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Encontro com Espectadores

Os Satyros e as lutas identitárias

14.10.2018  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Ophelia/IC

Prestes a completar 30 anos, em 2019, a Companhia de Teatro Os Satyros centra os últimos trabalhos na pesquisa formal e temática acerca das lutas identitárias. As condições de refugiados, transexuais e travestis, por exemplo, entre demais grupos minorizados, estão presentes em espetáculos como Cabaret transperipatético e O incrível mundo dos baldios, este catalisador do 20º Encontro com o Espectador, realizado em 27 de maio no Itaú Cultural.

Leia a seguir transcrição dos relatos do ator Ivam Cabral e do diretor Rodolfo García Vázquez, cofundadores da companhia paulistana, sob mediação de Maria Eugênia de Menezes e breve introdução de Beth Néspoli, ambas jornalistas e críticas.

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Beth Néspoli
O teatro é essa arte de corpos e presenças, arte em tempo real. Entendemos que é muito importante essa conversa, chamar o espectador a uma reflexão conjunta. O critério principal da equipe de editores do site é escolher, a cada ocasião, um espetáculo que projete uma boa discussão. Menos do que empenho ou desempenho, que a obra nos mova em outros sentidos. Com a palavra, a mediadora Maria Eugênia.

Maria Eugênia de Menezes
Vou fazer uma apresentação bem rápida porque é um grupo que a gente conhece há muito tempo. A Companhia de Teatro Os Satyros surgiu em 1989, em São Paulo, no bairro central da Bela Vista. O primeiro espetáculo de projeção foi Sades ou Noites com os professores imorais. Depois disso eles passaram de São Paulo para Curitiba, em seguida para Lisboa, até voltarem a São Paulo. Fizeram excursões e apresentações pelo mundo todo. Um ponto marcante nessa trajetória é a instalação de vocês na Praça Roosevelt, em dezembro de 2000.

O Ivam e o Rodolfo são criadores-fundadores da companhia e essa instalação vem num momento em que a praça estava numa situação difícil, muito mais difícil do que hoje, e uma das coisas que chama atenção é justamente o fato de como vocês acabaram não só revitalizando o local pela presença ali e por agregar novos grupos que acabaram indo para lá também, mas pelo fato de vocês fazerem da praça tema e objeto das investigações e das pesquisas.

Em tempos em que as lutas identitárias são muito fortes, como é que a gente pode encontrar um espaço universal? E o termo baldio no título do espetáculo vem nesse sentido do espaço para todos e que seja abrangente, que todo mundo possa estar, e que a gente consiga entender esse universal a partir dos lugares de fala das individualidades (Rodolfo García Vázquez)

A vida na Praça Roosevelt (2005) é um ponto marcante na trajetória e eu gostaria de começar um pouco por aí. Em O incrível mundo dos baldios vocês dão espaço de visibilidade e representatividade a grupos que estão cada vez mais tentando ter espaço e ter voz, mas isso não é um ponto novo na trajetória, vocês sempre lidaram com esses grupos, com essas pessoas que normalmente não têm direito a voz. Queria que vocês começassem inserindo Baldios nesse contexto.

Ivam Cabral
Eu me lembro, Maria Eugênia, talvez em 1990, 1991, uma conversa com o Rodolfo no Teatro Bela Vista, quando a gente se formou lá atrás. Dele falando que o Satyros talvez seja o primeiro grupo que não venha da classe média, média alta, no teatro brasileiro, porque até aquele momento o teatro era feito por grupos que vinham da classe média. Não existia teatro de comunidade [essa afirmação é relativizada mais adiante] e a gente já começou com a periferia. O espetáculo que nos projetou, como você disse, foi Sades ou Noites com os professores imorais, mas o trabalho seguinte, Saló, Salomé [1991], compreendia elenco de 25 atores e a maioria deles vinha da periferia da cidade, gente muito pobre.

Lembro que quando a gente trabalhou lá naquele período, o ser comunitário, o estar nesse lugar, era muito ruim pra gente. Éramos vistos como um grupo meio sujo, meio esquisito, pobre demais. Curiosamente, quase 30 anos depois, a gente vê o inverso: há sentido no ato comunitário, no encontro de pessoas que vêm de muitos lugares e acaba significando alguma coisa para o fazer teatral e para o movimento teatral. Isso está no DNA do grupo. Desde o primeiro momento em que pensamos em criar Os Satyros, ele foi projetado para ser o que é hoje. A gente nunca usou, por exemplo, a estratégia de trabalhar na Praça Roosevelt, num teatro de 50 lugares, para conquistar uma sala maior, de 500 lugares e com poltronas de veludo.

O Espaço dos Satyros foi inaugurado sem ar-condicionado instalado. Na época, o equipamento custava de R$ 2 mil a R$ 3 mil. Até mais ou menos 2008, não me lembro exatamente quando chegou o ar, trabalhamos sem ar-condicionado, porque queríamos, e até hoje o espaço é propositalmente desconfortável. Nunca será colocada uma cadeira confortável, e isso é proposital. Por exemplo, se alguém quiser entrar no palco d’Os Satyros, vindo a pé da Praça Roosevelt, não vai encontrar nenhuma porta. Isso foi estratégico, e é assim até hoje. Temos uns tecidos, umas cortinas que nos separam da praça. É um convite que a gente faz para as pessoas conhecerem, para adentrarem nosso lugar de trabalho.

Então são muitas coisas que a gente foi levando para o nosso trabalho, das experiências do grupo e de nossas trajetórias pessoais. Não usamos o teatro para conseguir alguma coisa. Se você olhar nosso percurso vai perceber isso. Na verdade, chegar à Praça Roosevelt fez com que a gente finalmente entendesse o que estava fazendo.

Andre Stefano

‘O incrível mundo dos baldios’ abarca no elenco artistas refugiados,
transgêneros e egressos do sistema prisional

Transex, por exemplo, é um espetáculo de 2003 e ele já trazia toda a questão de gênero, as discussões para as quais ainda hoje não encontramos respostas. Elas surgiram naquele período para falar sobre o que encontrávamos na Praça Roosevelt. Então, seria absolutamente natural e normal no nosso trabalho que em O incrível mundo dos baldios nos encontrássemos [com esse mesmo perfil de pessoas cujas histórias realimentam a nossa]. Tem pessoas que vieram do sistema prisional de São Paulo. Um ator que veio da Fundação Casa era menor infrator e nos conhecemos quando ele tinha 14 anos. Agora ele tem 20. Para a gente parece que foi ontem, mas para ele foi e é uma vida. Hoje ele está cursando direito e trabalha profissionalmente com a gente. Houve todo um encaminhamento. Sei que ele estuda direito por causa da gente, de nossa insistência em repetir que ele precisa estudar. Um menino que com 14 anos andava armado. O Roberto Francisco é de um trabalho que a gente fez com o Palacete dos Artistas [prédio institucional da Prefeitura de São Paulo que acolhe aposentados] e se aproximou dos artistas idosos, uma comunidade incrível, talentosa e absolutamente potente no auge de sua possibilidade criativa e impedida de trabalhar porque não há mercado.

São trabalhos voluntários, que não estão no escopo de projetos, de fomentos. A gente sempre soube separar essas coisas, nunca se utilizou ou usou um trabalho como contrapartida. Vocês próprios participam de comissões e podem atestar isso, porque, de verdade, tem que ser voluntário, é gratuito, e é necessário. Isso está no nosso DNA. A cidade é de nossa responsabilidade e acho que a grande revolução d’Os Satyros foi pôr uma mesinha na calçada, convidar as pessoas que estavam passando a sentar e conversar. A gente dialogou e dialoga com todo mundo, do morador de rua à prostituta, das transexuais aos donos de cachorros, aos skatistas. A gente foi tentando essa porosidade para entender em que mundo vivemos.

Rodolfo García Vázquez
Em primeiro lugar, eu queria agradecer demais o convite. Eu não sei se é talvez pela dinâmica da Praça Roosevelt, os teatros, a SP Escola, todas as atividades que desenvolvemos, às vezes a gente fica um pouco afastado ou meio isolado do movimento teatral como um todo. Fica muito mergulhado naquelas questões e em tudo o que acontece. Somos consumidos. Então é maravilhoso a gente ter a oportunidade de poder conversar, de sair da Praça Roosevelt, chegar aqui na Avenida Paulista, por exemplo. Para mim é uma aventura chegar à Paulista, lembra a minha adolescência. Eu era um adolescente periférico, lá do Carandiru [zona norte], e vir para a Avenida Paulista era um acontecimento em si, um evento, e virou o mesmo caso agora. Hoje foi a primeira vez que eu andei na Paulista [onde está localizado o Itaú Cultural] desde que ela foi aberta aos domingos [outubro de 2015]. Enfim, agradeço demais o convite.

