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Crítica

Antunes, irmão de Lagarce

25.9.2018  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Matheus José Maria

O dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce morreu jovem (1957-1995), vítima da Aids. Só foi reconhecido como autor relevante em seu país depois da morte, o que já nos diz muito sobre a dificuldade do seu belo teatro, fora dos enquadramentos. Erudito, criou um teatro singular inspirado sobretudo em autores fora da ordem na cena moderna, como Beckett, com quem aprendeu tanto o valor da palavra, do verbo concentrado, como do silêncio, das frestas. E também o contraste trágico entre aquilo que está, que é, e o que não está presente, entre o que as coisas são e o que poderiam ter sido. Sua obra de volume considerável inclui peças como Music-hall, História do amor (últimos capítulos), já encenadas no Brasil, e esta Eu estava em minha casa e esperava que a chuva chegasse (na tradução de Maria Clara Ferrer), que o CPT do Sesc e Grupo de Teatro Macunaíma estreia neste momento sob direção de Antunes Filho.

Em Eu estava em minha casa e esperava que a chuva chegasse reaparecem os temas do regresso à casa e os conflitos familiares que demarcariam, entre outras peças, Apenas o fim do mundo e O país distante, o último texto. Em Apenas o fim do mundo há também um pai morto e um filho que regressa, e a discussão se dá em torno de uma possível recolocação do homem na família, da possibilidade de uma substituição e suas implicações. Há lá este homem que diz que vai morrer, e ninguém o ouve. Eu estava em minha casa… é certamente a extensão ou contra face desta peça. Aqui, são as mulheres de várias gerações que acolhem o rapaz e fazem em torno dele uma ladainha profana, desfiando falas, avaliando as dores da vã esperança, os danos da ausência.

Antunes Filho sabe, como Jean-Luc Lagarce, que a arte é construção, é artifício mesmo quando quer fazer retrato ao pé da letra da realidade. E que o que comove, mobiliza o interesse, não é necessariamente o retrato mimético do real, é a invenção capaz de gerar empatia. Sabe também que o lirismo, essa visita ao coração e ao pensamento das personagens, não é psicologia

No texto o desamparo de todos diante do princípio de realidade que se impõe violentamente com a chegada do homem doente é levado ao paroxismo. A expectativa alimentada por uma vida inteira de que aquela volta reinstaure uma ordem imaginada se dilui. Essa diluição ganha ossatura na forma dramatúrgica, em que tudo é concebido para borrar os contornos das identidades e circunstâncias. As personagens não têm nome. Na folha de apresentação lê-se: a Filha Mais Velha, a Filha Mais Nova, a Segunda Filha, a Mãe e a Mais Velha de Todas. As trajetórias pessoais também nos chegam em elipses. O filho, ponto de encontro das narrativas, é presença ausente. Presente na imaginação, no passado, mas sempre fora da cena, inclusive agora, quando está lá, à beira da morte, mas só pode ser visto através dos relatos das outras personagens, cujas versões a respeito dele são variáveis. Ele surge então como um retrato cubista ou uma colagem que comporta vários pontos de vista, assim como as situações, que levaram àquele estado de coisas e também têm seus fios interrompidos. O alinhavo é provisório e permite mais de uma combinação. É como dizia Godard quanto à experiência da subjetividade no mundo contemporâneo: esta é a condição mais honesta para dizer o que é a realidade porque a realidade talvez nunca tenha se mostrado a ninguém.

Matheus José Maria

As atrizes Fernanda Gonçalves (de branco), a Filha Mais Velha; Suzan Damasceno (ao lado), a Mãe; e Rafaela Cassol, a Mais Velha de Todas na peça do francês Jean-Luc Lagarce dirigida por Antunes Filho

Para Lagarce, pois, e daí sua bonita dificuldade, mais importante que a estrutura dramática seguida ao pé da letra é encontrar formas verbais, teatrais, que traduzam essa diluição do real, ou sua explosão em versões possíveis. E também essa assimilação da realidade ao plano da experiência íntima. Nele os diálogos são simulacros de ação, mas pouco movimentam em termos de andamento da história, como se faz em uma peça tradicional. Quanto a isso o trabalho do autor pode ser visto como uma síntese de recorrências da cena moderna, ou de procedimentos nela modelares que podem ser notados, por exemplo, em  Tchekhov (nos diálogos com surdos, nos solilóquios) ou Beckett e sua escolha pela ação em si, que não tem interesse em empurrar os fatos para a frente, mas em recortar e intensificar o momento mesmo no qual acontecem. É como aqui, nas mulheres que rodeiam esse homem que chega. Seus movimentos e dramaticidade estão internalizados. E nos vêm em volumosa retórica, em relatos que correm de alguma objetividade até a fala lírica e poética. A expressão íntima é mais contundente que os momentos efetivos de diálogo se o padrão for o da peça dramática tradicional. O que faz do enredo, do enredamento entre circunstâncias, algo sempre provisório, que se repõe em nova versão o tempo todo diante desta constelação de falas íntimas. O teatro torna-se lugar de confissão, não no sentido religioso, mas existencial. Espaço de jogo que favorece o grande esforço de entendimento sobre o estar no mundo. É a busca desse sentido mais essencial o que cruza de maneiras diferentes as mulheres mais velhas da peça, agora confinadas diante da frustração da expectativa (o rapaz voltou, mas voltou para morrer), e ainda as duas irmãs mais novas, que na encenação – talvez mais que no texto – aparecem como as portadoras da cifra de energia vital que vaza, que aqui e ali transcende à austeridade ilhada. As duas garotas promovem em certa medida a recusa da natureza-morta que no cenário enquadra as cabeças todas e que segue suspensa, como ícone da condição que rege a vida.

