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Artigo

Os desejos presentes no Maré de Março

23.8.2017  |  por Francis Wilker

Foto de capa: João Rafael Neto

Em Salvador

O Maré de Março é uma das mais jovens iniciativas brasileiras a integrar o calendário de festivais dedicados às artes cênicas em níveis nacional e internacional. O primeiro semestre do ano costuma ser movimentado por encontros como o Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco, no Recife; o Festival de Teatro de Curitiba; a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp; o Feverestival, em Campinas; e o FIT São José do Rio Preto (SP). Diferentes formatos, interesses curatoriais e modos de produção são tecidos na singularidade de cada um desses projetos.

Desde 2013 o Maré levanta sua bandeira em solo baiano, mais precisamente na cidade de Salvador, que também abriga o FILTE (Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia) e o FIAC (Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia), respectivamente nos meses de setembro e outubro, ambos consolidados.

O ator, gestor cultural e militante Gordo Neto é um dos artistas do Vilavox, grupo baiano berço do Maré de Março e principal liderança do festival que nasce fortemente vinculado ao desejo de troca entre os pares, conforme ressalta.

“Em 2013, o que me motivou foi a necessidade de fazer algo em torno do 27 de Março, Dia Mundial do Teatro. Algo me inquietava, achava que precisava discutir nosso teatro naquele momento. Não apenas ter peças em cartaz, mas propor atividades que se esbarrassem, que trouxessem discussões sobre nosso campo. Portanto, a primeira edição do Maré era um ajuntamento de atividades cujo foco era o teatro, mas não tinha como eixo a apresentações de espetáculos”, situa o ator.

A reflexão sobre teatro e espaço nos mostra que a simples transferência de determinado espetáculo de um palco à italiana para um galpão, ou sala, bem como o uso de um espaço alternativo com o mesmo pensamento que se ocupa um teatro convencional, não asseguram o redimensionamento vertical das implicações entre cena-espaço-espectador

A recente trajetória do Maré de Março é ilustrativa do enorme desafio pelo qual passam praticamente todos os festivais de teatro do Brasil, independentemente de sua história e tempo de criação. Não importa se têm 3 ou 24 anos, saber se conseguirá realizar a edição seguinte é sempre um enigma. Seus coordenadores vivem sobre uma corda bamba de incertezas gerada pela absoluta falta de políticas públicas continuadas para os nossos festivais, na contramão do que ocorre em outros países nos quais integram oficialmente o calendário cultural das cidades e contam com maior apoio da iniciativa pública.

Apesar do quadro sofrível, é importante destacar que o estado da Bahia tem procurado construir nos últimos anos uma estratégia para enfrentar esse desafio que é o fomento aos eventos calendarizados, conforme aponta Gordo Neto: “A Bahia tem um programa do Governo do Estado que procura dar um pouco mais de perspectiva a projetos calendarizados, aqueles que acontecem todo ano. Ou seja, assinam um convênio que garante o aporte financeiro não apenas para aquela edição, mas para uma ou duas próximas.”

Neemias Santana

Performance ‘Sagração’, de Olga Lamas, radicada em Salvador

Para exemplificar a situação, o Maré de Março inicia em 2013 de um modo colaborativo entre os coletivos teatrais. A edição de 2014 não pôde ser realizada por total falta de recursos, segundo a organização. Em 2015, o festival volta à cena graças a um modesto aporte de recursos do município por meio da Fundação Gregório de Matos. Novamente em 2016 o risco de se extinguir é vencido pela estratégia de estabelecer uma rede de colaboração entre grupos que entrariam em cartaz com os respectivos espetáculos e se unem ao Vilavox para configurar a programação do festival, de modo que a organização ofereceria suportes básicos de técnica, espaço e assessoria de comunicação. Finalmente, em 2017 o Maré de Março contou com recursos públicos do estado, via Fundo de Cultura da Bahia, que permitiram programar ao longo de nove dias suas 31 obras a partir de uma curadoria traçada por Gordo Neto emcolaboração com os artistas Fred Alvin e Luiz Antônio Jr. O ano de 2018 é ainda uma incógnita com poucas pistas.

