Menu

Encontro com Espectadores

Folias D’Arte no enclave da solidão sociopolítica

21.7.2017  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Bob Sousa

O espetáculo Solidão, do Grupo Folias D’Arte, inspirou o 6º Encontro com o Espectador, ação realizada em 28 de novembro de 2016 no Ágora Teatro, em São Paulo. Participaram do diálogo o diretor Marco Antonio Rodrigues, o dramaturgo Sérgio Roveri, os atores Ailton Graça, Suzana Aragão, Lui Seixas e Rodrigo Scarpelli, a atriz e psicanalista Cecilia Thumim Boal, do Instituto Augusto Boal, demais espectadores e os jornalistas e críticos Beth Néspoli e Valmir Santos. Segue a transcrição editada e aportada no registro de cena do fotógrafo Bob Sousa.

Valmir Santos
Muito boa noite a todas e todos. Obrigado pela presença. Esse é um espaço de reflexão compartilhada, fruto do desejo de celebrar a arte do encontro, da ideia de que a gente possa mirar nos olhos uns dos outros, e conversar. É uma ação do site Teatrojornal – Leituras de Cena, editado por mim, eu sou Valmir Santos, jornalista e crítico, e pela Beth Néspoli, crítica e jornalista também. Esse é o sexto encontro. A gente sempre elege um espetáculo da temporada para conversar, para exercer a escuta e reforçar essa triangulação entre artista, público e crítica. E a gente vem percebendo que a ideia de público não é só do mais convencional, aquele que talvez não lide com o universo das artes cênicas, mas a gente tem percebido que é muito importante que o artista também incorpore essa ideia de ser espectador. A gente tem sentido que talvez o crítico e o artista tenham ido menos ao teatro do que a gente imagina. É uma sensação que estou compartilhando aqui meio em aberto.

A gente fala sempre de um cânone ocidental que determina o nosso teatro, a elegância do europeu, o modo de fazer, mesmo que do ponto de vista da experimentação. Não estou criticando, mas uma das tentativas da gente é solapar esse cânone (Marco Antonio Rodrigues)

A gente traz para roda de hoje o espetáculo Solidão, do grupo Folias D’Arte, um trabalho dirigido pelo Marco Antonio Rodrigues e com dramaturgia do Sérgio Roveri. O Encontro com o Espectador acontece nesse espaço, o Teatro Ágora, portanto a gente tem um apoio muito importante do Celso e da Sylvia, que abraçaram a ideia, e tem acontecido aqui toda a última segunda-feira do mês.

Vou fazer uma apresentação muito breve do grupo Folias D’Arte e os dois convidados de hoje, Marco e Sérgio. O Folias tem uma trajetória desde 1995, um encontro em que se dá a criação do espetáculo Verás que tudo é mentira, que é uma adaptação do livro Capitão fracasso [romance do francês Théophile Gautier]. A constituição do grupo se dá em 1997. Quase sempre se dá essa confusão sobre a origem e a ponta de largada da questão profissional. Portanto, são duas décadas de trabalho continuado em 2017 e desde 2000 o grupo tem o seu espaço, o Galpão Folias D’Arte, ali nos baixos do Minhocão, no bairro de Santa Cecília, no centro. É um grupo cujo trabalho tem um perfil de abordagem de aspectos da realidade brasileira contemporânea; contextos sociológicos e políticos são uma recorrência como tema e também encenações que têm uma abordagem no campo da linguagem poética também muito pertinente. É pensamento casado com a linguagem.

Wanderley Costa Lima

A partir da esquerda, Santos, Roveri, Rodrigues e Beth no Ágora

O Marco Antonio Rodrigues é nascido em Santos, litoral de São Paulo, tem formação em psicologia, um pontapé no teatro a partir de uma experiência amadora em Santos, que é muito forte naquela região até hoje, essa ideia do teatro amador. E em seguida ele vem para São Paulo e cria alguns trabalhos antes do Folias D’Arte e é um nome bastante associado a essa trajetória do Folias. Ele também tem um vínculo profissional com a Funarte aqui em São Paulo. Além de trabalhos dentro do Folias, cria e dirige trabalhos paralelos, tem experiência na pedagogia, no Célia Helena Centro de Artes e Educação, dirigiu trabalhos na EAD-USP, e assim sucessivamente.

O Sérgio Roveri, que está aqui do meu lado, nascido em Jundiaí, terra da uva, é jornalista e dramaturgo. Quando eu o encontro, como colega de trabalho, ele era editor do caderno de cultura e variedades do extinto Jornal da Tarde. E, em dramaturgia, começa a aparecer na cena da cidade em 2003 com Vozes urbanas, direção do crítico Alberto Guzik, ele que também tem uma trajetória muito importante para o teatro da cidade, do país. E, desde 2003, o Sérgio tem escrito continuadamente, abraçou mesmo essa ideia e essa prática como um projeto artístico, a dramaturgia. E esses dois convidados da noite já trabalharam juntos em outras ocasiões: A coleira de Bóris (2009), Medeia (2014) e Solidão (2016).

A gente tem aqui a presença de muitos artistas que fazem parte do espetáculo e faço questão de citar o nome do elenco, além da Sylvia Moreira, que é colaboradora, assina cenografia e figurinos do espetáculo, tem Ailton Graça, Bete Dorgam, Clarice Moser, Joana Mattei, Suzana Aragão, Lui Seixas, Nani de Oliveira, Pedro Lopes, Rafael Faustino, Rafaela Penteado, Rodrigo Scarpelli e Simoni Boer.

