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Crítica

‘Insones’: subjetividade sob lente de aumento

2.9.2018  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Erica Modesto

Colhida pulsante no tempo presente, a matéria de que é feita a peça Insones, com dramaturgia de Victor Nóvoa e direção de Kiko Marques, é apresentada ao espectador quase que ainda colada ao cotidiano mais prosaico e, ao mesmo tempo, tornada profundamente estranha. Não há fábula ou narrativa a ser seguida, apenas uma situação compartilhada: a reunião de quatro amigos, dois homens e duas mulheres, no curto período que antecede a passagem de ano. Juntos, eles fracassam fragorosamente a cada tentativa de instaurar a atmosfera de celebração, alegria e troca afetiva pedida pela ocasião.

No centro da cena um sofá de grandes proporções acomoda as quatro figuras colocando-as voltadas para o olhar do espectador. Sofá é objeto que remete à casa, ao diálogo íntimo e ao encontro familiar, e mesmo se instalado em ambiente empresarial convida à conversa amistosa em momento de hierarquias relaxadas. Com dimensão reconfigurada e concentrando toda a ação da peça, torna-se cenografia – não decoração – e contribui para instaurar a atmosfera insólita de laboratório de observação de humanos que perpassa toda a montagem.

Em ‘Insones’, importa perceber que numa cena na qual a crítica não está explicitada nas palavras e cabe ao espectador realizá-la, cresce a importância do investimento nas modulações da voz e corpo para que a expressão resulte clara, mas sem didatismo. Afinal, o teatro torna-se mais interessante quando assume haver sempre algo de inapreensível no comportamento humano

As conversas saltam de um assunto a outro sem que qualquer argumento ganhe verticalidade, mas não soam aleatórias, ao contrário disso, a dramaturgia é elaborada para demonstrar criticamente a atenção errática característica dos tempos atuais. É a subjetividade contemporânea que está em foco em Insones, mentes invadidas por milhares de estímulos absorvidos sem filtros numa sociedade na qual já não há mais fronteira entre o público e o privado. A agitação contínua impossibilita o silêncio interno e a abertura de espaços íntimos, elementos fundamentais para o processo de individuação e a gestação dos afetos.

Os diálogos, e muitos deles apenas solilóquios, uma vez que a escuta é pouca e dispersa, revelam uma gente excessivamente ocupada durante todo o ano. Pessoas que mesmo reunidas para celebrar seguem com a atenção dividida entre smartphones, a retrospectiva anual na TV e a companhia dos demais. Baldes de gelo, taças e figurinos indicam um ambiente de festa, assim como a excitação e ansiedade características desses ritos de passagem. No entanto, parece que sempre falta algo para que uma alegria verdadeira tome conta de corpos e mentes. É a dor de cabeça que atrapalha ou a iluminação inadequada? Cada um e todos perseguem em vão algo que se mantém enigmático para si próprios, como se não pudessem diagnosticar o mal que os aflige.

Erica Modesto

Ironia crítica entre o bizarro e o cotidiano em ‘Insones’, direção de Kiko Marques e dramaturgia de Victor Nóvoa

Se a fabulação é um dos meios de criar distanciamento crítico, outro é acentuar determinados traços no limite de sua deformação, como fazem os caricaturistas. Essa última é a linha escolhida pelos criadores dessa montagem que coloca o comportamento humano sob lente de aumento, por exemplo, quando um dos personagens diz: “Faz 365 dias que não durmo” – em tom de orgulho, mesmo se visivelmente exausto. Atitude que provocou risos no espectador nas duas sessões acompanhadas, talvez devido à dupla identificação: do ridículo da exaltação do que deveria ser problema e no reconhecimento na própria carne do sono cada vez mais roubado pela lida cotidiana.

As reações do público e a extensão das temporadas em diferentes teatros sugerem que a ironia crítica proposta pela encenação vem sendo captada, o que se deve em parte ao delicado equilíbrio alcançado pelo elenco entre o bizarro e o cotidiano. Paulo Arcuri, o autor do já mencionado comentário sobre estar há um ano sem dormir; Vinicius Meloni, constantemente com dor de cabeça; Fernanda Raquel, figura obcecada pela existências de áreas obscuras na sala; e Helena Cardoso, sempre tentando unir os demais em torno do brinde detonador da alegria formam o quarteto de intérpretes que consegue tornar reconhecíveis aquelas figuras sem retirar delas a irrealidade poética própria da matéria da arte.

