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Crítica

O corpo manifesto

26.7.2017  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Danilo Vieira

Em São José do Rio Preto

Espetáculo aberto a múltiplas possibilidades de interpretação, And so you see… – assinado pela coreógrafa sul-africana Robyn Orlin e mostrado na última edição do Festival Internacional de São José do Rio Preto – é um trabalho de natureza política. Apesar de não haver enfoque panfletário e das menções explícitas a contextos específicos se revelarem pontuais, a dramaturgia sugere um panorama de opressão. Uma dramaturgia construída muito mais a partir do corpo, do não-dito, do que por meio de palavras.

Paira certa ambiguidade sobre o corpo de Khoza, que dá a impressão de reunir o masculino e o feminino – acúmulo que frisa o redimensionamento dos papéis sexuais não mais vinculados a categorizações pré-estabelecidas

De início, o corpo do bailarino Albert Ibokwe Khoza surge em cena envolto em plástico-filme, como se estivesse embalsamado. Aos poucos, rasga o plástico e seu corpo “renasce”. Nesse processo de “retorno à vida”, imprime persona cada vez mais autoritária. Após comer uma laranja de maneira frenética (e manejar a faca na boca de modo vertiginoso, movimento que simboliza o risco, característica do espetáculo), ordena que espectadoras subam ao palco para limpá-lo. Encarregadas dessa função, elas são questionadas sobre suas vidas e batizadas de Madre Teresa de Calcutá, Hillary Clinton e Michelle Obama. Com o corpo limpo, ele assume a identidade de uma rainha de Núbia – antiga região africana hoje partilhada por Egito e Sudão. Começa a pintar o rosto, ostenta joias e chama o público de invejoso (a referência aos sete pecados capitais é apenas uma chave de leitura algo generalizante). A provável evocação das ditaduras africanas vem à tona, realçada pela projeção, no corpo de Khoza, de uma pessoa com metralhadora, a imagem mais concreta do espetáculo.

O caráter político de And so you see… também transparece na abordagem da sexualidade. Ao longo da apresentação, paira certa ambiguidade sobre o corpo de Khoza, que dá a impressão de reunir o masculino e o feminino, acúmulo que, ao invés de ser visto como indefinição frisa o vínculo com os dias de hoje, marcados pelo redimensionamento dos papeis sexuais não mais vinculados a categorizações pré-estabelecidas. No decorrer da encenação, Khoza vai se desnudando sem, porém, que se torne possível enxergar seu sexo.

Danilo Vieira

Contundência política na presença do bailarino Albert Ibokwe Khoza

O olhar do espectador é, em boa parte, orientado pela câmera posicionada ao fundo do palco, onde permanece a cargo de Thabo Pule. Há momentos que, se não fosse pela projeção da imagem num telão, seriam acessados pelo público em medida bastante reduzida – em especial, no início, quando Khoza rasga o plástico que envolve seu corpo. Mas a câmera não se limita a expor o que a plateia não conseguiria ver. Thabo Pule evidencia escolhas, operações, a julgar pela proximidade, pelo ângulo fechado, com que o corpo de Khoza é exibido na tela, e pela eventual inclusão de imagens já existentes “dentro” da imagem do corpo de Khoza. Em determinado instante, o público é filmado e projetado na tela. A imagem, portanto, não se restringe ao plano do registro, mas desponta como instrumento manipulável.

And so you see… flerta com as gramáticas de outras manifestações artísticas – além do teatro, o multimídia, a dança e as artes plásticas. Em relação ao primeiro, Orlin destaca um cinema instantâneo, do aqui/agora. Há uma relativização do aparato tecnológico em passagens concebidas de forma artesanal, nas quais as luzes que incidem sobre as penas que Khoza veste enquanto dança projetam sombras coloridas, abstratas, na tela. Essa singeleza está presente no elo com a dança, na medida em que impera um tom menor, na contramão de coreografias grandiosas (a exemplo da dança das mãos sobre o espelho). E a conexão com as artes plásticas se impõe com mais força na parte final do espetáculo, quando Khoza coloca uma espécie de colar que solta uma tinta azul que cobre o seu corpo. Antes mundano, o corpo ganha aura sagrada.

.:. O crítico viajou a convite da organização do festival.

Equipe de criação:

Autor: Robyn Orlin

Com: Albert Ibokwe Khoza

Figurino: Marianne Fassler

Técnico de palco e vídeo: Thabo Pule

Iluminação: Laïs Foulc

Produção: City Theatre & Dance Group

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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