Feita essa apresentação muito breve, a gente faz uma abertura, um comentário, uma visão sobre o espetáculo, iniciada pela Beth e depois eu faço uma parte também, uma colocação sobre a obra. Em seguida, a gente passa a palavra aos dois artistas criadores convidados aqui presentes sobre Solidão, a obra.

Bob Sousa

Ailton Graça (Chema) e Joana Mattei (Soledad) contracenam em ‘Solidão’

Beth Néspoli
Acho interessante começar falando que o nome Teatrojornal é trazido do teatro-jornal do Arena, até pela presença da C­­­­­ecilia Boal essa noite aqui com a gente.

Solidão foi um espetáculo que me tirou total da zona de conforto em relação ao Folias, à história do Folias, grupo com o qual tenho um longevo vínculo. Desde o primeiro espetáculo do Folias que eu vi, no palco do Aliança Francesa, Cantos peregrinos – o Eduardo Tolentino indicou e eu fui ver um ensaio – a força crítica e lúdica que tinha ali me arrebatou. Ali havia uma linguagem que pode ser reconhecida em vários espetáculos do Folias a partir de elementos como música ao vivo e crítica ao poder, o Deus bíblico e seu autoritarismo e sexismo – Lilith era uma das personagens – eram alvo da crítica em Cantos peregrinos. Mais adiante, destaco a montagem de El día que me quieras, na qual Reinaldo Maia interpretava um comunista equivocado em suas alianças, que ao final rompe com tudo e sai solitário… Aquele espetáculo parece falar para os dias de hoje. Há espetáculos que não terminam nunca, a gente carrega eles para sempre, a memória faz as adaptações para cada tempo. Tenho alguns assim do Folias, muitos.

Bem, e aí, quando fui ver Solidão, a primeira vez foi no Sesc Santana, bateu uma estranheza, um incômodo, uma falta. Pensei que talvez fosse por conta da assepsia daquele edifício teatral, aquele palco lá longe, tão diferente da proximidade à qual estava acostumada ao acompanhar o grupo em seu galpão. Era ir ver o espetáculo e não estar dentro dele, como no Folias. Por conta do incômodo, eu voltei para ver o espetáculo de novo no Sesc. Depois sentei com o Marcão para conversar e falar do meu incômodo, de como eu, de alguma forma, eu não conseguia chegar no espetáculo, e de como não sabia localizar com precisão o que provocava em mim aquela sensação de falta.

E eu fui ver pela terceira vez no Galpão do Folias. Lá acontece de outra maneira, a proximidade potencializa. A cenografia… o espetáculo tem uma força visual, aquelas máscaras que remetem a uma determinada relação com a morte (penso nos mexicanos). No galpão, talvez pela proximidade, eu pude perceber melhor o que perpassava a visualidade, uma passagem de tempo, a formação de uma nação, o contraste entre alguma coisa que acontece dentro, e aquilo que é trazido de fora.

Há uma cena no espetáculo que, a meu ver, diz muito sobre esse momento que a gente está vivendo, sobre o sistema político que adotamos lá de fora, no qual acreditamos – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – que pudesse ser colocado a serviço da distribuição de renda e da justiça, crença que está caindo agora, desmontando. Uma cena que a mim parece tocar nessa questão, a cena na qual se diz: “Estávamos quietos. Não sei se estávamos bem, mas estávamos quietos”. E, pouco depois, “agora sabemos que podemos devolver presentes”.

É como se, com aquela cena, o Folias dissesse: aqui tem uma possibilidade de acontecer alguma coisa. Talvez a gente possa fazer alguma coisa porque a gente não tem mais nada, porque alguma coisa se esgota, se esgotou. E nessa cena eu consigo fechar um pouco as outras. Porque eu não havia conseguido articular os fragmentos e eu queria fazer isso, talvez um problema meu e não do espetáculo. Minha conversa com Marco Antônio Rodrigues foi inútil porque eu não sabia dizer exatamente a razão de meu incômodo. Quando a gente localiza, aqui tem uma ponta solta, aqui uma aresta, o diretor pode pensar que era isso mesmo que ele queria, ou não, a observação faz sentido. Mas eu não consegui definir o meu incômodo.

Eu reli Cem anos de solidão depois que eu vi o espetáculo, mas acho que não faz a menor diferença reler ou não. Não é preciso. São duas coisas completamente diferentes. Eu quero muito ouvir de vocês sobre o espetáculo. Talvez, de alguma forma, eu esperasse que o Solidão me desse uma coisa mais clara sobre o momento em que estou vivendo, porque é possível esperar isso do Folias. Esperar que o Marcão dê uma explicação sobre o que estamos vivendo. E que talvez o meu incômodo esteja nessa busca, quando o melhor do teatro pode ser assumir o não saber mesmo, e investigar. Teatro político não é para ser confortável. Mas eu assumo minha dificuldade de lidar com essa cena. Conversei com Marcão, mas não tinha nada de sedimentado para dizer.

Bob Sousa

Bete Dorgam em nova parceria com o Folias na pele da personagem Concha

Valmir Santos
Eu acompanho o grupo Folias desde o início de sua trajetória e, como a Beth falou, é inevitável que gere uma expectativa como espectador do grupo, dessa ideia de uma contundência social, política, histórica nos seus trabalhos. Às vezes, vindo de um discurso mais direto em relação aos conteúdos levados à cena. Não é a primeira vez que o grupo visita o universo latino-americano e há um elemento bastante solar na musicalidade, no colorido, no trabalho do Folias como uma vibração de tons latino-americanos, de uma força, uma cultura ameríndia, a questão das nossas tradições e contradições políticas do continente. É um universo bastante recorrente e o que eu acho que a gente vê em Solidão é essa puxada de tapete.