Como o Ivam falou, acho que a gente sempre foi meio outsider. É engraçado a gente ter construído uma história no teatro por uma via meio esquisita, montando o Marquês de Sade, que as pessoas não entendiam muito bem. No começo trabalhamos muito com a questão do pessoal da periferia. Não tinha ninguém da ECA, ninguém da EAD n’Os Satyros [Escola de Comunicações e Artes, Escola de Arte Dramática, respectivamente]. Naquele momento, quando a gente começou a nossa carreira, todos os grupos tinham integrantes saídos da academia ou de grupos tradicionais, ao contrário de nosso perfil.

O que eu acho que aconteceu muito fortemente com a gente, principalmente nos últimos anos, é que esse nosso lado outsider foi ficando mais claro para nós também. A gente sai do eixo, tira as coisas do eixo e tira o teatro do eixo. Então o que aconteceu, por exemplo, em A vida na Praça Roosevelt, texto de uma alemã [Dea Loher, dramaturga do Thalia Theatre], ou em Transex, era o testemunho do que vivíamos na praça naquele momento e que viria a ser chamado de teatro documental dez anos depois. Era o que a gente estava vivendo ali naquele momento por mais fantasioso que parecesse. Aliás, a remontagem agora de Transex está trazendo isso de volta e, nossa, a gente vivia essas coisas, que loucura. É um testemunho daquela época e acho que vocês acompanharam muito de perto aquele momento de chegada, ninguém sabia muito bem o que era Os Satyros e acho que nem a gente.

E o que aconteceu é que nos últimos três anos houve a radicalização de uma vertente do nosso trabalho que é entender o que isso significa em termos de ativismo político, em termos de ação política. É tirar o teatro de alguns para oferecer para muitos e permitir com que esses muitos, que normalmente não estão nos palcos nem nas plateias, consigam se expressar. A gente montou um espetáculo com refugiados haitianos, em que o elenco era todo composto por pessoas nessa condição e nenhum deles com experiência teatral [Haiti somos nós, 2016]; vários espetáculos com adolescentes da periferia, a maioria negra e vários deles se profissionalizaram e estão hoje trabalhando. Um deles está em O incrível mundo dos baldios. Fizemos um espetáculo com o pessoal do Palacete dos Artistas [Cabaret dos artistas, 2017], que resgata muita gente que fazia teatro e hoje não estão nos palcos, não sei bem o porquê. O teatro de grupo traz essas questões também: que grupo é esse? Quais grupos que têm direito de estar num palco e quem eles representam? E tem o Cabaret transperipatético que a gente acabou de estrear e é um elenco exclusivamente transexual.

Ophelia/IC

A jornalista Maria Eugênia de Menezes e o diretor Rodolfo García Vázquez, cofundador da Companhia de Teatro Os Satyros em 1989

Além disso, tem toda a caminhada da trilogia Pessoas perfeitas, Pessoas sublimes e Pessoas brutas que é uma pesquisa de dramaturgia que, principalmente eu e Ivam, com os atores, temos desenvolvido. Em O incrível mundo dos baldios eu acho que ele vai meio que tentar encontrar esse lugar: uma questão que a gente se coloca em tempos em que as lutas identitárias estão muito fortes.

Então eu faço teatro negro, e não tem branco no elenco; faço teatro trans, e não tem nenhum cisgênero [percepção de identidade em que o indivíduo, por suas experiências de vida, aceita como verdadeiro o sexo que lhe foi atribuído ao nascer]; faço teatro da terceira idade, não tem nenhum adolescente no elenco. Em tempos em que as lutas identitárias são muito fortes, como é que a gente pode encontrar um espaço universal? E o termo baldio vem nesse sentido, da gente se entender, nós Satyros, como um espaço para todos e que seja abrangente, que todo mundo possa estar, e que a gente consiga entender esse universal a partir dos lugares de fala das individualidades. Então, o que o negro pensa, o que o idoso pensa, o que o refugiado palestino pensa, tudo isso, todos esses lugares encontram espaço n’Os Satyros para se manifestar. Creio que Baldios é a resposta estética, teatral, que a gente dá para essa questão que nos colocamos e que eu acho que é o grande desafio da sociedade, não só brasileira, mas ocidental, que é onde nós vamos nos encontrar e em que ponto nós nos reconhecemos como humanos, todos nós, pensando em lutas identitárias e em questões pessoais.

Maria Eugênia
E, nesse sentido, O incrível mundo dos baldios parece lidar com questões que estão no universo de vocês há muito tempo, mas é como se tivesse uma esperança, um tom mais otimista. Essa questão do milagre surge como uma esperança de comunhão dessas vozes todas?

Ivam
Eu acho que sim. É um espetáculo muito triste, mas muito esperançoso porque a gente evitou psicologismo. Por exemplo, evitamos responder àquelas histórias ou concluir que não eram importantes para a gente. Acho que o importante era deixar que você, espectador, formulasse o seu final e ele pode ser um final muito incrível e não só trágico, como num primeiro momento possa se indicar.

Mas acho também que Baldios vem num momento nosso, talvez seja o espetáculo mais confessional d’Os Satyros. A maioria desse elenco trabalha junto há muito tempo, se conhece muito. É um espetáculo que dá para ser montado com seis atores, não precisa de 14 artistas, mas tudo ali foi absolutamente articulado, pensado, foi um processo muito legal. A gente vinha de muitas mortes no grupo, em famílias. Passamos por um momento financeiro muito difícil, a gente quase morreu várias vezes, nós em termos de grupo, nós em termos de estrutura. E a gente queria fazer um espetáculo que reforçasse isso: o milagre de estar vivo todo dia, o milagre de continuar.

Os Satyros vão fazer 30 anos no ano que vem. Quando você está se aproximando disso, o milagre de estar vivo enquanto companhia, aos 30 anos de carreira, então acho que sim, Maria Eugênia. E além de tudo isso que é óbvio na peça, a gente tem uma muçulmana e uma judia no elenco, e a gente nem explora essa questão assim como também não explora que tem gente no elenco que mora no Jardim Europa e outro que mora no Jaçanã [zona norte], numa comunidade. Então esses lugares, essas fricções, elas te dão esperança sim. É possível viver em comunidade, é possível viver e respeitar as diferenças e as singularidades de cada um, e tudo isso é muito diferente: diferenças e singularidades.

Foi um processo muito longo, a gente começou por volta de agosto [de 2017]. Partimos de uma ideia e quando voltamos do recesso de final de ano, refizemos tudo que havíamos falado que faríamos. Modificamos a partir de várias questões, mas tudo isso só foi possível por causa da cumplicidade desse grupo que trabalha junto há muito tempo. E por causa da infindável possibilidade que a gente tem de acreditar sempre que esse novo trabalho, que esse novo ano – e por isso o ano-novo entrou na peça –, o quanto a gente espera por essa nova chance para poder continuar e poder triunfar sobre todas as dificuldades que encontrar na vida.

Rodolfo
É interessante, por exemplo, o caso do Roberto. Ele é um ator bastante experiente, fez o Cabaret dos artistas e trabalhou na montagem de Victor García para O balcão [1969], de Jean Genet, produzida por Ruth Escobar, e ele dizia que não estava entendendo o que estava acontecendo. A gente fica muito em trabalho de pesquisa, o texto só chega no último momento, último mesmo, e então parece que a gente fica delirando. E era engraçado ver a insegurança do Roberto em saber como ia acabar e a gente também não sabia como ia acabar, mas confiava que alguma coisa ia sair porque acho que tem uma ligação muito vital nossa com o trabalho, de todos nós, e isso vai se transformar na dramaturgia. Quando chegou o texto, tudo ficou muito claro, mas só fica claro quando você finaliza esse processo de escrita. Daí vem a cena. Então tudo ficou mais claro e simples para se fazer depois que o texto chegou, mas o processo em si foi cheio de descoberta porque tinha tantas realidades diferentes juntas e ainda tem e elas todas estão no palco. São corpos, e cada corpo tem uma biografia específica. E essas biografias são importantes para o espetáculo, por isso que a gente não trabalha com seis atores, porque quem faz a refugiada palestina é uma refugiada palestina, quem faz o idoso é um idoso, quem faz o mano da periferia é o mano da periferia, tudo isso muda completamente o sentido do trabalho.

Andre Stefano

Atuante d’Os Satyros em ‘Pink star’, que reconstitui trajetória e tenta desvendar morte de pessoa humana totalmente livre dos clichês do binarismo homem/mulher

Maria Eugênia
Já que você entrou na dramaturgia, gostaria que falasse um pouco mais sobre ela e sobre a função do narrador, se ele já estava presente desde os ensaios ou se ele surge depois, esse peregrino. Qual a função dele no espetáculo?

Ivam
A gente descobriu uma forma bastante particular de trabalho, eu e Rodolfo. Eu sou um contador de histórias, o Rodolfo é um organizador dessas histórias, então quando a gente começar a pensar no espetáculo, a contar as histórias, todas aquelas histórias já vieram contadas em prosa. A gente já tem mais ou menos articulado como vai fazer. O processo foi parecido em Pessoas brutas, perfeitas e sublimes, só que nesses outros três textos a gente trabalha com um roteiro caracol, histórias que vão se encontrando e elas todas chegam a determinado lugar.