No amálgama constituído por dramaturgia, direção e atuações não é fácil distinguir autorias, e talvez nem relevante. Importa perceber que numa cena na qual a crítica não está explicitada nas palavras e cabe ao espectador realizá-la, cresce a importância do investimento nas modulações da voz e corpo para que a expressão resulte clara, mas sem didatismo. Afinal, o teatro torna-se mais interessante quando assume haver sempre algo de inapreensível no comportamento humano. Juntos, os procedimentos criativos de Insones, do texto à trilha, convergem para configurar uma certa catatonia necessária para saltar da violência mais brutal à fruição de um vídeo sobre bichinhos fofos. E, o mais problemático, sem se dar conta da gravidade desse salto entre extremos.

Erica Modesto

Em primeiro plano, Helena Cardoso e Vinicius Meloni: as quatro figuras fracassam fragorosamente a cada tentativa de instaurar a atmosfera de celebração, alegria e troca afetiva na passagem de ano

No programa da peça há menção ao livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary (Cosac Naify), como uma das fontes de inspiração. O autor parte de pesquisas desenvolvidas no âmbito do exército estadunidense sobre pássaros migratórios que passam longos períodos sem dormir e em pleno vigor físico para argumentar que, depois do soldado sem sono – o interesse central do estudo realizado pelo exército – virá o trabalhador sem sono. Afinal, argumenta Crary com alto grau de ironia, “a imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo”.

Será que um dia a ciência conseguirá acabar com a necessidade de dormir? O estudo de Crary demonstra que a pergunta não é tola. Até porque, como aponta o filósofo polonês Zygmunt Bauman, é atributo de todo organismo forte transformar em desejo do outro o que ele próprio necessita para se desenvolver. Assim, existisse já a possibilidade de não ter sono, muito provavelmente se tornaria objeto de desejo de muitos trabalhadores que projetariam nessa ausência um meio para aprimorar desempenho e produção.

Argumento similar pode ser encontrado no livro Sociedade do cansaço (Editora Vozes), do coreano Byung-Chul Han, outra fonte de inspiração dos criadores de Insones. De acordo com Han, o controle exercido sobre as subjetividades contemporâneas se dá pela via positiva do poder e não pela opressão do dever. O sujeito do desempenho da sociedade pós-moderna é movido pela ideia do “yes, we can” e não apenas explora a si mesmo, como também se culpa pelo fracasso, tornando-se depressivo.

Insones não é a tradução cênica desses estudos. Mas talvez toda arte seja também fruto da necessidade de investigação lúdica do modo como vive e se organiza o mundo e de como se dá a partilha dos saberes. Neste início de século XXI, no entanto, não é incomum a indagação sobre a potência do teatro para interferir na sensibilidade de homens e mulheres atingidos pela avalanche midiática. E sempre é possível dizer que o teatro é em si mesmo um ato de resistência, uma vez que só pode acontecer diante de pessoas desconectadas do mundo virtual, juntas em espaço e tempo suspensos da lida cotidiana, gente descolada da produção e do consumo. Um ato de profanação do capitalismo.

Serviço:

Onde: Teatro de Contêiner Mungunzá (Rua dos Gusmões, 43, Santa Ifigênia, São Paulo, tel. 11 97632-7852)

Quando: Sexta, sábado, domingo e segunda, às 20h. Não haverá sessão dia 2/9. Até 3/9

Quanto: Grátis

Duração: 60 minutos

Classificação indicativa: 14 anos

Equipe de criação:

Concepção: Fernanda Raquel, Helena Cardoso e Victor Nóvoa

Direção: Kiko Marques

Dramaturgia: Victor Nóvoa

Com: Fernanda Raquel, Helena Cardoso, Paulo Arcuri e Vinicius Meloni

Atriz substituta: Fani Feldman

Assistência de direção: Mateus Menezes

Cenografia: Eliseu Weide

Criação de luz: Marisa Bentivegna

Figurinos: Ozenir Ancelmo e Ana T.

Trilha sonora original: Carlos Zimbher

Produção musical: Érico Theobaldo

Autoria das músicas: Carlos Zimbher e Érico Theobaldo

Direção de produção: Catarina Milani

Artista assistente: Elisa Giannella

Operação de luz: Henrique Andrade

Fotos, vídeos e mídias sociais: Pasárgada Comunicação

Design gráfico: Vertente Design

Transporte: Mandi

Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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