Como um grupo que tem essa vocação, essa veemência no seu pensamento, na cena, lida com o universo do realismo mágico, maravilhoso ou fantástico, como os adjetivos dançam em torno dessa ideia do realismo latino-americano, da literatura, etc.? Como que um grupo com essa característica visita esse universo em que a ideia… Talvez de universo onírico, inconsciente, e como dar materialidade a essas atmosferas, a essa coisa inominável que é o espaço da liberdade e de bastante risco da ficção, desse lugar bastante movediço, mais difícil de nomear num primeiro momento?

Acho que esse é o grande desafio para o grupo nesse projeto. Acho que eu senti isso com o discurso do Marco no texto do programa em que ele assume uma subjetividade de uma forma mais direta em vez de falar de um contexto, de um momento, de recortes etc. Há uma crise do sujeito também se colocando.

Solidão é um trabalho em que somos movidos mais pelo impacto das imagens. No espetáculo, as histórias passam, vão e vêm como que em estações, não têm exatamente começo, meio e fim, mas ao final eu posso fazer lá uma composição ou até uma leitura de um panorama histórico, um recorte. Acho que é evidente uma circunscrição em relação à Colômbia, a referência de Cem anos de solidão, de alguns personagens que são muito reconhecíveis no que a gente está vendo, nas cores da bandeira colombiana, na musicalidade, nas tradições folclóricas. O espectador pode fazer as suas associações livres em relação até ao seu Brasil.

Se a gente lembrar de Oresteia, o canto do bode, um espetáculo de 2007, ali, o contrato com o espectador de largada, no material de divulgação e no programa, fala de uma correlação nos contextos latino-americanos, por exemplo, do período do populismo ou de redemocratização nesses países de nosso continente associado à Oresteia da trilogia de Ésquilo, quando são lançadas as premissas de uma ideia do Estado democrático, em que talvez a partir dali as coisas vão andar mais por uma régua da justiça, menos selvagem, ou olho por olho, vamos dizer assim, e abrindo-se um espaço para a dimensão da justiça chamada mais civilizada, como a gente conhece nos dias de hoje, pelo menos nas constituições federais. Ou seja, esses códigos e esse campo da leitura da experiência do espectador lá na Oresteia, o canto do bode estão mais conectados com uma trajetória do grupo.

Mas eu acho que em Solidão a puxada de tapete é muito bem-vinda nesse contexto, por quebra de expectativa em relação ao percurso do Folias. E, ao mesmo tempo, é por essa trajetória, essas imagens que me impactam, mobilizam e fazem com que eu me sinta encantado. Vou entrar em subjetividades: há muita beleza, muito encantamento pela experiência dos atores que estão em cena defendendo o projeto artístico da encenação de uma forma incrível.

Vi o espetáculo no Galpão, com um público de menos de 20 pessoas, com 12 atores em cena, e que talvez a ideia de vazio ali naquela noite foi mais ampliada ainda porque havia poucos espectadores e buscava-se literalmente o olho desse espectador, desse ator, lá e cá, todos não desarmavam desse estado de presença na relação com o público. Fazendo com que a ideia de discurso, de uma consciência social e política da realidade brasileira e latino-americana se configure, aqui, vazada pelo inconsciente, por outras possibilidades de leitura, por uma subjetivação. Via o realismo mágico que os escritores concederam e permitiram aos leitores de meados do século passado até os dias de hoje, quando a gente lê esses universos e inevitavelmente fazemos associações com o nosso território, com o nosso pedaço.

Bob Sousa

Elenco a bordo da dramaturgia de Sérgio Roveri inspirada em García Márquez

Quando se pensa no desenho, a sugestão de uma cidade de Macondo, por exemplo, cada um de nós, lendo o texto, vai se identificar com essa cidade. A letra impressa, a palavra escrita me permite dimensionar o chão, o céu ou a chuva dessa cidade. Cada um faz a sua projeção. Mas como o projeto artístico vai materializar esse status de imanência, de pouca apreensão de um primeiro momento para a cena. E acho que isso o espetáculo consegue se afirmar e nos afeta muito. E essa ideia de pensamento e realidade vem baqueada na hora em que você sai da sessão, no meu caso.

Uma tristeza muito profunda, uma correlação óbvia com o tema da solidão, mas talvez seja essa a tradução do momento. É uma depressão social e de momento, e de utopias e desejos, realizações no plano pessoal – o Marcão fala na primeira pessoa –, como nós espectadores, nós todos dentro dessa experiência da arte de teatro, em São Paulo, em 2016, em novembro, e nas semanas, nas horas, nas notícias… É um trabalho que por mais que sublinhe a ideia do sonho e da utopia, de um ideal latino-americano, ao mesmo tempo, ele é muito importante quando a gente faz cruzamentos com outros contextos, sobretudo com o nosso agora.

Acredito que o grande mérito é sair de uma zona de conforto, a ideia de que a integridade do projeto e dos atores em se prontificar em cena o tempo inteiro para falar desse impossível, para nos deixar sonhar, como naquela imagem do carrinho com sua pedra de gelo, uma congelada nos trópicos, e naquele banho enlameado de terra, do nosso ideal de América, de latinidade. Aquela cena das águas em que os atores estão todos jogados no chão diz muito também, é um desalento, mas há uma beleza infinita nesse desalento. Não tem saída, não tem discurso claro, mas é o teatro acontecendo na sua beleza última, no seu projeto de ideal coletivo e que se cumpre e diz a que veio, por mais que seja dolorido. A vida dói.