Em Baldio, a gente tinha certeza que não faria isso, não queria que essas histórias chegassem num lugar. Poderia, se quisesse, juntar essas cinco histórias e todas elas fariam parte de um mesmo núcleo. Mas decidimos não juntar essas histórias até para não repetir o modelo da trilogia das Pessoas. Então o peregrino já surge para ser esse cara que vai amarrar essas histórias.

Dentro do processo, todo mundo tem uma personagem, participa de um núcleo e vai improvisando. Muitas das cenas que vocês veem foram improvisadas. O Roberto vai estar num asilo, a Júlia vai fazer uma voluntária, então isso tudo está desenhado antes quando eles chegam para fazer, mas não tinha, por exemplo, que seria um palhaço, isso tudo foi sendo descoberto durante o processo. E muitas das provocações do Rodolfo era sugerir improvisar uma cena a partir do Natal, dentro daquela circunstância, e muitas dessas coisas a gente aproveita.

Quando o texto surge um mês antes da estreia, os artistas já têm criado essas personagens, sabem falar, então o texto é um apêndice, na verdade. Quando ele surge é muito fácil decorar, muito fácil se apropriar desse texto porque nós ficamos durante meses trabalhando as personagens. Então decorar, nesse caso, era a coisa menos importante.

A gente teve um final de ano muito triste. Eu perdi meu irmão [Dimi Cabral, 1959-2017], ele foi produtor d’Os Satyros durante muitos anos, uma pessoa muito importante nas nossas vidas. Tínhamos pouca diferença de idade. E foi uma morte estúpida porque no início ano ele descobre um tumor no cérebro, começa a esquecer. No dia 1º de janeiro de 2017 a gente o levou ao médico e veio o diagnóstico. Ele passou o ano todo lutando contra isso, era superfeliz e até o último momento morreu tendo certeza de que ia viver e que sairia dessa sem nenhum problema. Ele morreu em novembro e no meio do processo dos Baldios. E se isso não tivesse acontecido, o espetáculo seria outra coisa. Eu e Rodolfo tínhamos programado uma viagem para a Patagônia, no sul da Argentina, inclusive uma das cenas se passa nesse lugar. Fomos e era final de ano. A viagem fez com que a gente estruturasse o ano-novo na peça, mas fazia sentido com o que tinha acontecido com o meu irmão. Quando a gente volta, traz estruturado o texto. E quando os atores retomam o trabalho, acho que em 10 de janeiro [de 2018], já encontram uma primeira versão. Mas essa experiência é muito importante, toda essa história fez parte de um processo de trabalho, então acabou sendo incorporada.

Rodolfo
Em relação à pergunta, Maria Eugênica, o peregrino tem a ver com o milagre, é porque ele paga as promessas das pessoas. De certa forma, as personagens todas estão vivenciando a questão do milagre, cada uma de uma forma. E o peregrino é o cara que vai pagar esses milagres para um anjo que está caído e não entende esse mundo, um anjo que chega no planeta Terra e não consegue entender como que as pessoas vivem de uma forma tão sem sentido, sem dar nexo a suas vidas. Então o contato do peregrino faz essa ligação entre o anjo que é esse ser que vai comunicar a uma entidade superior a esperança de um milagre. Ele é o pagador das promessas. E quando a gente resolveu usar a questão do ano-novo é porque, apesar de todas as diferenças, cada um vivendo em um mundo. Uma cena na quebrada, outra em Ushuaia [cidade argentina], outra numa casa de repouso, e assim por diante. Apesar de todas as diferenças, à meia-noite ele concentram a esperança em alguma coisa por ser o próximo ano. E essas pessoas não vão conviver, muitas vezes não têm nada a ver uma com a outra, como na cena da área de fumantes. A lavadora de pratos palestina não tem nada a ver com aquele jovem que não tem memória e que está naquele lugar, mas tem um jogo entre eles. Ela quer esquecer o seu passado e espera por esse milagre de deletar tudo aquilo que viveu e poder continuar a viver. Ele, por sua vez, gostaria de ter a memória que não tem mais. Todas as personagens estão à espera desses milagres que o peregrino de uma certa forma vai unir nessa busca.

Ivam
E essas histórias são todas conhecidas nossas. Ou a gente ouviu falar ou conheceu uma pessoa que passou por uma delas. Por exemplo, a história da Márcia, que está no ponto de ônibus com os irmãos adventistas, ela eu conheci no Twitter. Tem frases dessa personagem que foram chupadas do Twitter, quando ela diz: “Meu sonho é ganhar dois salários mínimos. Vivo muito bem com R$1.800,00”. Isso foi um tuíte de uma pessoa que a gente conheceu. O lugar onde ela vai fazer show, na Chimbica, isso aconteceu na periferia do Rio de Janeiro. A gente conhece essas pessoas, então, obviamente que são muitas histórias, de muitas pessoas, mas de pessoas que passaram pela Praça Roosevelt e nos deixaram testemunhos. Isso a gente tem feito desde Pessoas perfeitas. E o nosso próximo espetáculo será em torno de um morador da Praça Roosevelt chamado Mississipi, que tem esse nome por causa de uma música dos anos 1970 de mesmo nome. Somos colecionadores de histórias, então elas vão surgindo a partir de todas essas pessoas que a gente conhece.

Andre Stefano

Uma das passagens do espetáculo ‘O incrível mundo dos baldios’, desenvolvido por sete meses a partir das experiências biográficas sob dramaturgia de Cabral e Vázquez

Rodolfo
O processo, por exemplo, de Cabaret transperipatético é muito parecido com o processo que acontece em todos os espetáculos nossos. A gente vai contando histórias, é como se fosse tirando capas de invisibilidade que são jogadas em cima de nossas próprias vidas, porque acho que isso é uma das funções do teatro. A vida é tão complexa, tão rica, e os clichês, os medos e os silêncios vão cobrindo-a. Cabe ao teatro meio que desenterrar essa força e trazer suas possibilidades para o palco.

O processo do Cabaret transperipatético, por exemplo, foi muito parecido nesse sentido com Baldios ou com todas as Pessoas. Teve um dia que a gente fez só um encontro em que os palestinos falavam qual era a experiência deles no Brasil. Daí quando você ouve os relatos, fica sabendo de uma mulher que chega com seu marido e um bebê no colo, sem saber aonde ir, num lugar em que ela nunca tinha ouvido falar. A gente ficou dias e dias ouvindo essas histórias que acabaram sendo transformadas em cena. Aquilo de fala é tudo muito próximo dela. Só que em Baldios há uma ficcionalização que no Cabaret transperipatético é menor. O incrível mundo dos baldios, pela própria característica que a gente queria empreender, a gente ficcionalizou grande parte, mas a outra parte era muito concreta, era muito real. E no Cabaret transperipatético, as histórias já se mostram com sua força no palco.

Ivam
Só para finalizar, e como exemplo, a gente tinha as personagens do Roberto e da Julia [Bobrow] no contexto de uma casa de repouso, um idoso que recebe a visita de uma voluntária. O Roberto, que mora no Palacete dos Artistas, durante o processo, perdeu um amigo que era palhaço, que morava no mesmo local e só descobriram o corpo dele depois de muito tempo. Ele morava sozinho, não tinha ninguém. E numa outra discussão que a gente teve eu cheguei a afirmar que a personagem do Roberto não tinha sido inspirada exatamente nesse episódio, e não foi mesmo, mas ao mesmo tempo foi, porque fica no nosso inconsciente de algum jeito. Mas de forma racional não foi, a gente não pegou aquela história e disse para ele ser palhaço por causa daquele palhaço. Eu nem me lembro em que momento surgiu o palhaço no processo, mas as coisas acabam se confundindo a partir de algum momento, quando essa pesquisa é muito intensa e muito forte. De qualquer forma, tendo a ver ou não com a história que aconteceu no Palacete dos Artistas com o Roberto, a gente trouxe um palhaço e uma história próxima do que ele tinha vivido.

Maria Eugênia
Rodolfo, queria te perguntar sobre a encenação. Em geral, elas são visualmente muito exuberantes no repertório do grupo. Você tende a explorar muito o espaço e me deu a sensação de que em Baldios busca-se um palco um pouco mais livre, uma horizontalidade, uma limpeza nessa cena. Talvez o que contraste um pouco sejam as perucas ou os figurinos, mas tem uma cena muito linda e muito frontal. Queria que você falasse um pouco dessa opção.

Rodolfo
Acho que isso já vem de uns anos. A trilogia das Pessoas também tem isso, um visual das personagens muito carregado, quase uma história em quadrinhos com o palco nu. E em Baldios também a gente queria uma coisa menos caricatural, menos HQ, um registro um pouco mais naturalista, não exatamente, mas um pouco mais naturalista. E a ênfase tem sido muito forte em quais são as histórias que a gente está contando, sejam ficcionais ou documentais, para fazer com que essas histórias cheguem ao público.