No seu processo de avaliação, o ator-gestor aponta o desafio que é achar uma “cara” para o Maré. Ele compartilha questões: “O que fazer diferente dos outros? Que recorte? Nacional? Internacional? Quais as atividades paralelas? Como se relacionar com a produção local? São muitas as perguntas.”

Estimulado por essas questões do organizador, procuro, na segunda parte desse texto, num exercício de pensar junto, alguns fios para a análise do festival.

Ao acompanhar a última edição do Maré de Março foi possível notar algumas potências no horizonte desse projeto que vem se procurando e se experimentando. Entre elas, destacaria de início a intensa busca por estabelecer outras relações com a cidade a partir da escolha de espaços como ruas, praças, edifícios históricos e até um terreiro de candomblé, o que evidencia um abandono do espaço cênico institucionalizado e um convite ao espectador a procurar esse teatro que, para usar a terminologia do pesquisador baiano Marcelo Sousa Brito, se embrenha nas vias e veias da urbe. Essa dimensão se mostrou como um eixo estruturante da paisagem cênica oferecida pela edição 2017.

Se esse aspecto apontado acima demarca um profundo desejo de inscrever outras possibilidades entre cena, cidade e espectador, também reside nele uma das fragilidades na afirmação de um possível movimento que vem se desenhando nas ondas do Maré de Março. A reflexão sobre teatro e espaço nos mostra que a simples transferência de determinado espetáculo de um palco à italiana para um galpão, ou sala, bem como o uso de um espaço alternativo com o mesmo pensamento que se ocupa um teatro convencional, não asseguram o redimensionamento vertical das implicações entre cena-espaço-espectador. Por que esse espaço? Como o trabalho tensiona/converge na composição com as distintas dramaturgias do lugar escolhido? Que sentidos emergem a partir do encontro com o local específico? Essas, talvez, possam ser questões que contribuam numa escritura mais definida de programação.

Para desenvolver a questão apontada acima, gostaria de realizar um exercício recorrendo à própria materialidade da cena, e, ao revisitar alguns trabalhos que se apresentaram nessa edição, procurar mapear pistas que possam contribuir com as reflexões da organização acerca do formato e natureza do festival. Essas pistas são aqui enumeradas num exercício de didatismo e alguns dos trabalhos citados poderiam evidenciar um ou mais desses aspectos.

Pista 1 – A natureza site-specific e sua carga simbólica

Foi interessante notar que alguns dos trabalhos se vinculavam de modo mais direto ao lugar em que se apresentavam. A exemplo da comovente Kaiala, criação local que explora temas como a mitologia dos orixás e a intolerância religiosa, sob atuação de Sulivã Bispo e direção de Thiago Romero, realizada num dos terreiros de candomblé mais antigos de Salvador, o Bate Folha. A ida ao espaço, o encontro com espectadores daquela comunidade e toda a carga simbólica que ali reside agregam ao espetáculo outras camadas de sentido e provocam uma experiência diferenciada ao espectador.

Neemias Santana

‘O castelo da torre’, do grupo Vilavox, encenado num casarão do Pelourinho

Pista 2 – O jogo com a história e a arquitetura do lugar

Em O castelo da torre, uma produção do próprio Vilavox com direção deMeran Vargens, encenado no Solar São Dâmaso, no Pelourinho, propõe ao espectador um percurso por um casarão centenário. A cada subida de escada, a cada novo cômodo, o público vivencia cenas a partir de um enredo que explora questões relativas à nossa colonização, a tortura de homens e mulheres negros escravizados, a matança de índios, entre outras. A dramaturgia assinada por Marcio Marciano em processo colaborativo se potencializa no encontro com a arquitetura de um casarão localizado num bairro também muito simbólico do nosso passado escravocrata e de nosso presente gentrificador. Outro aspecto que redimensiona a experiência do espectador está localizado no jogo de composição que a encenação articula com janelas, portas, escadas e demais elementos arquitetônicos do Solar São Dâmaso. Uma obra que cria dinâmicas de marcações cênicas usando diferentes planos, o dentro e o fora, a extrema proximidade entre espectadores e entre eles e os atores. Desse modo, evidencia-se um trabalho que busca compor e tirar proveito de diferentes aspectos ou potências daquela arquitetura.