Encenação

Antunes Filho é irmão de Lagarce no teatro. Sabe, como aquele, que a arte é construção, é artifício mesmo quando quer fazer retrato ao pé da letra da realidade. E que o que comove, mobiliza o interesse, não é necessariamente o retrato mimético do real, é a invenção capaz de gerar empatia. Sabe também que o lirismo, essa visita ao coração e ao pensamento das personagens, não é psicologia. Não que o espetáculo seja pura estilização. Mas as situações nos surgem, nos termos abertos do autor, desenhadas com contornos firmes, de maneira que o fundo esteja à espera de olhar que os complete através da fruição.

Provavelmente, o ponto mais importante de encontro desta construtividade assumida como tal é, no espetáculo, o trabalho com o elenco. O rigoroso trabalho do diretor com a sua turma de atrizes valoriza antes de tudo a palavra e seus modos de expressão, fugindo ao naturalismo estrito. É uma beleza ouvir esse texto, feito por jovens atrizes, de uma maneira rigorosamente estudada sem que a anima se perca. É uma difícil tarefa, fazer daquelas falas algo material e mobilizador. Há então esta compensação no plano da cena ao mergulho na intimidade, na expressão dos sentimentos proposta pelo autor. A qualidade técnica na emissão das falas, junto às intensificações e a procura de sentidos possíveis para cada passagem, é uma artesania cumprida belamente. E indispensável. O elenco todo está muito bem equalizado sem que com isso escape as características interpretativas que parecem singulares de cada atriz. Sem demérito ao grupo, é ainda mais notável a figura de Suzan Damasceno interpretando a mãe. É, sem dúvida, uma das melhores atrizes de sua geração e soube fazer do método aprendido no CPT um caminho para a liberdade criativa. É atriz que compreendeu, de dentro do seu talento, que a técnica não é um fim em si mesmo. Fez da técnica o instrumento para outros trabalhos em que a interpretação não virou um clichê de si. Isso pode ser visto na ótima performance nesta montagem.

Matheus José Maria

Panorâmica da cenografia concebida por Simone Mina com tela natureza-morta suspensa sobre as cabeças: encenação oferece chão firme e compensa de modo próprio a abertura do texto, sem enquadrá-lo

O gosto por alguma estilização que se pode notar no espetáculo encontra em Lagarce generoso material. Assim como as personagens, a própria peça é uma presença construída sobre potentes, deliberadas ausências, fendas, espaços para fabulação. Por isso a representação, e nela o tratamento da palavra, foge ao mimetismo estreito para avançar nos terrenos próprios da linguagem. Assim, a encenação, embora autônoma, corre junto com o autor na busca por formas possíveis para alcançar as diversas camadas daquela história. Procura soluções no osso, que traduzam o essencial daquele mundo. A gestualidade e a marcação da cena, com cortes precisos, entradas e saídas bem indicadas, colaboram para um ordenamento que faz contraponto produtivo àquele plano aparentemente sem bordas de expressão do pensamento. Antunes intui que o sentido, aqui, mais que em geral, não está dissociado da realidade própria, singular, da linguagem com a qual a peça se conta. Daí o diálogo entre autor e diretor, no qual a encenação oferece chão firme e compensa de modo próprio a abertura do texto, sem enquadrá-lo.

Poderíamos daqui partir para uma leitura de significados possíveis, a partir da montagem, além do plano da fábula. Mas talvez a melhor indicação para o caso é a de que o leitor, a leitora, vá e veja, coloque o seu olhar em movimento a partir dali. O cenário de cadeiras em espera que está lá talvez seja, entre outras coisas, um chamado para isso. O espetáculo é um “lugar-lugares”, um “tempo-tempos” e a condição de existência do homem contemporâneo, em estado de simples espera ou de ativa, participativa espera, é algo que está lá para ser lido da forma que cada um puder.

Serviço:

Eu estava em minha casa e esperava que a chuva chegasse

Onde: Sesc Anchieta (Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3234-3000)

Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo e feriado, às 18h. Até 16/12.

Quanto: R$ 12 a R$ 40

Duração: 70 minutos

Classificação indicativa: 14 anos

A espera está acabando…

Publicado por Sesc Consolação em Segunda, 17 de setembro de 2018

Equipe de criação:

Texto: Jean-Luc Lagarce

Tradução: Maria Clara Ferrer

Direção: Antunes Filho

Com: Daniela Fernandes (A Mais Nova), Fernanda Gonçalves (A Filha Mais Velha), Rafaela Cassol (A Mais Velha de Todas), Suzan Damasceno (A Mãe) e Viviane Monteiro (A Segunda)

Assistente de direção: Luana Frez

Cenografia e figurinos: Simone Mina

Assistente de cenografia: Vinícius Cardoso

Assistente de figurinos: Karina Sato e Zineu Simionatto

Costureira: Helenita Procópio

Visagista: Roger Ferrari

Construção cenotécnica: Mario André Caveiro, Eduardo Oliveira, Severino                 Domingos Gomes, Rogério José Dias e Dogival da Silva

Pintura de arte: Karina Sato

Iluminação: Edson FM

Operação de luz e som: Alexandre Ferreira

Preparação de corpo e voz: Antunes Filho

Produção executiva: Emerson Danesi

Programa: Ricardo Fernandes e Erico Peretta

Pesquisa: Phabulo Mendes e Thiago Brito

Fotos: Inês Correa

Secretaria do CPT: Flavia Dziersk Lima

Direção-geral: Antunes Filho

Agradecimentos: Raul Teixeira e Fancieli Fischer

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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