Marco Antonio Rodrigues
Eu vi uma postagem no Facebook que era uma foto do Fidel Castro que dizia assim: “Fidel sofreu mais de 600 atentados na vida, lutou a 140 quilômetros dos Estados Unidos e morreu em Cuba como um velho, morreu de velhice”. Eu estou falando isso porque a solidão é pior do que a morte. E o Fidel, acho, é a prova maior disso. Fidel é o cara que acreditou nessa ideia da solidariedade no limite máximo, no enfrentamento máximo, deu uma potência humana que talvez poucas pessoas tenham dado nesse século para dimensão da aventura humana e acho que essa é a nossa pobreza, e Solidão é um pouco isso: pior que a solidão, é a morte. Porque ali todos aqueles personagens acabam se exaurindo de forma solitária. Quer dizer, a morte deles é a solidão. Eles são fantasmas, andam, andam, mas eles estão mortos.

Hoje em dia eu não faço parte do Folias, eu estou lá como convidado. Eu não tenho mais idade para grupo. Às vezes eu admiro as pessoas que ficam nos grupos por anos, essa coragem de gente como o Zé Celso [Martinez Corrêa, diretor do Teatro Oficina e da companhia Uzyna Uzona], a Ariane Mnouchkine[diretora francesa fundadora do Théâtre du Soleil], o Augusto Boal[diretor e teórico do Teatro do Oprimido, que integrou a companhia Teatro de Arena]. Porque acho que a burocracia corta o estado criativo, ela impede um monte de coisa. Claro, eu tenho toda a trajetória do Folias, sou um dos fundadores do grupo. Esse espetáculo, de algum jeito, fala do Folias. Não é à toa que o fantasma do Rodrigo [Scarpelli] entra pela porta. Aquilo, para nós, é uma entrada para dizer: “Vai acontecer, vai acontecer aquilo”. Os fantasmas estão lá, estão entrando, estão saindo porque supostamente ali não é um espaço de solidão, é um espaço de morte, onde a morte de algum jeito precisa ser cultivada. Acho que um dos problemas do país é que não se cultiva a morte – fala-se pouco sobre a ditadura, sobre a tortura, sobre essas as mazelas…

A gente volta à estaca zero a cada trabalho que termina: uma proposta de edital, de prêmio, de Fomento, de vamos fazer junto… Há uma beleza vocacional nisso, mas há também uma solidão e uma tristeza por nunca encontrar alguma coisa pronta e confortável, para você dar um start a partir do ponto em que parou (Sérgio Roveri)

E a gente fala sempre de um cânone ocidental que determina o nosso teatro, a elegância do europeu, o modo de fazer, mesmo que do ponto de vista da experimentação. Não estou criticando, mas uma das tentativas da gente é solapar esse cânone. Não é à toa que o figurino da Sylvia [Moreira], logo de cara, lembra o conjunto folclórico de Medellín, que viemos aqui para cantar a nossa história. E a pretensão é essa, é tocar, sim, na breguice, partindo daquilo que é a nossa cultura autóctone, por mais desagradável que seja para a intelligentsia, se é que ela existe ainda.

Para a gente, o Folias sempre teve um caráter não só da ação artística, mas da política também. É no Galpão do Folias que começa o Arte Contra a Barbárie, lá que acontece a primeira reunião; a Lei de Fomento ao Teatro; lá que começam algumas brigas boas. Essas mudanças que a gente vê do ponto de vista dessas estruturas de pensamento de vanguarda, de significado da questão artística do ponto de vista cultural foram esses caras que investiram nisso, que retomam uma ruptura que a ditadura fez lá com o Arena, etc. Mas o que é lamentável para a gente é que depois que conseguimos instaurar o Fomento pela cidade inteira, e mesmo com tanta gente fazendo teatro, quem ganhou a eleição? [municipal, no mês anterior] O [João] Dória ganhou a eleição. Ganhou em Guaianases [extremo leste]. Quer dizer, de algum jeito, esse simbólico da gente [artistas de teatro] não significada absolutamente nada, não avançamos em nada. De algum jeito isso dói na gente.

E Solidão tem um pouco isso, mesmo com toda essa questão da literatura, a questão pública é muito forte. E para nós também é muito forte, mas a gente queria entender um pouco como é que essa coisa atingiu a subjetividade, porque não vemos claramente nas instituições nenhum caminho e também não vemos nenhum ideal subjetivo, mas interessava perceber como é que isso atinge a gente. A gente estava falando das nossas relações: familiares, afetivas, amorosas, etc. No processo de Solidão uns cinco ou seis [criadores] se separaram. Acho que a subjetividade está atingida. A minha relação institucional com o Folias é péssima. Esse grupo teve de fazer uma intervenção dentro do Folias, quase que um ebó lá dentro. Ainda não fizemos, mas vamos fazer, para limpar a área. E o que eu vejo é o racha em quase todos os grupos. Um cuidado com a relação com o público, um cuidado com várias coisas que eu acho que se perderam. Principalmente os grupos que têm sede, ficaram muito mais preocupados com a burocracia do que com qualquer outra coisa, e a burocracia no sentido de como é que leva alguma vantagem. Essa falta de independência, ou essa dependência que a gente foi tendo das leis causou um prejuízo grande e a gente não soube lidar com isso.

Então, acredito que, de algum jeito, a gente estava tentando pensar tudo isso. Eu peguei bode desse teatro mensageiro, que diz “vai por aqui”, “vem por ali”. E esse teatro lúdico, esse que cria confusão, inclusive porque a gente sabe que não é fácil paro o público, em nem para a gente, para ninguém. Solidão é um teatro que está dentro da narrativa de uma experiência popular e de uma experiência que tenha menos esse lugar de tentar uma justificação de fazer para nós mesmos. Essa fragmentação ali, para nós, ela não só é proposital como bem-vinda.