Então não houve uma preocupação em um excesso visual. Às vezes eu tenho um certo barroquismo, mas nos últimos experimentos criativos esse barroquismo vem sumindo, está havendo uma limpeza da cena. Esse também é uma marca muito forte no Cabaret transperipatético: são oito cadeiras e um espelho e tudo se passa assim, com oito cadeiras e um espelho. É uma tentativa constante de chegar a uma certa essência daquilo que está sendo dito. Acho que o barroquismo está na investigação que a gente está fazendo nas almas, indo tão fundo em algumas coisas e mesmo nos questionando acerca delas. Acho que Pessoas brutas, por exemplo, tem vários questionamentos sobre nós mesmos enquanto grupo, enquanto artistas e as coisas que acontecem conosco. Essa investigação profunda está se dando em outro nível e a cena está ficando limpa.

Maria Eugênia
Vocês comentaram sobre a importância de ter pessoas no palco que não estão exatamente representando papéis, mas que estão ali dando o seu testemunho, ao mesmo tempo que tem pessoas que estão ali como atores, que fazem parte d’Os Satyros há muito tempo. Queria que vocês comentassem um pouco esse papel desse testemunho, quase dessa performance que acontece ali e se existe alguma diferença na hora de dirigir um e outro.

Ivam
A gente começou a pensar muito de um tempo para cá em para quem que a gente está falando, quem são os nossos interlocutores, de onde vêm, o que eles pensam. Muito mais do que eles querem, a gente queria saber o que eles pensavam, muito mais do que eles queriam ver. Isso vem um pouco lá atrás, no Sades, na nossa origem. Eu lembro no Sades de quando a gente estreou em 1990. Chegou um momento em que a gente não quis mais fazer a peça porque era um espetáculo que a gente estreava e sempre tinha bastante público. A gente viveu na Europa durante muito tempo com esse espetáculo e aonde era apresentado, lotava. Chegou um momento em que a gente percebeu que estava fazendo algo que eles queriam ver. Era quase como se fosse um circo de horrores. E naquela vivência na Europa eu pensava muito também na questão de ser brasileiro, daí de fazer Sades ou noites com os professores imorais. Já A filosofia na alcova podia fazer por opção. Nós fizemos centenas e centenas de apresentações em Lisboa, Londres, viajamos muito a Europa, tinha muitos convites e poderia continuar esse espetáculo. Quando caiu essa ficha, acho que a partir daí não nos interessava o que vocês gostariam de ver, mas o que a gente queria fazer com o que vocês poderiam pensar da vida ou das questões.

E isso foi uma coisa que a gente trouxe muito à Praça Roosevelt, sempre interessados em criar interlocução, muito mais do que criar uma peça que tivesse público. Importava ter uma relação de fato com essas pessoas. Temos pensado muito nisso nos últimos tempos. Qual o diálogo que as pessoas querem estabelecer com a gente, o que a gente pode fazer, como transformar isso? Considerando também que nossos espetáculos ficam muito tempo em cartaz. O incrível mundo dos baldios, que estreou agora, em março, a gente já fez mais de 70 apresentações, estreou de quarta a domingo e a gente fazia duas sessões no sábado. Fica em cartaz até o fim de ano. Foi assim com a trilogia, Pessoas perfeitas a gente fez centenas de apresentações. E quem vê a gente não é classe artística, não são nossos amigos; o nosso público não é da classe. A gente não tem a classe artística vendo a gente, mas um público de verdade, que vai lá. Durante centenas de apresentações um dia ele aparece.

O que aconteceu no dia em que vocês foram [para Maria Eugênia e Beth], na sexta-feira, é que teve pouco público, mas acontece. Lembro certa noite em que a gente chegou na roda [de atores na coxia] e tinha cinco pessoas. Mas assim que abriu já tinha umas 30, e faríamos para cinco pessoas sem problema. Se tiver um espectador, pelo menos quando eu fizer parte do elenco, meus colegas sabem, nós vamos fazer a peça. Sem essa de chegar e perguntar se a pessoa quer assistir ao espetáculo. Pois ele ou ela foi até lá e vai assistir ao espetáculo. Isso tem muito a ver com essa questão do que a gente está falando e para quem, e qual o pacto que se estabelece com essas pessoas. É uma preocupação muito grande. Então eu te devolvo a pergunta, cheio de incertezas porque acho que o que a gente precisa é criar um espaço de interlocução, de verdade, porque as questões que a gente encontra agora, e a maioria delas não tem resposta, podem ser colocadas no próximo trabalho, e certamente o serão.

Rodolfo
Tem uma questão que eu acho importante nisso que é o sistema semiótico do trabalho d’Os Satyros e como eu, enquanto encenador, trabalho isso. Quando você trabalha com determinado grupo social, este tem um conjunto de signos que usa para definir o mundo e para entender o mundo. É um ponto de vista sobre o mundo, e quando você começa a trabalhar com pessoas que pertencem e possuem outros grupos sociais e que possuem outros sistemas de signos você amplia também o seu olhar.

Por exemplo, na cena da quebrada em Baldios, a gente precisava pôr uma música na entrada e que desse um toque um pouco mais leve, mais alegre, mas que representasse as questões significativas para o pessoal da quebrada. Quem sugeriu, quem escolheu a música não fui eu ou um sonoplasta do grupo, mas quem é da quebrada. Ou seja, o Junior [Mazzine], que é uma pessoa que até o ano passado era analfabeto, que tinha ficado sete anos preso. Escolheu a música que o representa, porque traz um outro sistema de signos que não é o meu. Então quando você coloca isso em cena quebra com as referências tradicionais do teatro, traz referências de alguém que não pertence ao mundo teatral, em vez de alguém que nunca foi na quebrada ou que não sabe o que toca lá. Tampouco é o rap que chega para a classe média esclarecida. Ele optou por um pagode típico de lá. E aí a função do diretor, nesse caso, muda: não sou eu quem define a música que vai tocar, tenho que entender quais são os códigos que estão rolando ali para articular isso com o restante da encenação.

Minha experiência enquanto encenador mudou muito. Já não sou um encenador que sabe tudo. Sou um encenador que tem que aprender um monte de coisas com os códigos de cada grupo social. Por exemplo, o trabalho que desenvolvemos com adolescentes tem se revelado incrível. Com pessoas de 14 a 17 anos aprendemos a respeito da realidade social deste país e nos questionamos: “Meu Deus do céu, o que será de nós com esse sistema educacional com o qual eles têm que viver e diante das questões que eles passam?”. E até que ponto eu posso dizer: “Não, ele não vai colocar essa música”? Tenho que dialogar com aquilo para entender quais são os sistemas de signos que eles usam para poder construir alguma coisa para a cena que dialogue com o máximo de pessoas possível.

Em ‘O incrível mundo dos baldios’, é como se eles precisassem de um milagre que vem de fora, que vem de um anjo, e em ‘Cabaret transperipatético’ eles criassem o milagre, está neles. A arte quando é plena é como se ela se descolasse do campo da cultura. Ela fissura essa cultura, ela aponta um avanço, e mesmo que a gente saiba que não esteja na sociedade, esse espetáculo aponta uma outra sociedade possível (Beth Néspoli)

Abre para a participação do público

Camila – espectadora
Sou formada em moda e faço oficina n’Os Satyros. Fico muito curiosa pelo processo de vocês. Queria que contassem como foi o processo de construção dos figurinos do Baldios, porque ele é muito diferente do que vocês estavam acostumados a fazer, até pelas cores que são mais neutras, o palco com piso branco, o projetor. Como foi essa construção dos figurinos e do cenário? 

Rodolfo
Por exemplo, a gente fez Cabaret fucô [2016], que era uma coisa muito colorida, que é o espetáculo nosso que vai para a China em outubro deste ano e pelo qual os chineses ficaram muito entusiasmados de levar. Esse trabalho tem uma coisa de cor, de brilho. Na Trilogia das Pessoas tem essa coisa muito estilizada, de cores muito marcadas. E no Baldios, a gente gosta de investigar coisas diferentes. É muito difícil você dizer “esse é um espetáculo d’Os Satyros e aquele também é”, porque são totalmente diferentes um do outro. É uma questão louca o que cria a identidade Satyros enquanto linguagem. Tem tantas vertentes, mas nesse espetáculo a gente queria trazer uma coisa mais sóbria e mais densa. Acho que tem a ver também com o momento em que a gente estava, que era esse excesso de dor, excesso de questionamentos sobre o sentido de estar nesse planeta. A gente estava num momento mais sóbrio e o espetáculo reflete isso nas cores, mesmo nas projeções em que se optou pelo cinza, pelo preto e branco. Num certo sentido, é um espetáculo que tem esperança. Ao menos a gente busca essa esperança, pois sem ela eu acho que não consegue ir muito longe. Baldios é um espetáculo que reconhece a dor e isso é reconhecido com pesar, e se reflete no processo de cenário e figurinos.

