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Crítica

Para escutar o som da floresta

22.3.2017  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Sammi Landweer

Gestos, odor, movimentos, olhar, respiração, um corpo em tudo diferente daquele que habita o cotidiano urbano. São corpos assim os que vêm para a cena na mais recente criação da Lia Rodrigues Companhia de Danças, Para que o céu não caia, apresentada na 4ª MITsp e que segue em curta temporada no Sesc Belenzinho.

São realizados em processo colaborativo os trabalhos dessa companhia de trajetória internacional dirigida pela coreógrafa Lia Rodrigues, fundada em 1990 e, desde 2007, sediada na favela Nova Holanda, no complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Nesse espetáculo, os dançarinos-criadores estão no mesmo plano dos espectadores, dançam no meio do público. Porém a alteridade distingue seus corpos na penumbra.

A cor, a textura e o cheiro alterados das peles são signos da opção do grupo pela linguagem ritualística. Dançam como um rito para que a tragédia anunciada no título não ocorra. Os estímulos táteis e olfativos, a qualidade da iluminação e os movimentos iniciais convergem para acentuar o contraponto entre proximidade e distância, acolhimento e estranheza. Certamente há propósito nessa escolha estética.

Alguns traços da obra inspiradora são perceptíveis no ponto de chegada, como a relação estreita entre corpo e matéria no espaço da cena

É possível detectar nessa criação um elo de afinidade com uma certa sabedoria compartilhada por moradores rurais acostumados a se embrenhar na mata. De acordo com eles, só após um longo período de imobilidade é possível ouvir o verdadeiro som da floresta. Só quando o corpo muda de cheiro e a respiração desacelera. A mata, dizem, silencia à entrada de intrusos.

A  referência no título deste que é o mais recente trabalho da companhia dirigida por Lia Rodrigues é o livro A queda do céu – Palavras de um xamã yanomami, fruto da parceria entre Davi Kopenawa, o xamã do título, ativista político e pensador – como o define Eduardo Viveiros de Castro no prefácio – e Bruce Albert, antropólogo francês que o escreveu e publicou originalmente em seu idioma, em 2010, logo depois traduzido em língua inglesa e, finalmente, para o português em 2015 (Companhia das Letras). Relato de grande envergadura, criado no entrecruzamento de saberes, extrapola o campo da antropologia e sua contribuição ao pensamento ainda não está dimensionada. Como observa Viveiros de Castro, uma obra talvez só comparável ao segundo volume da coleção Tristes trópicos, do antropólogo francês Levi Strauss.

Nereu Jr/Foco in Cena

Davi Kopenawa é coautor de ‘A queda do céu – Palavras de um xamã yanomami’

Para o leigo, a leitura de A queda do céu, da qual uma vez imerso não se quer sair, se dá como travessia por um mundo anímico, no qual não há hierarquia entre seres humanos, animais, vegetais e minerais, todos originados da mesma fonte divina. Na mitologia yanomami, os animais já foram gente e mesmo após terem se transformado em bichos seus espíritos ainda povoam a floresta, mito que origina os códigos de respeito que cercam o ato da caça.

Atualizando e trazendo para o debate público os fundamentos de uma cultura não desencantada, a narrativa conduz o leitor por uma terra ainda plena de espíritos (xapiris) que protegem não apenas a vida humana, mas a própria sustentação do céu. No relato de Kopenawa, a floresta é tudo, como no sertão de Guimarães Rosa.

Em outras palavras e sob outro ponto de vista, trata-se de um relato que permite detectar na mitologia e nos ritos yanomami saberes (científicos) muito precisos sobre o que chamamos de ecossistema amazônico, cujo desmoronamento – pensemos nos rios aéreos responsáveis pelas chuvas em boa parte do Brasil – podem concorrer para aniquilar a vida no Planeta.

Importante salientar que não cabe dizer uma cultura ainda não desencantada vivenciada por povos de uma floresta ainda habitada por espíritos, advérbio de tempo que remeteria a conceitos ultrapassados como evolução e progresso. A visão de mundo yanomami é contemporânea e se insere e se articula ao conhecimento sobre a vida na Terra na nossa era.

Um dos aspectos mais relevantes do relato está justamente na possibilidade que a leitura oferece de uma tomada de consciência da profunda ruptura relacional entre seres humanos e natureza nas sociedades de tecnologia avançada. Abismo fatal que se abriu com a modernidade e pode tragar a vida no Planeta.

Sammi Landweer

Dançarino na criação da Lia Rodrigues Cia.

