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Crítica

Tragédias que atravessam o tempo

6.2.2017  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Guga Melgar

Antígona e Mata teu pai são apropriações de tragédias gregas que empregam procedimentos diversos em relação aos textos de origem, sendo ambas produções do Rio de Janeiro. No caso da primeira, no Teatro Poeirinha, o diretor Amir Haddad e a atriz Andrea Beltrão mantêm o título da peça de Sófocles e recorrem à tradução de Millôr Fernandes inserindo eventualmente linguajar afinado com a contemporaneidade; na segunda – que encerrou apresentações no Espaço Cultural Sergio Porto e terá sessões no Gamboavista e no Festival de Curitiba –, Grace Passô concebeu uma peça autônoma a partir de Medeia, de Eurípedes.

As operações dramatúrgicas visam à amplitude temporal. Em Antígona, Haddad e Beltrão não se “limitam” aos fatos circunscritos nesse texto específico. Estampam na parede do teatro cartazes destacando a descendência de Antígona. Uma arqueologia que traz à tona não apenas as duas peças anteriores da Trilogia Tebana – Édipo Rei e Édipo em Colono –, como um passado ainda mais remoto. Já o vocabulário ocasionalmente informal e popular da atriz é um mecanismo que tende a promover um elo com o espectador de hoje.

Os criadores das montagens de ‘Antígona’ e ‘Mata teu pai’ lançam olhares dessacralizados na direção do clássico

Esse recurso, por si só, resultaria artificial e insuficiente. No entanto, a peça de Sófocles realça embates que continuam pertinentes nos dias atuais – em especial, no que diz respeito ao conflito entre a lei instituída e a determinação individual. No texto, Creonte, rei de Tebas, proíbe que Polinice, classificado como traidor de guerra, que morreu em luta contra o irmão, Eteocles, seja enterrado. Irmã de ambos, Antígona desobedece a ordem do monarca. Age de acordo com seu princípio moral, que considera como a lei mais importante a ser seguida.

Além do potencial reflexivo da peça, a conexão com o aqui/agora é frisada, na encenação de Haddad, por meio da materialização de uma Antígona que sua e se descabela – opção conexa ao estilo do diretor há 36 anos no grupo Tá Na Rua. As heroínas trágicas normalmente pertencem a dinastias nobres, distantes da massa, mas humanizadas devido à exposição de suas falhas – são dominadas por sentimentos proibidos. Fragilizada pela tragédia familiar (a descoberta do parentesco dos pais, a cegueira de Édipo, a morte dos irmãos), Antígona, na versão de Haddad/Beltrão, desponta como figura carnal, com a qual se pode estabelecer identificação.

Guga Melgar

Espectador pode se identificar com a Antígona carnal de Andrea Beltrão

Há uma quebra de hierarquia tanto no modo nada submisso do encenador e da atriz na abordagem da obra de Sófocles quanto na proposta de vínculo firmada com a plateia. Andrea Beltrão recebe os espectadores na entrada do teatro e permanece no palco, ao final, à disposição do público. A suspensão da quarta parede fica concentrada nesses minutos anteriores e posteriores à sessão propriamente dita. Se por um lado a instalação e preservação (pelo menos, parcial) da barreira entre plateia e espetáculo durante a maior parte do tempo não direciona a atriz para a adoção de um tom interpretativo austero, hierático, por outro Beltrão não envereda por um registro de atuação invisível, naturalizado, transparente. A composição da personagem é evidenciada por meio de um trabalho corporal vigoroso, expansivo, sem que esse caminho implique necessariamente em perda de contato com a palavra ou de reverberação íntima dos acontecimentos, a exemplo das passagens em que Antígona expressa as justificativas pessoais que motivam suas ações. São instantes de verticalização, diferentes daqueles em que a atriz transita por outros personagens além da heroína esboçando fisicalidades de maneira mais propositadamente sugestiva do que acabada. Prevalece, contudo, um tom interpretativo que sinaliza a preocupação em aproximar a tragédia do público.

Em Mata teu pai, novo projeto da Cia. OmondÉ, Grace Passô comprova que a tragédia atravessa os séculos ao traçar uma ligação entre a origem de Medeia – estrangeira que abandonou sua pátria para acompanhar Jasão, assassinando, na fuga, o próprio irmão – e a via-crúcis enfrentada pelos imigrantes na atualidade – com foco no contexto da Síria. O caráter político da dramaturgia também transparece na inversão sexual (ao invés de filhos, Medeia tem duas filhas), alteração que dialoga com a reivindicação de igualdade de direitos da mulher em relação ao homem nos dias de hoje.