Beth
Eu vi outro dia uma entrevista do ator e dramaturgo Jé Oliveira, do Coletivo Negro, e ele faz uma questão: “Será que basta um corpo negro em cena para eu fazer um teatro negro?”. O que seria o teatro negro se a gente não tem uma linguagem ainda, era mais ou menos por aí o raciocínio dele. O artista pode usar uma sequência de capoeira, mas isso caracteriza uma linguagem de um teatro negro? São questões por essa visibilidade que está chegando agora, por esses corpos que estão chegando agora no palco. E tem uma pergunta assim, que se você colocar um homem trans ou uma mulher trans, e estou usando uma expressão que o Zé Celso traz que é “trans homem”, porque é alguém além do homem, alguém que deixou esse padrão de homem e está além do cidadão, além do homem. Será que basta esse corpo pra ser um espetáculo trans, nesse sentido de ir além?

Na primeira cena do espetáculo Cabaret transperipatético tem um desfile, um programa de auditório, Guttervil faz um apresentador que tem que rir o tempo todo e que é grosseiro com as pessoas. Então tem aquela cena típica da dublagem, da travesti dublando e um desfile de qual é o homem que vai ganhar o prêmio de quem se veste melhor de mulher. E não por acaso, o prêmio é um cheque, um videocassete, fica muito claro que tudo é uma coisa antiga, ultrapassada em termos de linguagem. Esse apresentador que se dá o direito de botar a mão no peito da mulher ganha quem melhor esconde o pau… Isso é a primeira cena e você fica tão incomodado. Quando acaba essa cena o tom é totalmente diferente, totalmente outro, da linguagem que vem depois. De alguma forma é como se o espetáculo dissesse assim: “Se você usa uma linguagem, uma convenção antiga, você não traz para a cena o movimento, você de alguma forma paralisa”.

Aquelas mulheres estão ali diante de um júri esperando para serem avaliadas como uma carne estagnada e daí em diante os depoimentos vêm com uma potência incrível. É muito menos as histórias que elas contam e muito mais o processo que elas passaram para chegar onde estão. Cada pessoa que está ali, que tem uma singularidade, conta de um processo que é deixar de ser um padrão, deixar de sofrer ou de ser oprimido por um tipo de padrão e assumir, se constituir como um humano do jeito que quer ser como um humano.

Então é como se Cabaret transperipatético fosse quase da obscenidade daquela primeira cena à liberdade, e é incrível porque quando você chega num sexo, você não trabalha com a obscenidade, não tem obscenidade onde as pessoas veem obscenidade. E vejo muito ali, Rodolfo, a sua direção de desenho mesmo, de conjunto, de trabalhar esses depoimentos que são pessoais, mas como personas cênicas, eles não estão ali naturalizados, eles estão trabalhados como arte sem apagar essa singularidade, você trabalha com esse conjunto. Tem também uma cena dos trans homens, eles fazem uma cena de coçar o saco que seria esse homem padrão e depois isso se reverte. Como isso foi pensado mesmo, é como se ali, de alguma forma, em Baldios, é como se eles precisassem de um milagre que vem de fora, que vem de um anjo, e em Cabaret transperipatético eles criassem o milagre, está neles. A arte quando é plena é como se ela se descolasse do campo da cultura. Ela fissura essa cultura, ela aponta um avanço, e mesmo que a gente saiba que não esteja na sociedade, esse espetáculo aponta uma outra sociedade possível. E essa diferença ali em Baldios tem uma tristeza mesmo muito profunda e quase como se um milagre tivesse que vir de um externo, de alguém que trouxesse para você e aqui uma potência muito forte de quem pode fazer o seu próprio milagre para se transformar.

Eu gostaria que você falasse sobre isso, Rodolfo, a diferença entre os dois trabalhos recentes, se você vê assim ou se isso faz sentido. E também sobre o contraste entre essas cenas em que elas estão submetidas e depois numa linguagem que é cheia de silêncio, que tem esse espelho, que é um elemento extremamente expressivo para o corpo, como você se vê. Enfim, como é que você trabalhou, se você trabalhou claramente esse contraste dentro da própria cena do Cabaret.

Rodolfo
É muito difícil você ser artista durante 30 anos, é uma luta, um milagre, porque a tendência é repetir aquilo que você sabe fazer. Foi uma crise que a gente teve na Filosofia na alcova lá atrás. E eu perguntava muitas vezes ao Ivam para onde a gente ia, se ficaríamos só fazendo Marquês de Sade. A gente foi se redescobrindo como artista. Nossa chegada na Praça Roosevelt marcou um novo momento. Começamos a perceber que a gente pertencia a um território e que esse território era vida, e que essa vida poderia estar no nosso palco. O desafio era como a gente poderia se relacionar com isso.

Quando a gente faz Pessoas perfeitas, em que começamos a investigar vidas, já estava no Hipóteses para o amor e a verdade também. Então meio que todos esses processos estão fazendo a gente se redescobrir e também descobrir mil novas potencialidades para teatro. No caso de O incrível mundo dos baldios, especificamente, creio que o milagre tem vários sentidos: é um milagre um adolescente sentar para conversar com uma refugiada palestina; é um milagre um idoso solitário sentar para conversar com uma voluntária na noite de ano-novo. Todos os pequenos fenômenos da vida são milagres. Estar ali, naquele momento, é milagre. A médica estar em Ushuaia participando do suicídio assistido de uma mulher condenada à morte é um milagre também. Então, o sentido do milagre aí também é de como o acaso constrói a nossa existência, mais do que a gente espera. E que é o efeito borboleta, que bate a asa aqui e acontece um terremoto não sei onde. Tudo é tão acaso. E no caso do Cabaret transperipatético o que a gente estava discutindo era justamente a importância desse momento histórico para o movimento e para nós que já convivemos com a comunidade trans há 15 anos, desde que a gente chegou na Praça, e acho que até antes, já em 1990.

Nu Abe

Guttervil em ‘Cabaret transperipatético’, obra-manifesto autodefinida como um grito de liberdade e de representatividade para falar sobre afeto, espaço social, opressão, transfobia, empoderamento, angústias e sonhos

Ivam
A primeira transição de uma mulher trans n’Os Satyros aconteceu em 1994, durante um espetáculo nosso.

Rodolfo
Isso estava muito claro no processo, no sentido de que vamos falar sobre a força desse momento de visibilização desse movimento. E também acho que uma coisa que foi fundamental no processo é o aprendizado muito forte que a gente tem.

Ivam
Eu preciso fazer uma nota de rodapé. Você está mais ou menos mentindo [risos]. O Cabaret transperipatético foi um projeto pensado há muitos anos. A discussão hoje, quando nós pensamos, ela não existia ainda. Você veio com essa ideia há quatro anos, então toda essa questão não existia, porque também parece oportunismo. Quando a gente chega nela, era um projeto aprovado, que recebeu incentivo e isso tudo demorou milhões de anos, o que eu acho que faz toda a diferença também porque é uma coisa que é inerente. Ela surge dentro de um processo que está acontecendo dentro d’Os Satyros e que está na sociedade.

Rodolfo
É verdade. O projeto foi pensado há mais anos, mas que nasceu justamente no meio desse turbilhão, como se a gente estivesse respondendo agora a uma pergunta sobre a qual não sabíamos quatro anos atrás.

Ivam
E a gente continua descobrindo coisas, descobrindo coisas no Cabaret, por exemplo a história da Sofia. Ela está aí [na plateia]. Uma história que aconteceu na semana da estreia. O tempo todo a gente tem aprendido e isso eu acho o mais bacana, quando você está aberto: eu não sei sobre e eu quero aprender. São temas demasiado novos, são lugares que a gente não conhece e precisa começar a ouvir e a entender.

Rodolfo
Nós aprendemos muitas coisas com o elenco. Até pediria para que vocês levantassem, quem é do elenco do Cabaret transperipatético. São pessoas não cis e que nos ensinaram muito sobre como a gente naturaliza coisas que não são naturais. E como é grande e terrível a opressão. Uma das coisas fundamentais aprendidas no processo é: reconheça, antes de tudo, o seu privilégio de ser uma pessoa cis e de ter uma vida facilitada por ser uma pessoa cis. E acho que a gente precisa colocar aí uma pitada de SP Escola de Teatro no meio dessa conversa porque o Ivam é o diretor dela e eu, coordenador do curso de direção. O que o movimento social, o que os jovens hoje estão questionando é uma loucura. Questões que até 10 anos não existiam. Por exemplo, uma atriz que está fazendo uma cena sobre uma questão feminina, a questão das mulheres, e questiona porque tem que ser dirigida por um diretor que não entende a sua questão e argumenta sobre a necessidade de ser dirigida por uma diretora. Ou um ator negro dizendo que uma determinada direção não pode ser de um diretor branco.

Ivam
Ou de certa vez eu chegar às 9h30 para trabalhar na escola, parar em frente ao elevador, chegarem umas meninas e eu dizer: “Primeiro as mais bonitas”. E elas me acusarem de machismo e eu não aceitar que estou sendo machista quando, sim, estou sendo machista.

