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Crítica

‘Palmira’: bárbaros são os outros

8.3.2018  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

Uma pergunta ressoa após a apresentação de Palmira: Seria possível aplicar na arte o princípio homeopático de que a substância que envenena também cura? O espetáculo da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo parte da destruição de monumentos arquitetônicos na cidade síria que dá título à obra. Pode-se moldar uma poética com a mesma matéria brutal que se pretende criticar? Em ambos os campos, da criação artística e da medicina, a substância precisa ser processada e bem dosada para que dela se obtenha o efeito desejado, o que vai depender ainda da reação do corpo sobre o qual atua.

Os corpos dos criadores de Palmira, o francês Bertrand Lesca e o grego Nasi Voutsas, que se tratam pelos próprios nomes em cena, demonstram estar tecnicamente preparados para embates que tangenciam o risco real de ferimento. Se, no palco, a relação entre eles remete à clássica dupla de palhaços – o augusto e o branco, o primeiro sempre submetido ao poder do segundo –, a dose de violência aplicada remove da performance o traço de comicidade ingênua característico dessa vertente da linguagem clownesca.

Ao enredar dois seres em um emaranhado de rancores puxados de um novelo cujo fio inicial se perdeu no tempo, ‘Palmira’ aguça a percepção sobre a complexidade dos conflitos humanos

Para preparar o espectador, um folheto é distribuído na entrada da sala Paschoal Carlos Magno, no Teatro Sérgio Cardoso, onde a montagem é apresentada. O texto informa sobre as construções históricas que fizeram de Palmira um polo turístico e seu triste destino: templos erguidos aos deuses fenícios foram dinamitados pelo ISIS, autodenominado Estado Islâmico, que também usou o anfiteatro da cidade como palco para execuções públicas, cujas imagens circularam pelo planeta.

A chave para a relação com a performance, porém, está na reprodução do discurso do regente da Orquestra Sinfônica Mariinsky, Valery Gergiev. Na abertura do concerto realizado em Palmira para celebrar a vitória sobre o ISIS, o maestro russo fez um apelo à paz e à união de todos contra o mal do terrorismo, valorizando sua arte em protesto aos “bárbaros”, destruidores dos monumentos da cultura.

O que define civilização e barbárie? Quantos bombardeios precisamos esquecer ou quanta carnificina justificar para definir um povo como civilizado? É possível especular que esse também tenha sido o teor das indagações que mobilizaram essa companhia na criação de Palmira. Em Bristol, Reino Unido, onde está sediado, o grupo apresentou, em 2016, Eurohouse, obra que girava em torno do Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) e da crise econômica na Grécia. Está claro que a geopolítica é campo de interesse e abordagem na arte da dupla.

Não se sabe se o folder também é distribuído às plateias europeias. Como o idioma falado no palco é o inglês, e a participação ativa do espectador se mostra fundamental à poética da cena, pode ter sido uma iniciativa restrita às apresentações na MITsp. Mas talvez não, se levarmos em conta que não há qualquer referência direta na performance à cidade de Palmira ou ao chamado terrorismo. As articulações cabem ao espectador. Para que elas se concretizem, contudo, é fundamental a associação entre título, cidade e fatos históricos.

Guto Muniz/Foco in Cena

Os performers Bertrand Lesca e Nasi Voutsas

No primeiro movimento, a descoberta de um prato quebrado – não se sabe por quem, a cena não revela, já estava assim no palco – pode ser compreendido como alusão aos monumentos dinamitados em Palmira. Se as reações iniciais, entre a comiseração meio artificial de um e a vingança desproporcional do outro, são trabalhadas em chave cômico-patética, logo o prato se torna mero estopim de hostilidades muito intensas. No palco quase desnudo – há uma mesa de som na lateral manipulada pelos atuadores e duas cadeiras ao fundo – o posicionamento dos objetos sugere que o prato quebrado pertencia a Bertrand (caberá a ele a máscara do clown dominador). Cacos recolhidos numa caixa de papelão, será a vez de ele quebrar o prato do parceiro em ostensiva retaliação. Assim, os atritos têm início.