Bob Sousa

Cena da peça que também espelha a condição ciclotímica do artista, segundo Roveri

Sérgio Roveri
Vou falar mais da minha experiência pessoal e do que eu senti nesse trabalho e vou dar uma afunilada a partir do meu ponto de vista. A gente fez uma série de reuniões antes de começar os ensaios, em março, na tentativa de encontrar algum caminho para ordenar essa ambição de falar de uma coisa tão ampla quanto a América Latina, processos de colonização e uma série de coisas. A gente tinha teoricamente um território muito grande para abranger e um intervalo de tempo muito grande, então foi necessária muita discussão, e a gente se reunia e ficava com um bloqueio: para onde ir, o que fazer. E veio um estalo que me deu na cabeça e me ajudou um pouco a encontrar um caminho, e nunca falei para o Marcão: se um dia ele me perguntasse como o espetáculo deveria se chamar, eu diria que é Sombrero. E um dia ele me ligou e disse que ia se chamar Solidão, e daí mudou o meu enfoque. Acho que o Sombrero tinha uma imagem mais solar e talvez um pouco mais típica. E quando veio o nome Solidão ao lado de toda a pesquisa que eu estava fazendo – e eu confesso que esse foi o espetáculo em que eu mais li, que mais fui atrás de gente, mais pesquisei para chegar em alguma coisa e tal –, eu comecei a mergulhar muito nessa ideia do que seria essa solidão e meu relato agora é completamente pessoal, é como eu senti mesmo.

Um dia eu percebi que estava conversando muito sobre extraterrestres, uma coisa que eu sempre tive curiosidade, e meio que torcendo para que eles existissem. E um amigo perguntou porque eu estava com essa mania de ET, de ter vida fora desse planeta. Respondi que a nossa civilização um dia vai acabar, e se a gente desaparecer e não tiver nada lá fora, ninguém vai saber que a gente existiu. É muito triste. E me deu vontade de chorar. Tudo que a gente fez, as pirâmides, Beethoven, tudo, tudo vai sumir. A gente fez uma narrativa sobre os dinossauros. E quem vai fazer a nossa? Então isso me deu uma solidão cósmica. E eu fiquei encanado com esse processo de solidão. Essa foi uma imagem. A segunda imagem que me perseguia um pouco, quando a gente começou a mergulhar mesmo, era a de subir os Andes. Eram as duas motivações que encontrei no período em que eu estava trabalhando nisso.

Essa coisa do espetáculo, de uma cena que se acaba e depois vem outra, e você faz uma costura, num ritmo que começa e termina, vejo isso na minha cabeça como uma metáfora da nossa vida no teatro. A cada trabalho você se acaba, em todos os sentidos. Uma coisa que caracteriza muito a nossa profissão é que ela não é cumulativa, como na maioria dos casos. A gente volta à estaca zero a cada trabalho que termina: uma proposta de edital, de prêmio, de Fomento, de vamos fazer junto… Há uma beleza vocacional nisso, mas há também uma solidão e uma tristeza por nunca encontrar alguma coisa pronta e confortável, para você dar um start a partir do ponto em que parou.

Acho que aquela bola que entra em cena é também um pouco a bola que a gente empurra, que um dia volta e te atropela. Então, nesse sentido, vocês fizeram brilhantemente um esclarecimento de como é a peça em seu contexto mais politizado e global. Quando eu vi esse espetáculo pronto, e como a gente já trabalhava com essa ideia de que todos ali já estavam mortos, para mim o espetáculo do Ailton [Graça] é o etezinho que, se ele quiser, vai contar a história que ele viu, a história daquele lugar que já não existe mais.

Quando você fala da própria obra parece que quer encontrar uma justificativa, mas não é nesse sentido não, mas vejo o espetáculo como uma coisa que tem essa força política grande, essa força quase de protesto, mas que também tem esse componente solitário, de lidar com coisas que não vão dar certo mesmo, dessas expectativas frustradas, e que me pega muito. E também essa coisa do nosso país, de a gente achar que agora vai dar certo e daqui a pouco não dá mais certo… E você fica numa situação de temeridade. O que vai ser do mundo a partir de janeiro com o Trump? O Rio de Janeiro com o Crivella? Essa precariedade que é a nossa vida, vejo muito isso no espetáculo: as coisas que toda hora estão se acabando. Emocionalmente, na prática, se acaba tudo, as pessoas são abandonas, morrem nas travessias.

Bob Sousa

Lui Seixas interpreta o personagem Giuseppe: remissão à História latino-americana

Beth Néspoli
Acho muito bacana como aquilo que você vê no espetáculo se materializa no que vocês estão falando, essa ideia de que começa e acaba a cada cena. Você saber que não vai dar certo e tentar entender que não vai dar certo pode ser um grande momento da solidão, mas é a morte necessária. Eu preciso dessa morte para poder encontrar um outro caminho, porque esse não vai dar certo.