Rodolfo
Então a gente está levando bordoada todos os dias. Por exemplo, enquanto estava fazendo o processo do Cabaret transperipatético, toda noite eu levava uma bordoada do elenco, e merecida. Saia desse lugar, o mundo é outro, estamos no século XXI, acorda, pensava comigo mesmo. É maravilhoso o quão aprendi, me transformei como artista e como ser humano. É um processo gigantesco, mas durante o dia eu levava outras bordoadas na SP Escola, porque a escola é racista… Eu fui perceber a estrutura racista da escola através de um adolescente de 19 anos. Então a gente está sendo obrigado a sair do nosso lugar, aceitando esse desafio de querer contribuir para que a sociedade mude. Tem sido fundamental para nós.

Esse contraste da cena foi uma luta desse elenco. A Fernanda [Kawani, de Cabaret transperipatético] diz que assistia àqueles programas de TV e via naquelas travestis o que poderia ser. Só que hoje ela vê como tudo aquilo era uma estrutura extremamente transfóbica. Então, por um lado era transfobia pura, mas por outro foi onde a Fernanda conseguiu se enxergar. Houve uma discussão muito forte no elenco e de maneira alguma a gente podia decidir isso. Era uma decisão do elenco e por isso que eu digo que o lugar do diretor mudou. Nós, diretores, temos que estar em outro lugar, porque senão a gente não vai entender o que está acontecendo e não vai dialogar com a sociedade. Vai fazer aquele teatro que junta um grupo de amigos, todo mundo do mesmo status social, do mesmo lugar de fala, que vai reclamar do governo e vai dizer que está fazendo trabalho político. E o trabalho político é outro, o lugar é outro, e nós temos que entender esse lugar senão o teatro morre.

Maria Eugênia
Como vocês relacionam a emergência de novas vozes que chegam descortinando essas questões, desnaturalizando esses preconceitos, essas pautas que atravessam a gente, e tudo isso acontecendo no mesmo momento em que há um acirramento do conservadorismo, em que as pessoas se mostram cada vez mais intolerantes com o diferente. Queria saber se da mesma maneira que essas novas vozes afetam vocês, se o acirramento do conservadorismo também chega, os atinge, ou se, de alguma maneira, o território d’Os Satyros está um pouco seguro por causa disso?     
  
Ivam
Ameaçadíssimo por conta disso. Talvez este seja o pior momento que a gente já viveu em termos de ameaças – e lidamos muito com elas nessas três décadas. A relação de teatro na Praça Roosevelt, a relação da liberdade na Praça Roosevelt é algo inacreditável. Há um conservadorismo pelos donos de toda a verdade. A gente tem uma ação local por parte da presidente de uma associação, a Marta [Lilia Porta, da Associação dos Moradores e Amigos do Bairro da Consolação e do Conselho Comunitário de Segurança do Estado, Conseg]. Ela conseguiu, por exemplo, tirar dos Parlapatões o alvará de funcionamento 24 horas do espaço. Conseguiu tirar a Satyrianas da praça, a gente não pode mais usar a Praça Roosevelt.

Esses dias teve um trabalho com os adolescentes d’Os Satyros em que um grupo de 15 pessoas foi pintar figurinos no meio da praça, uma coisa supersimples, a polícia foi lá tirar os adolescentes porque não tinham autorização. Isso tem aumentado e parece não ter mais como dialogar. Lembro-me de uma edição do Festival de Curitiba em que a gente foi apresentar A filosofia na alcova e houve um problema com alguma associação religiosa que foi na frente do teatro distribuir panfleto para as pessoas não entrarem porque a gente ia fazer Marquês de Sade. Isso pode ser considerado inocente perto do que acontece hoje. Muito inocente porque hoje as reações vêm de forma muito violentas e muito frontais. A gente se assusta o tempo inteiro com isso.

Rodolfo
Os movimentos identitários estão tomando uma proporção grande. Há muita diferença entre ser negro nos Estados Unidos e no Brasil. A consciência negra lá vem de muito tempo, o movimento dos direitos civis, mas a população negra dos Estados Unidos é de 15 a 20%. No Brasil, ela é mais de 50% [somadas as pessoas autodeclaradas pretas e pardas na pesquisa do IBGE]. Então a luta desse grupo é uma luta que tem que ser entendida num contexto gigantesco se a gente levar em conta o Brasil.

Quanto ao movimento das mulheres, as feministas da SP Escola, por exemplo, têm hoje uma voz muito forte. E o movimento trans também. Todos esses movimentos identitários estão fazendo com que a sociedade se repense. Quando você pensa a história do teatro, durante dois mil anos ela foi escrita por homens. A história da arte, a pintura, idem. Onde estavam as mulheres? Elas eram metade da população, mas não tem nenhuma dramaturga antes do século XX. Onde elas estão? Onde elas foram enterradas?

Então essas questões estão sendo colocadas. Grupos sociais que sempre viveram no privilégio, especialmente homens, brancos, cis, héteros normativos, cristãos, eles estão sendo colocados em xeque. O que acontece é que quando você tem uma luta identitária… Eu só construo a minha identidade porque vejo que há uma alteridade, há um outro. Então eu mulher estou construindo a minha identidade, então eu homem começo a olhar quem sou eu, eu negro construo a minha identidade e vem o branco e se pergunta eu branco quem sou, e tudo isso vai gerando algo como o [Donald] Trump, como [Jair] Bolsonaro. Eu sou branco, eu sou cis, eu sou hétero, eu sou macho, eu sou conservador e eu tenho uma identidade também.

Ophelia/IC

Público acompanha a conversa do 20º Encontro com o Espectador realizado em maio no Itaú Cultural

Essas identidades estão sendo construídas a reboque, com mais força, desses movimentos identitários que estão lutando por seus direitos. E esses grupos que tinham os privilégios e que não se preocupavam com nada porque estavam no comando estão falando: “Peraí, vocês estão chegando, eu sou Bolsonaro, mulher feia eu não pego, meu filho foi bem-educado e não vai pegar uma mulher negra”. Ele chega a falar essas coisas. Isso é uma consequência desse movimento e tem estudos nos Estados Unidos sobre isso, como o fenômeno Trump foi acontecer se teve o presidente Obama. Justamente a reação daqueles que estão perdendo os privilégios. Então a Marta, por exemplo, lidera esse movimento na Praça Roosevelt e é muito claro o que ela e aqueles que representa quer: ‘O que esse povo do teatro está fazendo aqui?”. E eles se identificam, assumem a sua condição, que era uma coisa que antigamente não precisavam assumir porque estava tudo no lugar, estava todo mundo bem. Os incomodados não vão se mudar. Os incomodados vão querer expulsar os alternativos, as outras vozes, e é nessa batalha que a gente está hoje. Por isso que é muito mais difícil agora. Eles não são maioria, mas eles têm a voz e eles não querem abdicar dos privilégios.

Beth

De alguma forma você trabalha por uma conquista de empatia talvez dessas pessoas nesse espetáculo do Cabaret transperipatético? Ele não é um espetáculo agressivo em nenhum momento com o outro lado, pelo contrário, é como se ele realmente fizesse você repensar o teu padrão. É quase como se ele te desse uma liberdade de também se constituir diferente do que eu fui até agora, a partir do que eu vejo ali, como positivo. Não sei se estou sendo Poliana, mas é a sensação que tenho vendo o espetáculo, que dá vontade de levar uns héteros bolsonaristas lá, dá a impressão que eles podem se transformar a partir do espetáculo. Isso entrou nas discussões do processo?

Rodolfo
Isso foi bastante discutido. Eu, Ivam e a Luh Maza [atriz] fomos construindo em processo a dramaturgia com os atores. E dentro da sala de ensaio estávamos eu e o Felipe Moretti, que éramos os cis, tipo os peixinhos fora da lagoa, como se fossem dois brancos dirigindo um espetáculo de negros ou dois homens dirigindo um espetáculo de mulheres. Então o que eu falava para o elenco era que eu seria o olhar cis, serei o olhar do público “normal”. O objetivo desse espetáculo nunca foi falar exclusivamente para uma plateia trans, o objetivo sempre foi falar para todo mundo, trans e cis. Por isso acho que ficou meio de acordo entre nós que essa questão seria sempre posta: que todo mundo pudesse dialogar com o espetáculo e se perceber nele.

Ivam
Que é um pouco o que a gente tem falado, e isso é muito importante: para quem estamos falando? É preciso responder sempre a essa pergunta. Quem é que vai ser o nosso interlocutor e o que é que a gente está querendo com isso. Não era um espetáculo para o público já iniciado, a gente precisava iniciar as pessoas nesse universo.

