dos movimentos ou da fala profética (ainda que nonsense), Lucky traz um pouco de alento aos habitantes e espectadores dessa terra de ninguém composta pelo autor irlandês. Sobretudo o vivido Clovys Torres, na obra de Andreato, com sua figura estranha e impactante, cujo domínio corporal transforma um simples andar em acontecimento. O corpo deste homem/cavalo move-se impregnado de dança, atirando coices no ar, acompanhado de um canto animalesco de exaustão.

Não há para onde ir neste descampado em que homens e bichos se misturam, e no qual os primeiros soam bem menos interessantes. “Então, vamos embora”. “Vamos lá”, concluem Didi e Gogo na última fala da obra, obviamente sem saírem do lugar.

Esperando Godot

Serviço:

Onde: Tucarena (Rua Monte Alegre, 1.024, Perdizes, tel. 3670-8455)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h; até 19/2
Quanto: R$ 50 (sexta) e R$ 60 (sábados e domingos)
Classificação indicativa: 12 anos

Equipe de criação:

Autoria: Samuel Beckett
Direção: Elias Andreato
Com: Elias Andreato, Claudio Fontana, Clovys Torres, Raphael Gama e Guilherme Bueno
Figurino: Gabriel Villela
Cenografia: Fábio Namatame
Trilha sonora: Jonatan Harold
Coreografia: Melissa Vettore
Iluminação: Wagner Freire
Diretor assistente: André Acioli
Assistente de direção: Daíse Amaral
Fonoaudióloga: Edi Montecchi
Identidade visual: Elifas Andreato
Diagramação: Dib Carneiro Neto
Produção: DNA Produções Artísticas
Direção de produção: Daíse Amaral
Produtor executivo: Jefferson Pedace
Assistente de produção: Paula Tonolli
Fotos: João Caldas

Esperando Godot

Serviço:

Onde: Viga Espaço Cênico – Sala Piscina (rua Capote Valente, 1.323, tel. 3801.1843)
Quando: Sábado, às 20h, e domingo, às 19h; até 19/2
Quanto: R$ 40
Duração: 140 minutos (com intervalo de 15 minutos)
Classificação indicativa: 12 anos

Equipe de criação:

Autoria: Samuel Beckett
Tradução: Fábio de Souza Andrade
Direção: Cesar Ribeiro
Com: Paulo Campos, Ulisses Sakurai, Paulo Olyva e Cadu Leite.
Cenografia e figurinos: Telumi Hellen
Iluminação: Cesar Ribeiro
Trilha sonora: Cesar Ribeiro
Fotos e filmagem: Nelson Kao
Design gráfico: Diego Bianchi
Colaboração: Maria Fernanda Vomero e Kenn Yokoi
Assessoria de imprensa: Canal Aberto
Realização: Garagem 21

Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.

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