É na relação entre corpos e objetos que o pensamento crítico se alicerça nessa performance. Quando os atos agressivos se tornam desmedidos, são lançados ao palco centenas de milhares de cacos armazenados em caixas de papelão. Remoídos e embaralhados, numerosos e pesados demais para serem varridos para os bastidores – ainda que isso seja tentado –, eles levantam poeira e permanecem como ruidosas evidências de rupturas muito antigas. Uma memória impossível de ser reconstruída com a lógica simplista e binária da vítima e do carrasco.

Pode parecer que a dupla de atores aposta nesse binarismo quando faz dele matéria de sedução e parte de um jogo no qual incitam o público a tomar partido de um ou de outro – não por acaso as luzes da plateia permanecem acesas quase todo tempo. Num dado momento, Bertrand, que escolhera uma espectadora jovem e bonita da primeira fila para ser sua cúmplice, interrompe um discurso sobre a beleza dos museus de Paris para agredir com socos e pontapés o parceiro Nasi (ele pronuncia Nassí), e, rapidamente, retoma os elogios à sofisticação da cultura francesa, sem alterar o tom. O ardil é evidente. O performer não quer a cumplicidade que finge buscar.

Ao enredar dois seres em um emaranhado de rancores puxados de um novelo cujo fio inicial se perdeu no tempo, Palmira aguça a percepção sobre a complexidade dos conflitos humanos. Assinada por Louise Stephans, a dramaturgia parece traçada para despertar no espectador raiva contra Bertrand, com sua arrogância de vencedor, mas também algum medo das reações – desproporcionais? – de Nasi, como na cena em que este bate com um martelo muito próximo ao corpo de Bertrand. A fúria nos gestos e na respiração é tal que quase se vê o sangrento resultado na carne do outro. Ao fim, pratos ou monumentos têm sua importância reduzida diante daqueles corpos em luta incessante.

Guto Muniz/Foco in Cena

Em ‘Palmira’, o que se vê e ouve leva a pensar sobre intolerância

A teatralidade de Palmira oscila entre a estética de risco real da performance art e a linguagem das artes cênicas que se assume como artifício. No aspecto vinculado à primeira vertente, o destemor e intensidade dos embates corporais colocam no primeiro plano da atenção os choques físicos e as disputas por objetos e pelo trânsito no território, o que contribui para dificultar a identificação individualizada e amplifica sentidos. Mas Palmira segue sendo teatro e, portanto, artifício. O espectador sabe e aceita o jogo proposto. Tentar convencê-lo de que a dupla pode perder o controle e partir para as vias de fato é quebrar uma regra básica dessa arte. Isso acontece em poucos momentos do espetáculo: os mais frágeis.

Há ainda um aspecto mais sutil nessa encenação, mas não menos importante. Quando a relação palco-plateia se estabelece – o que se deu na apresentação acompanhada –  o que se vê e ouve leva a pensar sobre como a intolerância habita as pessoas e pode ser facilmente manipulada. A julgar pelas manifestações, mais ou menos extrovertidas, a parcela do público que evidentemente se considerava possuidora de maior consciência crítica parecia prestes a tentar calar aqueles que, aparentemente, cediam ao jogo de sedução da dupla. Questões geopolíticas ultrapassam as atitudes pessoais, mas não a ponto de se descolarem delas. É a reflexão que Palmira convida a fazer.

.:. Mais informações sobre a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Equipe de criação:

Criação e performance: Bertrand Lesca e Nasi Voutsas

Dramaturgia: Louise Stephens

Design de luz: Jo Palmer

Técnico de luz: Tom Brennan

Design de imagem: Ollie Baxter

Produtor e gerente de companhia: Edward Fortes

Produzido com o apoio de Croquis_BCN (Barcelona), Bristol Old Vic Ferment, MAYK, Tobacco Factory Theatres, Nuffield Southampton Theatres, Ovalhouse e Home (Manchester, Reino Unido)

A pesquisa e o desenvolvimento para o espetáculo Palmira contaram com recursos públicos da National Lottery através da Arts Council England (Reino Unido)

As apresentações do espetáculo na MITsp contam com o apoio do British Council

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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