Rodolfo
Para muita gente cis que vai assistir ao espetáculo… Todo mundo entende a palavra cis? Cis é a pessoa que nasce com um sexo biológico e se identifica com esse sexo. Nasci com um pênis e acho que sou homem. A ideia era que as pessoas cis percebessem como elas também constroem o gênero delas, uma vez que esse gênero é construído. Você nasce com um pênis, mas o que você entende que é um homem é uma construção que vai acontecer durante toda a sua vida, desde o nascimento até a vida adulta. Ser homem não é uma coisa com a qual você nasce, é uma coisa que você constrói. Aliás, tem uma frase da Simone de Beauvoir [1908-1986]: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Acho que ela tem uma contribuição fundamental para a cultura, muito menos mencionada do que o [Jean-Paul] Sartre [1904-1980), só que ela traz coisas tão interessantes e tão contemporâneas e muito mais atual hoje do que ele no debate social.

Márcio – espectador
Estou participando do processo d’Os Satyros Silenos e queria falar sobre Baldios. Percebi no espetáculo que cada cena traz muito da realidade que estamos vivendo hoje e queria saber se isso foi intencional. Ou, como vocês falaram, isso partiu do elenco e acabou casando com situações como a do velho, que é o palhaço no asilo, e da refugiada. Que cada ator, em cada cena, representasse essa realidade que estamos vivendo hoje…

Ivam
Quando os atores chegaram para trabalhar nesse processo, eles já sabiam as personagens que iam fazer e em que lugar mais ou menos eles estariam. A gente começou lá em agosto, o texto chegou em janeiro, sem alteração nesse sentido, as histórias existiam. Dei o exemplo do Roberto, mas não me lembro em que momento surgiu o palhaço. Surgiu muito provavelmente por causa da história que a gente encontrou. Mas eu acho que a gente não teve essa preocupação, de falar sobre a questão Palestina porque ela é atual ou sobre a terceira idade, de uma pessoa abandonada na casa de repouso porque é atual. Acho que quando a gente elencou as cinco histórias que a gente trabalha é porque eram cinco histórias que nós gostávamos. A gente tinha trezentas mil historiazinhas e daí sentou e elencou essas cinco, mas sem essa preocupação.

Para procurar interlocução é preciso saber para quem a gente está falando. Talvez a sua pergunta faça sentido porque isso vem no processo de montagem do espetáculo. Pensar coisas estratégicas para qual público a gente quer atingir, quem a gente quer trazer para o teatro. Realizamos ações voltadas para os moradores da Praça Roosevelt desde que a gente chegou, com ingressos a R$ 5 e isso é uma estratégia nossa para criar relação e fazer com que as pessoas da praça se aproximem do nosso trabalho. E no caso dos Baldios, claro, a gente tem que se preocupar com tempo de duração da peça, há uma série de coisas que vai nos preocupando. Por exemplo, esteticamente a gente tinha descoberto na Trilogia das Pessoas uma estética, um lugar, e que o Rodolfo nos Baldios não se utilizaria dela agora. Então, essas coisas acabam sendo estratégicas.

Rodolfo
Só queria fazer uma observação sobre isso. Tem gente que acha que é fácil fazer um espetáculo só com trans, só com refugiados haitianos. Gente, isso é um esforço gigantesco. E seria muito mais simples a gente não se arriscar por aí, e em vários sentidos. Às vezes eu chegava nos ensaios e pensava que era uma coisa tão óbvia: voz, corpo, a postura, a atitude diante do trabalho, o profissionalismo e mesmo encontrar as pessoas. Trabalhar com refugiado haitiano é uma dificuldade, tem dias que eles não têm dinheiro para chegar no ensaio. Eles não sabem falar em cena, nunca fizeram teatro e tudo isso é uma luta. Creio que essa luta política é o que nos interessa. Transformar o teatro num espaço para todos. E se não for para todos, então para o máximo de pessoas a que a gente puder propiciar.

Ivam
Vocês não têm noção o quanto um release anunciando a estreia de um espetáculo como o Cabaret transperipatético causa. O silêncio que se formou em relação a isso, de não ter resposta, de não sair nenhuma linha no jornal, das pessoas não saberem se portar, não saberem te responder. E foi a estreia que a gente mais se preparou porque a gente tinha tempo, o release foi feito três meses antes. Eu gosto dessa parte de estruturar a comunicação d’Os Satyros, então eu sempre participo das reuniões, mas foi o Robson [Catalunha, ator] quem tocou. O constrangimento que se causa, a gente sabia que isso ia acontecer, não somos ingênuos, reflexo do quanto as pessoas não conseguem falar sobre o que elas ainda não entendem.

Rodolfo
Teve um dia em que a gente recebeu os jornalistas no ensaio do Cabaret transperipatético e eles têm medo de falar sobre, por medo de errar, e daí preferem ficar em silêncio. Ou seja, é outra forma de invisibilizar a questão. Eu não sei falar sobre, não sei onde posso estar sendo incorreto, então prefiro ficar quieto. A gente também não sabia como tratar ou como discutir, e continuamos não sabendo, mas esse é o desafio da cultura hoje. Você se lançar nessa empreitada e tentar descobrir quais são os caminhos, em que estou errando, o que eu posso fazer melhor.

Uma situação interessante que aconteceu com os refugiados haitianos, um dia estava a Letícia Sabatella, a Maria Casadevall, a gente estava discutindo religião e a maior parte deles ou é evangélica ou é do vodu haitiano, mas todos, sem exceção, acreditavam em zumbis. E é óbvio que existe um conflito cultural aí. A cara dos atores, todo mundo ficava se olhando com uma cara de “meu deus do céu”, porque eles descreviam com riqueza de detalhes o que era um zumbi, porque já tinham visto. E, nesse momento, eu como diretor, encenador, eu tinha duas opções: desacreditar dessa história e dizer “vocês estão loucos” ou aprender com ela e transformá-la em material de cena e discutir a partir dela.

Por exemplo, tinha uma atriz que era uma restavek [corruptela da língua francesa, reste avec, ficar com] que na cultura haitiana é como se fosse uma escrava infantil. Uma criança que mora no interior, vai para a cidade grande e é tratada como escrava dentro de uma casa, faz todo o serviço e dorme fora da casa, como se fosse um cachorro. E essa criança era discriminada pelos outros haitianos. Como lidar com isso? Certo dia, pensei: “Que país é o nosso?”. Porque essa atriz tinha uma foto no Facebook e escreveu que estava fazendo projeto com a gente. Daí um brasileiro escreveu “macaca” e colocou a foto de um gorila. E, nesse dia, os haitianos se reuniram e eu não sabia o que fazer. Que vergonha de ser brasileiro nesse momento. E ela aos prantos, a restavek. Então você se defronta com essas coisas, você não sabe a resposta. É muito mais seguro você estar no seu grupo social, só que você não aprende nada sobre o mundo, fica repetindo os chavões que já sabe. Então se encontrar com isso é outro mundo.

Valmir Santos – jornalista
Queria pegar um pouco desse campo dos 30 anos, do trabalho continuado de pesquisa d’Os Satyros. Lembro que numa fase, nos anos 2000, vocês definiram uma certa categoria de pensamento e de prática em torno do que definiam como teatro veloz. O Rodolfo falou há pouco do sistema semiótico e o Ivam, por sua vez, desenvolveu nos últimos anos estudos em mestrado e doutorado. Queira saber se de alguma forma vocês revisariam esse conceito e se podem situar pra gente o que vem a ser o teatro veloz e em que medida ele foi transformado pelas últimas experiências formais e temáticas. E outra coisa, Ivam, lembrar que nos anos 1990 já existia na cidade de São Paulo algumas práticas de teatro comunitário, posso citar o exemplo do Teatro Popular União e Olho Vivo [desde 1966], uma experiência de atores operários.

Ivam
Essa conversa foi boba. Sempre existiu, na verdade, vários grupos, mas não era uma tendência como é hoje, por exemplo, de você ter vários coletivos. Éramos exceção. Eu acho que Os Satyros são muitos Satyros. A gente tem vários projetos. O Satyros é plural demais nesse sentido e talvez a pesquisa do Rodolfo agora tenha mais a ver com o que a gente está pensando sobre um sistema de trabalho.

Rodolfo
A gente teve o período do teatro expandido e do teatro ciborgue também, que foi uma pesquisa muito forte de 2009 a 2014, que era como a internet, o celular, tudo isso modifica o corpo, a cena, a nossa relação com o mundo. Isso não deixa de existir, isso continua. Agora, o que tem acontecido muito forte é descobrir esses lugares de fala e como a gente pode universalizá-los e transformar Os Satyros num ponto de convergência desses diferentes lugares de fala para construir um discurso. Isso está muito forte, mas não tem um nome.