Celso Frateschi
Eu acho que teatro trata do humano e o ser humano não permite mais nenhum tipo de simplificação, apesar da cultura oficial ser um beabá insuportável. Quando você quer trabalhar o que eu estou sentindo, o que você está vivendo ou vivenciando no país, a situação não permite mais nenhuma resposta absoluta. Seria ótimo talvez se tivéssemos, mas não temos. Então acho que para estudar o ser humano a gente precisa ir mais a fundo e isso me dá um baita prazer no espetáculo. A cena se acaba, mas ela não se conclui: é extremamente estimulante para mim como espectador estar lá. E agora o que vem? E fico feliz como artista, como um cara de teatro porque é uma busca por uma narrativa diferente dos melodramas que a gente é obrigada a engolir. E nada contra o melodrama, mas não é possível que a gente seja pautado por esse negócio em 2017. Uma mídia extremamente pobre no instrumental de análise que ela usa, e acho que o Marcão e o Folias todo tiveram a coragem de arrebentar com isso de uma maneira radical e buscar outra coisa. E a narrativa construída me agrada profundamente, principalmente porque rompe com a narrativa que a mídia tenta impor como padrão de qualidade, como bom gosto e o bom gosto está no avesso do que essa mídia burguesa propõe.

Marco Antonio Rodrigues
Eu queria ler uma coisa para vocês, posso?

[Lê] “Os raros acertos e a ignorância frequente. Em suposta resenha crítica sobre o espetáculo Solidão, a revista Veja [São Paulo] sentencia: ‘Craque na fusão de temática social e lirismo, o Grupo Folias tropeça no ambicioso drama Solidão. Para desenhar uma América Latina morta, mas que, aos trancos e barrancos, reafirma sua identidade, o diretor Marco Antonio Rodrigues e o autor Sérgio Roveri recorreram ao universo fantástico do escritor Gabriel García Márquez no romance Cem anos de solidão. Na trama, a chegada de um cigano (papel de Ailton Graça) a um vilarejo põe em xeque o cotidiano do povo dali, sempre disposto a defender suas raízes. A dramaturgia descosturada atinge o público como um amontoado de cenas que dificulta a compreensão. Entre os raros acertos está a prostituta centenária interpretada por Bete Dorgam’. Pouco afeitos às falsas polêmicas que nos causam sono e preguiça, mas por obrigação pública, já que Solidão é financiada com recursos da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, nos vemos na contingência da resposta. Poderíamos afirmar, à partida, que Solidão não é drama nem aqui nem na Colômbia; poderíamos também propor, caso respeitássemos minimamente a interlocução, uma discussão sobre os critérios bovaristas e europeus que tanto seduzem a tampa da cabeça dos rarefeitos resenhistas e críticos de teatro que eventualmente ainda se movem por aqui; poderíamos afirmar que o cerne estrutural da escrita de Solidão é uma narrativa épica na melhor tradição multitudinária, multifacetada e fragmentária do circo, do circo-teatro, do musical, do cabaré latinos. Solidão é inspirada na escritura literária revolucionária latino-americana da segunda metade do século XX. Solidão não é telenovela e não suporta esta métrica como medida. Mas nada disso interessa ou se impõe: o que se coloca perante ‘A dramaturgia descosturada que atinge o público como um amontoado de cenas que dificulta a compreensão’ é a necessidade de documentar, por ética e compromisso público, que Solidão foi desenvolvida por um coletivo de vinte artistas de teatro bastante experimentados durante uma jornada de oito meses envolvendo quatro encontros semanais de quatro horas. Amontoado de cenas é o carajo. No demais, Solidão permanece em cartaz. Pode ser assistida no teatro. Não se vende, nem se troca, nem no avulso, nem no atacado”.
Quer dizer, isso é a solidão. Isso é ignorância. E a ignorância maior é quando a gente não responde, porque abre espaço para que, de fato, não haja disputa de pensamento.

Abre para perguntas e comentários

Cecilia Thumim Boal, espectadora, psicanalista, atriz e presidente do Instituto Augusto Boal

Eu não queria falar do espetáculo, mas da América Latina. Apesar de eu ter uma origem europeia, eu sempre me interessei mais pela América Latina, pelo teatro latino-americano, acho muito importante que seja feito, que seja discutido, valorizado, não só o teatro, mas toda a produção da América Latina, que está muito desvalorizada.

Eu tenho uma prática de psicanalista também, mas sem querer entrar muito nisso, fiquei pensando várias coisas que se associam. Quer dizer, primeiro como a América Latina, e África também, e quem está fora do eixo hegemônico, mas que noutro momento já tivemos outras civilizações hegemônicas, parece que a gente assume esse lugar de segunda categoria e tem uma dificuldade muito grande de sair desse lugar e não se dá conta, é quase que inconsciente isso. Eu me pego sendo maltratada por pessoas francesas, por exemplo, e levo às vezes um tempo longo para reagir e me dar conta de que estou sendo maltratada e sair do meu lugar de latino-americana. E olha que eu sou a mulher do cara que inventou o Teatro do Oprimido. E eu também não sei se ele superou essa condição de opressão do latino-americano. É uma questão.

Então, a gente precisa ter isso muito consciente e tentar sair desse lugar do desvalorizado, desse lugar de segunda categoria porque isso nos leva a uma certa posição suicida também, no sentido de por que que a América Latina tem de fracassar, não pode dar certo. Por que a África não dá certo? É uma reflexão difícil de fazer. Somos continente, somos milhares de pessoas. E aí entra outro conceito psicanalítico que é a identificação com o agressor, porque sempre, sempre o francês é melhor. Se você me pergunta de onde sou, eu não digo que sou argentina, eu digo que sou francesa e imediatamente sou tratada como uma pessoa chique.