Neemias Santana

Performance ‘A sanfonástica mulher-lona’, de Lívia Matos

Pista 3 – Ações disruptivas no cotidiano

A arte da performance, para recorrer a uma expressão da artista e pesquisadora Eleonora Fabião, “escova a contrapelo” o nosso cotidiano estabelecido, os hábitos, aquilo que o corpo pode, as dinâmicas mercantis tão demarcadoras nos usos da cidade etc. Duas ações presentes na programação parecem querer explorar exatamente essa capacidade de se inscrever no real da cidade e produzir outros sentidos. Em Sagração, a performer Olga Lamas caminha com a cabeça inteiramente coberta de flores. Já em A sanfonástica mulher-lona, a atriz Lívia Matos anda pelas ruas como uma espécie de “mulher-circo”. Quando alguém se aproxima, as cortinas se abrem e temos uma mulher tocando sanfona. São ações que, operando numa poética de delicadeza e ludicidade, interferem e articulam outros fluxos no corre-corre diário, convidando os transeuntes a estabelecerem outras imagens da própria cidade. Um aspecto importante que demanda maior atenção na configuração da programação diz respeito aos locais e horários escolhidos para ações dessa natureza, de modo a poder gerar um jogo mais potente com a vida habitual do lugar.

Neemias Santana

Performer d’A Outra Cia. de Teatro em ‘Ruína de anjos’

Pista 4 – A encenação como percurso pela cidade

A Outra Cia. de Teatro, em Ruína de anjos, parte da calçada em frente a sua sede de trabalho para realizar um percurso com os espectadoresno bairro do Politeama. Ruas, calçadas, faixas de pedestre, galerias de lojas, esquinas e edificações ganham outros contornos e sentidos a partir da ação dos atores num enredo que discute temas como mercado da fé, a luta de artistas por patrocínio, homofobia, entre outros vetores temáticos. Numa cidade em que o carnaval foi praticamente privatizado pela maioria dos trios elétricos e seus patrocinadores, onde a rua nem sempre é do povo como o céu é do avião, temos em uma cena um ator num carrinho de metal puxando o bloco de espectadores dentro do cordão. Um duplo precário, pobre, esfacelado da imagem espetacular comercializada da cidade. A encenação, assinada por Vinícius Lírio, articula um transitar por vezes insurgente e violento na grande metrópole. Aqui, o espectador é um caminhante e a relação com a cena se dá no corpo a corpo com o tecido vivo da cidade. Em tempo: o autor deste artigo e os diretores Eliana Monteiro (Teatro da Vertigem) e Luiz Fernando Marques, o “Lubi” (Grupo XIX de Teatro), fomos consultores de encenação e dramaturgia em Ruína de anjos.

A partir dessas pistas brevemente apontadas, intuo que, ao flertar com noções como as de site-specific, intervenção urbana e performance urbana, o Maré de Março poderia ser considerado um dos encontros mais profícuos do Brasil ao convergir produções, diálogos e reflexões nesse campo de criação marcadamente expandido e intrinsecamente ligado ao espaço público. Nesse sentido, o festival parece ter nascido em solo fecundo. É salutar a produção de pesquisadores como Paola Berenstein Jacques e Marcelo Sousa Brito derivadas de temas que envolvem arte, cidade e arquitetura. Vale citar que, recentemente, a Universidade Federal da Bahia realizou o URBARTE – I Encontro de Arte, Cidade e Teatro.Assim, o Maré pode encontrar parcerias férteis para radicalizar a sua busca pelo encontro com a cidade.

Retomar ainda as práticas de trocas entre grupos, o diálogo sobre modos de produção e gestão, os debates, entre outros desejos presentes no DNA do Maré de Março e inscrevê-los na mesma medida de importância dos espetáculos parecem constituir mais um vir a ser presente nas demandas da equipe de coordenação para as próximas edições.

.:. O diretor, performer, pesquisador e professor de teatro Francis Wilker viajou a convite da organização do Festival Maré de Março.

 

 

 

 

Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.

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