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Crítica

Onde morrem os sonhos

28.4.2018  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Daniel Bianchini

Um homem precisa de outro homem. A vida pede companhia, troca, cumplicidade. Mas o afeto tem suas limitações. E mesmo o mais poderoso dos laços pode esbarrar na brutalidade do mundo. Sobre ratos e homens, montagem de 2016 que agora retorna em curta temporada no Itaú Cultural, traz a história de John Steinbeck (1902-1968) sobre trabalhadores desempregados que vagam pelo Oeste americano durante a Depressão Econômica dos anos 1930.

Dirigida por Kiko Marques, a versão atual se apoia em dois pilares principais: uma encenação realista e um conjunto de boas interpretações. Reconhecido por seu trabalho à frente da Velha Companhia, o diretor está habituado a trabalhar, de certa maneira, na contramão do teatro contemporâneo. Primeiro, parece particularmente interessado em estabelecer uma comunicação direta com o público – uma ambição que passa, no seu caso, pela construção de uma fábula eficiente. Esse apreço fica claro tanto nos textos que escolhe montar, como neste Sobre ratos e homens, quanto nas peças de sua autoria: Cais ou da indiferença das embarcações e Sínthia.

Para homens brutalizados pela realidade, esperança e afeição não podem ser mais que distrações ilusórias.  Não existe sonho que possa sobreviver à violência. É mais ou menos essa a hipótese que atravessa e conduz o texto de ‘Sobre ratos e homens’

Nessas duas obras, a história de uma família conduz as narrativas através do tempo que avança. E, nesse cruzamento com episódios pessoais, vão entrando elementos históricos. Em ambos os casos, ecos da ditadura militar brasileira. Outro traço recorrente na trajetória do diretor é sua predileção por elencos numerosos, que sabe conduzir com destreza para alcançar os efeitos desejados.

Originalmente, John Steinbeck publicou Sobre ratos e homens como uma novela, em 1937. A transformação da trama em peça teatral – feita pelo próprio escritor – ocorreu em 1951. Nesse momento, o contexto social e político já era outro: a Depressão dera lugar à prosperidade e ao otimismo do pós-guerra.  Harry Truman (1945-1953) e John Kennedy (1961-1963) investiram no Estado do Bem-Estar social e trataram de cuidar das camadas mais desfavorecidas da população. Mas a história dos companheiros George e Lennie manteve-se relevante mesmo descolada de seu contexto primeiro, como um lembrete amargo da fragilidade do sonho americano.

Pobres trabalhadores, mantidos à margem pelo sistema, sempre serviram de esteio para a ficção de Steinbeck. Sua obra nunca teve o propósito do entretenimento, mas da denúncia e da observação da realidade. Esse compromisso ideológico pode explicar, por exemplo, que Augusto Boal tenha inaugurado sua carreira teatral no Arena com Ratos e homens, em 1956, e serve também para entender a simplicidade das formas narrativas escolhidas pelo escritor. Dividida em três atos, a peça preza pelo realismo (o texto em inglês chega a tentar capturar particularidades da linguagem dos trabalhadores da época), traço que a direção de Marques faz questão de preservar.

Daniel Bianchini

Elenco atual de ‘Sobre ratos e homens’, dirigido por Kiko Marques

Para homens brutalizados pela realidade, esperança e afeição não podem ser mais que distrações ilusórias.  Não existe sonho que possa sobreviver à violência. É mais ou menos essa a hipótese que atravessa e conduz o texto, estruturado de maneira bastante esquemática. No início, apresenta um impasse; a seguir, leva esse conflito ao paroxismo e, depois, apresenta a resolução da questão. Trata-se, aliás, de uma forma narrativa muito habitual na obra de Steinbeck. Escritor que, ainda que laureado pelo Pulitzer e pelo Nobel, não possuía a profundidade e a inventividade literárias de seus contemporâneos, como William Faulkner e Ernest Hemingway.

A forma direta de Steinbeck ao contar histórias tinha um propósito. Ele se dizia interessado no homem comum. Um desejo que parece plasmar também a encenação, muito devotada a cativar o espectador e a envolvê-lo na reflexão proposta. A direção de Kiko Marques mantém o ritmo da narrativa e, mais importante, sabe construir um conjunto equilibrado de interpretações, ressaltado pela empatia da dupla protagonista

George (Ricardo Monastero) e Lennie (Ando Camargo) têm personalidades tão opostas quanto complementares. George é sagaz, prático e racional; Lennie, por sua vez, conta com a espontaneidade, a força e o carinho desmedido que endereça aos animais que lhe surgem pela frente: sejam ratos, sejam cachorros. Ambos os atores se saem bem nessa contraposição.