Eu quero louvar o fato de que um espetáculo latino-americano [que trate dessa dimensão] esteja em cena. Seria meu desejo de que mais espetáculos assim estivem no eixo Rio-São Paulo e em outros lugares. E lamentar o fato de pessoas que se deixam influenciar demais por uma estética europeia, por uma estética que não é a nossa. No Brasil, por exemplo, que tem uma música maravilhosa e ao mesmo tempo uma dificuldade muito grande de valorizar essa mesma música. Já aconteceu de eu pegar táxi no Rio e o taxista falar: “Porque o povo carioca é muito mal-educado”. E eu digo: “Mas o senhor não é carioca? E o senhor é mal-educado?”. Malhar o Brasil é praxe.

Bob Sousa

Nani Oliveira atua como a Velha: ela é das integrantes mais longevas do grupo

Marco Antonio Rodrigues
Mas o paradoxo disso que acho que tem o olhar bovarista mesmo, de admirar sempre aquilo que está fora. O paradoxo é que talvez a qualidade da gente seja mesmo a de ser vira-lata. O problema é que quando um Crivella ganha é porque a gente está com esse olhar bovarista. A mídia consegue produzir isso e esse mínimo espaço de uma poética pessoal, da sua própria decisão sobre alguma coisa, vai sendo cada vez mais diminuído e contaminado e nós, em geral, vamos pensando pela cabeça do outro. O europeu tenta conservar as coisas. A gente não tem o que conservar, por isso a gente pode inventar o tempo todo, já que supostamente a gente não tem o que preservar, porque somos vira-latas. Só que ao mesmo tempo a gente quer conservar o do outro. Essa é a loucura.

Sérgio Roveri

O problema é que o paradigma do sucesso não é a qualidade do que você está fazendo, mas sim o valor que isso pode significar dentro de determinado mercado. E aí talvez a solidão nossa seja a dificuldade que a gente tem de quebrar esse paradigma e de colocar um outro de forma contundente. Acho que quando a gente vai estimulando, como o Teatrojornal, é um pouco buscar outra forma de pensar. Mas é difícil porque ainda a gente se vê preso a esse paradigma que não é o nosso, e aí a gente fica infeliz com isso. A nossa arma talvez esteja num outro nível.

Ailton Graça, ator do espetáculo

De ouvir tudo isso, minha cabeça fica fragmentada em camadas, igual ao nosso espetáculo. É muita informação. Eu já tentei ser chique, já tentei ser australiano. Mas a minha pele carrega uma série de informações que não dá, por conta de um povo que era livre e foi escravizado. De alguma maneira, tentaram aprisionar também a nossa alma, com outros nomes, outro comportamento, e aí entram vários dogmas, o cristianismo, uma série de coisas que tentam nos enquadrar. E dentro desse processo todo, quando a gente estava fazendo o trabalho de criação, quando você está lendo o livro, nota que não tem citação de negro. Eu sou o único negro da trupe, do espetáculo. E as referências que o tempo todo eu levava para lá são as que eu tenho, pelas quais eu luto para resgatar, seja do meu candomblé, do tambor de mina, eu tento buscar essas referências todas para poder colocar ali como um clamor de observação diferenciada para fazer parte desse trabalho.

Quando a gente fala que ninguém olha para a América Latina, ninguém olha também para a África, milhões de pessoas estão sendo dizimadas e ninguém está falando nada, não existe isso na mídia. Eu peguei uma matéria esses dias que era impressionante, algumas vovós em Gana estão aprendendo a lutar karatê para não serem estupradas e isso não aparece em lugar nenhum.

E aí eu penso o que posso fazer sendo parte desse coletivo. Após 15 anos sem fazer espetáculo no Folias, fiquei brigando para ter aquela arvorezinha na mão, sendo griô, que é o contador de histórias na África. O rei pode morrer, o griô não. Ele é a enciclopédia viva, não pode ser enterrado no chão, é o único que é enterrado na árvore, no Baobá, para que continue vivo. Então eram essas as referências que eu ia buscando, ao contrário do que propunha o livro. Referências como a de que quando falar cigano em cena, estou falando do cigano que temos na umbanda, no candomblé, não um simples cigano.

Dentro desse trabalho todo eu levei dois mentores espirituais. Um chamado Sapopemba, um griô, cantador, caminhoneiro; e tudo que ele falava sobre o nosso espetáculo era sobre o tempo: “Vocês estão contando a história do tempo. O tempo precisa ser contado”. E também levei o Mestre Dirceu, hoje responsável pela irmandade Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, que tem 127 anos, o pilão onde ele faz as ervas medicinais, todos os ritos têm mais de duzentos anos. Ele assistiu à peça e ficou encantado com tudo, e a frase dele no final do espetáculo: “É o mesmo problema que a gente tem lá, né?”.

Então, em algum lugar, esse tipo de comunicação esbarrou numa coisa que o cara já tem dentro dele e que está levando toda essa manifestação hoje dita como folclórica, mas que eles não gostam muito e dizem que é tradicional. Eles até se ofendem, porque antes de tocar os tambores eles rezam, agradecem, para depois ir para o palco e cantar, beber a cachaça e profanar.

Quando a gente começou a fazer esse trabalho com base no Balé Folclórico de Medellín tinha uma carga muito grande. Todo mundo que está falando do Folias, fala em camadas. São muitos os fragmentos que a gente tem o tempo todo. O que acredito mais interessante é ter esses encontros; eles fazem falta para a gente se debruçar sobre um trabalho, dentro desse espírito vocacional. É uma coisa que eu não abro mão.