Aline Macedo

A atriz Debora Lamm, mãos para o alto, atua com intensidade, sem excessos

Diretora da montagem, Inez Viana aprofunda a articulação contida no texto ao tematizar os excluídos de agora por meio de um coro formado por mulheres do povo (moradoras da região da Gamboa, com mais de 65 anos) e, entre elas, um homem travestido, em referência aos portadores de sexualidades distintas dos padrões prefixados, ainda vitimados diariamente. A diretora investe em aproximação entre o espetáculo e os espectadores ao destiná-los os papéis das filhas de Medeia. Em dado momento há uma cena de amamentação que insinua que as integrantes do coro representariam as filhas, mas essa possibilidade fica circunscrita à passagem mencionada. O título do texto dá a impressão de atribuir uma função ativa às filhas, como se Medeia transferisse para elas o ato de matar – assassinar Jasão, o homem que a abandonou para casar com uma mulher mais jovem e mais rica, e não as crianças, como estratégia para atingir o ex-marido, conforme acontece no original –, mas essa mudança mais instiga a imaginação do que se impõe como leitura fechada.

Como Medeia diante das filhas (espectadores), Debora Lamm argumenta com intensidade direta e contundente. Inflama-se, em certos instantes, sem, porém, se exceder, demonstrando cuidado em controlar a emoção. Sintonizada com as questões levantadas na dramaturgia e na encenação, a atriz evoca sua própria descendência ao entoar canto judaico. Viana, escorada no texto de Passô, inclui Medeia numa contemporaneidade caótica, numa atmosfera desoladora, a julgar pela paisagem apocalíptica – repleta de computadores quebrados e amontoados de forma estilizada como num escombro, numa ruína – da cenografia de Mina Quental. Um panorama acentuado pelo figurino cor de carne, gasto, de Sol Azulay, pela partitura sonora áspera, rascante (direção musical de Felipe Storino) e pela iluminação agressiva (abusando do efeito de cegueira junto ao público), apesar de dosada nas cenas realizadas no fundo do palco e com bom resultado no aproveitamento do globo espelhado, de Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni.

Ricardo Brajterman

Texto vê Medeia na contemporaneidade

Antígona e Mata teu pai são trabalhos que intencionalmente não se ajustam a um padrão de acabamento. Enquanto a encenação de Amir Haddad deixa à mostra uma aparência de esboço – por meio da atriz que subverte as habituais recomendações ao público antes do início da sessão (celulares podem ficar ligados) e da aparelhagem de som e da mesa com água à vista dos espectadores –, a de Inez Viana extrai parte de sua potência das presenças de não profissionais no coro. São opções que decorrem, em algum grau, dos olhares dessacralizados lançados na direção do clássico.

Serviço:
Antígona
Onde: Teatro Poeirinha (Rua São João Batista, 104, Botafogo, Rio de Janeiro, tel. 21-2537-8053)
Quando: Quinta a sábado às 21h; e domingo, às 19h. Até 19/2
Quanto: R$ 80
Duração: 60 minutos
Não recomendado a menores de 12 anos

Equipe de criação:
Autoria: Sófocles
Tradução: Millôr Fernandes
Dramaturgia: Amir Haddad e Andrea Beltrão
Textos complementares: Andrea Beltrão
Direção: Amir Haddad
Com: Andrea Beltrão
Ambientação e projeto gráfico: Fabio Arruda e Rodrigo Bleque (cubículo)
Trilha sonora: Alessandro Persan
Iluminação: Aurélio de Simoni
Figurino: Antônio Medeiros e Guilherme Kato
Direção de movimento: Marina Salomon
Produção executiva: Rosa Beltrão e Sergio Canizio
Realização: Boa Vida Produções

Serviço:
Mata teu pai
Onde: Festival de Curitiba
Quando: 5 e 6 de abril
Onde: Galpão Gamboa (Rua da Gamboa, 279, Gamboa, Rio de Janeiro, tel. 21 2516-5929)
Quando: 12 e 13 de abril, às 21h

Equipe de criação:
Autoria: Grace Passô
Direção: Inez Viana
Com: Debora Lamm
Participação: As Meninas da Gamboa (Alice Araújo, Ana Maria Nogueira, Elza Moreira, Laura Ferreira, Maria Aparecida Marino, Maria Luiza Valdivino, Nelson Marino, Noemia da Silva, Rosa Ruffo, Rúbia Correa, Teodora Alves, Uiara de Souza, Vera Lucia de Faria e Vera Márcia de Faria
Cenário: Mina Quental (Atelier na Glória)
Direção musical: Felipe Storino
Iluminação: Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni
Figurino: Sol Azulay
Caracterização: Josef Chasilew
Direção de movimento: Marcia Rubin
Produção: Claudia Marques
Programação visual: Felipe Braga
Assessoria de imprensa: Ney Motta

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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