Kopenawa é atualmente um dos xamãs de seu povo. Como tal recebe o sopro do pó yãkoana e tem o poder de fazer dançar os espíritos. Alguns ritos relatados no livro, como soprar pó sobre o rosto, ser alvo do olhar fixo de um xapiri, ou as imagens que fazem o corpo se retorcer no sono, surgem retrabalhados no espetáculo. Antes de tudo, o ato criador de Lia Rodrigues e seu grupo lança foco sobre o livro  A queda do céu podendo ampliar o interesse por essa narrativa que engloba também a biografia de Kopenawa, a luta pela demarcação das terras indígenas e contra a constante e destrutiva invasão de garimpeiros e a cobiça de pecuaristas e do agronegócio.

A linguagem de Para que o céu não caia, no entanto, é a da arte. Alguns traços da obra inspiradora são perceptíveis no ponto de chegada, como a relação estreita entre corpo e matéria no espaço da cena, porém, elementos bebidos naquela fonte ensaística/literária são traduzidos em outros signos, abrindo novas possibilidades de significados e podendo afetar o espectador de diversas maneiras. O caráter investigativo próprio das criações dessa companhia se destaca em especial no tratamento dado à sonoridade. Não há música de qualquer espécie, nenhum estímulo sonoro criado no espaço exterior à geografia na qual estão imersos artistas e espectadores. O ritmo intenso das coreografias – em especial no momento em que abrem uma clareira na selva dos espectadores – tem como único estímulo a pulsação dos corpos e suas vozes.

É possível, ao menos para o público brasileiro (o espetáculo já foi apresentado na Alemanha, em Hamburgo, Potsdam, Berlim, Frankfurt, Düsseldorf e Dresden, e na França, no Festival de Outono, em Paris e no Festival de Dança de Montpellier) reconhecer algumas matrizes de danças indígenas como batidas de pés contra o solo ou o alinhamento dos corpos nos movimentos de conjunto. Gestos que vão pouco a pouco se desdobrando em variantes, uma miríade delas, compondo desenhos surpreendentes em coreografias que impactam pelo volume da criatividade e pelo rigor da execução.

As atuações na trajetória da companhia e também de sua diretora Lia Rodrigues, aliadas à escolha da obra a alicerçar Para que o céu não caia, permitem afirmar que o ato de aproximar de dançarinos e público pode ter tido como objetivo provocar um desvio no modo de apreciação usual dessa arte. Cabe ao espectador encontrar o seu lugar nesse rito, em muitos sentidos.

Serviço:
Para que o céu não caia
Onde: Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1.000, Quarta Parada, tel. 11 2076-9700)
Quando: Sexta e sábado, às 21h30; dom., às 17h30. Até 2/4.
Quanto: R$ 30 (ingressos esgotados)

Equipe de criação:

Criação e direção: Lia Rodrigues

Assistente de direção e criação: Amália Lima

Dançado e criado em estreita colaboração com: Leonardo Nunes, Gabriele Nascimento, Francisco Thiago Cavalcanti, Clara Castro, Clara Cavalcante, Dora Selva, Felipe Vian, Glaciel Farias, Luana Bezerra, Thiago de Souza com a participação de Francisca Pinto

Dramaturgia: Silvia Soter

Colaboração artística e imagens: Sammi Landweer

Criação de luz: Nicolas Boudier

Produção e consultoria de projetos: Claudia Oliveira

Programação visual: Monica Soffiati

Secretaria: Glória Laureano

Professores: Amalia Lima e Sylvia Alcantara

Estudantes e estagiários: Juliana Gonçalves e João Rios

Produção e difusão internacional: Thérèse Barbanel / LesArtscéniques

Residência de criação: HELLERAU-European Center for the Arts Dresden/Germany

Coprodução: Festival d’Automne à Paris/France; Centquatre, Paris/ France; HELLERAU Europäisches Zentrum der Künste Dresden/ Germany; Kampnagel, Hamburg/Germany; HAU Hebbel am Ufer, Berlin/Germany; Künstlerhaus Mousonturm Frankfurt am Main/ Germany; tanzhaus nrw, Düsseldorf/Germany; Fundação Federal de Cultura da Alemanha; Montpellier danse Festival/France, Sesc-sp

Patrocínio: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, secretaria municipal de cultura e Globo (projeto ISS)

Em parceria com o Centro de Artes da Maré e Redes da Maré

Realização da Lia Rodrigues Companhia de Danças

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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