São oito meses de pesquisa, quatro horas se debruçando em trabalhos, e a gente tinha um espírito meio saltimbanco. Querer fazer era maior do que os caminhos burocráticos para a gente fazer o espetáculo. E hoje está muito fácil, de alguma maneira, fazer teatro. Antes, eu fiz um espetáculo que ensaiei por cinco dias e foi sucesso de público. Me dava prazer porque eu estava no palco, casa cheia, mas não era uma coisa que me dava inquietação, aquela angústia criadora de quem está ali até o limite o tempo todo. A gente fez no Sesc [Santana], era uma coisa, e depois fomos para o Folias, voltamos para o galpão, e era outra. A gente está transformando isso o tempo. É nossa tentativa permanente.

Suzana Aragão, atriz do espetáculo
O Ailton é muito otimista, mas eu não sou. O processo foi muito difícil. Quando a gente começou os ensaios, na prática, coincidiu com os episódios do golpe. Então, a disputa por esse projeto dentro do Folias já vem seguido de morte e ausência, que é a saída de muita gente importante. E quando a gente entrou no processo, vivemos estados de silêncios de uma hora e meia, de duas horas, então, essa presença da morte está, de fato, no corpo de quem passou pelo processo, e que era isso que a gente enfrentava. Isso não é alheio, não é irracional.

Bob Sousa

Clarissa Moser vive Mariposa: ancestralidades e urgências do presente

Eu lembro de um ensaio, logo no começo, em que eu cheguei como combinado, mas não queria fazer teatro naquele momento… Saí com muito ódio do Marco porque eu queria ir para frente de uma ocupação e ajudar a impedir que os estudantes [secundaristas] fossem massacrados. Então tive muitos momentos de pensar: “Para que serve o teatro? O que estamos fazendo aqui? O mundo está sendo massacrado lá fora, tem uma moçada que está morrendo”. Então, para fazer a cena do massacre, agora a gente se dá conta, mas durante o ensaio a gente revezava para suportar.

Não é pessimismo, mas quando a gente fala da morte em cena, com as nossas crises, as nossas crises com família – porque também nesse momento criou-se um atrito familiar muito grande e muito doloroso, de muita ruptura –, é porque o processo inteiro foi confrontado com esse não saber. E a gente continua não sabendo. Mas, por outro lado, é muito legal ler na sua crítica, Wellington[Andrade, crítico da revista Cult], o elogio que você faz para o elenco, porque é o lugar que dá prazer de ser atriz, que é o do coletivo. O fato de saber que a personagem do Ailton Graça vem de um ET não tem dimensão.

É uma delícia estar em cena com essas doze pessoas que não têm cordialidade, e isso parece que virou matéria de alguns grupos, de relações teatrais. Nós não somos cordiais. A gente se ama, se arrebenta, se odeia e se encontra no outro dia amando, se odiando, enfrentando. Então esse tesão que chega até vocês, que afeta, que atravessa, vem dessa não cordialidade. E acho que isso é a maior pérola desse encontro, de estar em cena porque ninguém tem dó. E esse é o prazer. O Marco falava: “Parem de se dar importância”.

Cecilia Thumim Boal

Eu queria dar uma notícia, que um taxista de São Paulo me comunicou hoje, e que é totalmente García Márquez. Vocês sabem que começou a aparecer dinheiro nas praias do Rio de Janeiro? As pessoas encontraram notas…  [Risos – em 20 de novembro de 2016, banhistas encontraram dinheiro misteriosamente boiando sobre as águas, na Praia da Urca, notas de R$ 50 e de R$ 100; um pescador contou que conseguiu ‘pescar’ R$ 800].

Suzana Aragão

Que país pródigo, um litoral que jorra dinheiro…

Rodrigo Scarpelli, ator do espetáculo

O Airton Dantas [professor, tradutor e espectador contumaz do Folias d’Arte]  falou uma coisa na semana passada, após um ensaio. “De onde vocês arrumam tanto amor e fé?”. Ele não estava falando sob o ponto de vista da paixão teatral, e sim do contexto de Solidão. Para que fazer essa merda agora com tudo indo para baixo do lodo? É um pouco do que a Suzana fala. O encontro desse coletivo “bufônico”, e não cordial, acaba produzindo uma força além; além da matéria texto, além da matéria concreta.

Lui Seixas, ator do espetáculo

Pensando em amontoados de cena, foram muitas as versões entre as 17 cenas sobre as quais trabalhamos.  Fora aquelas que não entraram, apesar de ensaiadas.  O processo teve muito disso do que estamos fazendo aqui, foram muitas conversas, muitas trocas de ideias. A primeira cena da cumbia,  para até entender essa peste da insônia, esse desgaste de tentar dormir e ao mesmo tempo estarmos nessa luta… Eu sou um dos que tenta manter as coisas ali no Folias, no sentido de juntar cacos, juntar todo mundo.  Acho que tudo se resume um pouco na música final, que depois desse cansaço inteiro, de não saber como dormir, tocar aquela canção ao final. Cansar o corpo para poder dormir.

Cecilia Thumim Boal

Gostei da colocação da pergunta, do por que fazer. Mas, e por que não fazer?

Sérgio Roveri

E dentro dessa coisa da linha de frente, de não dormir, faço uma comparação com fatos que acontecem agora em relação ao personagem do Rafael [Faustino], que se amarra, talvez para se isolar, não querer ver mais nada… Hoje, as pessoas não se amarram em árvores, mas quantas pessoas que a gente conhece e há anos não sai de casa? Eu tenho um primo que tem 40 anos e agora está começando a sair do quarto, após cinco anos.  Como no caso das mãos que perdem o filho nas batalhas da vida. São tipos de solidão.  A gente não consegue entender isso na vida real e também não consegue entender na arte. São perguntas sem explicação.

.:. Leia duas visões a partir do espetáculo Solidão, do Grupo Folias D”Arte, por Patricia Freitas e Valmir Santos

.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

Relacionados