Camargo lança-se para além do que propõe o texto, temperando a ingenuidade do personagem com aberturas cômicas. A opção é arriscada, uma vez que abre espaço para que a temática principal se dilua. E o ator se deixa, de fato, seduzir pela sua capacidade de fazer rir a plateia. Mas sabe manter o risco sob controle e usa a adesão do público a favor da montagem. É tão risível quanto trágico o seu amor desmedido. Na ânsia de acariciar os bichinhos que quer acolher, mata-os.

Daniel Bianchini

Ando Camargo e Ricardo Monastero são os amigos Lennie e George

Como única figura feminina, Mae – mulher do filho do patrão – carrega forte simbolismo na trama. Surge como contraponto à bestialidade reinante, incompreendida em sua ânsia de encontrar com quem conversar e fazer laços. Diante das trocas de elenco que ocorreram em relação à temporada anterior, foi justamente a personagem quem sofreu a maior perda, causando algum prejuízo à montagem. Soa frágil e sem nuances a atuação de Erika Altimeyer quando comparada à Natália Rodrigues, a quem substituiu.

Além da dupla protagonista, o elenco se sobressai em duas atuações: Tom Nunes, no papel de Crook, e Roberto Borenstein, como o velho Candy. Por ser negro, Crook é afastado do convívio dos outros homens e dorme em um quarto separado do dormitório coletivo. Em sua conversa com Lennie, ele expõe a necessidade humana de companhia. “Um homem fica louco se ele não tem ninguém. Não faz diferença quem o cara é, desde que ele esteja com você”, diz. Sua função dramática é quase utilitária, mas a interpretação de Tom Nunes aprofunda a personagem, deixando ainda mais evidente a violência da discriminação. Nesse ambiente hostil, em que os homens brigam pela sobrevivência, essa é mais uma camada de agressão. O que pode ser mais brutal do que ser apartado de todos?

O velho Candy carrega também a sua solidão nesse ambiente em que só os fortes sobrevivem. Perdeu o movimento de um dos braços em um acidente, viu a única criatura com quem mantinha um vínculo – um velho cachorro – ser morto. Candy representa o lugar da esperança possível. Mesmo que tudo pareça predestinado ao fracasso, ele ainda consegue se unir a George e Lennie para acalentar o sonho de uma terra prometida. Imaginam que, se juntarem dinheiro e economizarem, conseguirão comprar uma pequena fazenda, criar bichos e ter plantações. Supõem que existe um lugar onde serão seus próprios senhores e decidirão os próprios destinos. Mas a realidade não tardará a vir acertar as contas com os sonhos desses homens brutos e crédulos.

.:. Visite o site da produção de Sobre ratos e homens

Serviço:

Sobre ratos e homens

Onde: Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, metrô Brigadeiro, tel. 11 2168-1777)

Quando: De 26 a 29/4; quinta a sábado, às 20h, e domingo, às 19h

Quanto: grátis, retirar ingresso uma hora antes (público preferencial, duas horas antes)

Duração: 110 minutos

Recomendação etária: 12 anos

Equipe de criação:

Direção artística: Kiko Marques

Texto: John Steinbeck

Tradução: Ricardo Monastero

Com: Ricardo Monastero, Ando Camargo, Erika Altimeyer, Tom Nunes, Cássio Inácio Bignardi, Roberto Borenstein, Pedro Paulo Eva e Daniel Kronenberg

Cenografia: Marcio Vinicius

Figurinos: Fabio Namatame

Trilha sonora: Martin Eikmeier

Iluminação: Guilherme Bonfanti

Visagismo: Raphael Cardoso

Maquiadora: Chloé Gaya

Diretor de palco: Sidney Felippe

Técnica de Som: Carol Andrade

Técnica de luz: Kuka Batista

Gestão de projeto e Sustentabilidade: Celso Monastero

Coordenadora administrativa: Sonia Odila

Assessoria jurídica: Francez e Alonso Advogados Associados

Direção de produção: Antonio Ranieri

Produção e realização: Dendileão Produções Artísticas

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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