Nu Abe

Cena de ‘Cabaret transperipatético’, uma das cem peças que Os Satyros montaram ao longo de três décadas a serem completadas em 2019

O conceito do teatro veloz já inclui isso de uma certa forma, não é um discurso explícito, mas isso já está porque era estar sempre conectado com o mundo e com o outro. Era um dos princípios que a gente sempre apontou lá no começo, só que naquela época a gente buscava literatura, romances, peças de teatro. É de uns anos aí que a gente começou a escrever, tanto é que o Ivam sempre se considerou mais dramaturgo do que eu, sou meio recente. Antes eu tinha vergonha de dizer que sou dramaturgo. Quando a gente ganhou o Prêmio Shell de Teatro [SP] de melhor texto por Pessoas perfeitas, pensei: “Gente, eu sou dramaturgo, alguém acha que eu sou dramaturgo. Então eu sou dramaturgo”. Mas, até então, eu tinha alguns receios.

Ivam
A gente começou a trabalhar num momento em que não tinha dinheiro nenhum, então foi meio que obrigado a escrever os nossos textos. Nesse primeiro momento adaptava os gregos, Shakespeare e algumas obras literárias, e ia construindo uma trajetória. Mas eu também não me considero dramaturgo, na verdade. Acho que ainda é um trajeto grande a ser cumprido. Trabalhamos em processo, tampouco me interessaria sentar na frente do computador e escrever um texto.

Rodolfo
É que o texto surge no processo e acho que isso está sendo uma coisa muito forte para nós hoje. E tem uma coisa interessante. Pessoas perfeitas nasceu como roteiro de cinema, que a gente queria muito e ainda está muito a fim de fazer. O Ivam teve a ideia e escreveu um roteiro de cinema. A gente foi prestar um edital qualquer no processo de captação de recursos e falei para adaptar o roteiro do filme para teatro. E daí começou uma coisa que revolucionou muito para nós, e acho que o Pessoas perfeitas marca essa transição. O roteiro virou uma peça e agora vai voltar para o cinema. E as três peças de Pessoas vêm meio nessa categoria porque são roteiros de filmes. Até O incrível mundo dos baldios pode ser entendido como roteiro, então a gente foi para esse lado em que o audiovisual começa a interferir também na nossa maneira de fazer teatro. É uma coisa meio louca. E tem o teatro documental que a gente está fazendo.

Meire Mary – espectadora
Sou do Projeto Satyros Silenos. A minha questão é se o Satyros Silenos faz parte do processo de pesquisa de todo esse apanhado da dramaturgia humana? Quando surge o Satyros Silenos foi também estar dentro do processo de pesquisa sobre o ser, quem somos, o que estamos fazendo aqui e talvez até para onde vamos com essa tal esperança, tanto aqui no planeta como no “pós-planeta”. Eu estou fascinada em termos de me redescobrir como ser, não só como pessoa, mas como ser. E obrigada pela oportunidade, Ivam.

Ivam
O Satyros Silenos foi uma necessidade. A gente tinha que fazer isso, já vinha falando há muito tempo que queria montar um núcleo da terceira idade. E quando foi fazer o trabalho com o Cabaret dos artistas, a gente teve certeza de que tinha que intensificar esse núcleo. Eu acho que é o futuro do Satyros. Eu tenho 55 anos daqui a pouco, então daqui cinco anos serei terceira idade e acho que a gente tem que se preparar, pensar. Eu sou ogum no candomblé e é quem vai na frente, na floresta, com um facão abrindo caminho para que as outras pessoas venham atrás, e eu me sinto assim. Acho que ainda é um projeto que a gente vai ter que estruturar, não sei como seguir, mas óbvio que este ano a gente vai estrear um espetáculo com vocês, óbvio que vocês serão aproveitados nas nossas loucuras.

É um projeto recente. Iniciamos o Satyros Silenos no segundo semestre do ano passado, muito em decorrência desse projeto que a gente começou a fazer no Cabaret dos artistas. Trabalhar com os participantes foi sensacional, uma experiência muito reveladora para nós.

Rodolfo
É muito engraçado como as coisas acontecem n’Os Satyros. Um dia a gente estava fazendo uma reunião sobre outra coisa e Ivam falou que hoje ia começar o Silenos. A gente já estava falando sobre isso, mas de repente a coisa acontece. Você vai falando e de repente ela se concretiza e já havia dez pessoas e já estava todo mundo reunido. Então esse fazer é muito importante para nós.

Certa vez fizemos um trabalho com a Vera Holtz e estava passando uma novela que mostrou uma cena de beijo entre a Fernanda Montenegro e Nathália Timberg [Babilônia, 2015]. Eram duas lésbicas de terceira idade. E a Vera falou que as pessoas estavam criticando muito o beijo, mas que isso não era por serem duas lésbicas, mas por serem duas velhas. E aí acho que essa questão para Os Satyros é muito importante, de quais os grupos que não têm direito a voz, quais são corpos subalternizados, que não têm direito a voz. Os idosos têm essa característica, as pessoas não levam a sério o que os mais velhos falam, desrespeitam pelo simples fato de terem cabelos brancos e não veem uma história por trás disso. Numa sociedade como a nossa que vive só o momento, e os adolescentes também são assim, ninguém ouve os adolescentes, as pessoas acham que as questões deles são secundárias. A cidade de São Paulo está cheia de refugiados e ninguém conversa com eles, ninguém se interessa em saber o que está acontecendo. A crise dos refugiados está chegando muito forte no Brasil, no centro de São Paulo só tem refugiado, então são esses grupos que nos interessam e que fazem parte do Satyros.

Maria Eugênia
Queria que vocês falassem da quantidade de coisas que vocês fazem. Vocês vão chegar a 30 anos ainda e já têm mais de 100 espetáculos. Mantêm vários espetáculos em repertório, fazem temporadas longas, o que é muito fora do usual na cidade de São Paulo. Inclusive a gente tem muita dificuldade para conseguir espetáculos para o Encontro com o Espectador porque, quando a gente vê, já saiu de cartaz antes de conseguir chamar as pessoas para uma discussão. As temporadas estão cada vez mais curtas e vocês estão na contramão, sempre fazendo mais coisas, mantendo essas coisas por muito tempo e sempre revisitando os espetáculos de vocês. O Transex vai voltar e queria que vocês falassem um pouco disso para encerrar nossa conversa.

Ivam
A gente entendeu desde cedo isso, que precisava de uma casa para trabalhar. E ela veio por acaso lá em 1990, quando descobrimos Teatro Bela Vista, na Rua Major Diogo, onde nos estabelecemos por dois anos. A partir daí nunca deixamos de ter uma casa, de ter um teatro. Mesmo quando saímos de São Paulo e fomos para a Europa, em Lisboa a gente acaba tendo um local para trabalhar e apostando nisso.

Quando a gente vai para Curitiba faz isso, cria uma sede, e quando vem para São Paulo também. E quando você tem uma casa e pagar aluguel, que não é própria, que você tem que batalhar por ela, acho que a relação fica diferente. É comum ouvir de grupos amigos, inclusive, que está produzindo sem dinheiro, na raça, e isso a gente faz toda hora. É até usual quando a gente tem dinheiro para trabalhar, porque a gente precisa manter essa casa viva. Acho que o que se criou bacana n’Os Satyros desde sempre é uma família, então a gente está junto, com dinheiro ou sem dinheiro. Quando tem Fomento [Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo], a gente tem o nosso cachezinho. O Satyros é super horizontal, Rodolfo ganha o mesmo que eu, que ganho o mesmo que o Fábio Penna [ator e assistente], que ganha o mesmo que o Gustavo Ferreira [ator]. A gente já fez projetos muito loucos de planilha de custos inteira só de cachês, sem lançar os custos com bilheteiro, porteiro, faxineiro etc.

A gente se ferrou porque é muito difícil, mas criou uma família. Então isso é muito legal também, porque acho que se não fosse essa relação de cumplicidade com esse elenco, não teríamos chegado até aqui. Hoje Os Satyros têm nos seus elencos perto de cem atores e técnicos ligados diretamente às montagens. Porque a gente tem vários. Pink star [2017] soma 22 atores, em Os 120 dias de Sodoma [2006, retomada em 2015] são mais de 20 também. Acho que o que a gente conseguiu foi isso, a cumplicidade de acreditar e de vamos fazer com ou sem dinheiro. Conseguimos manter isso. Nas épocas em que há algum tipo de incentivo, recebemos o nosso salário; e quando não, a gente trabalha com percentual. E nessa época é quando a gente mais precisa de dinheiro, então vai precisar trabalhar mesmo que no final do mês os nossos cachês sejam pequenininhos. Tem essa potência do elenco que faz com que a gente todo dia continue acreditando.

Rodolfo
Queria que o elenco do Baldios [presente ao encontro] levantasse para as pessoas saberem quem são. Foi um processo incrível dessas pessoas com a gente e, principalmente, vale a pena frisar isso, a gente busca que Os Satyros sejam um lugar que tenha o judeu e o muçulmano, o candomblé e o cristão, o homossexual e o heterossexual, o cis, o trans e que todos consigam dialogar. A gente busca isso o tempo todo, que a Praça Roosevelt seja esse espaço democrático no limite da nossa força. Realizamos muitos projetos para lutar por isso, é até difícil falar dos próximos que virão. E parece que a gente está começando tudo agora, não parece que chegamos aos 30 anos. Há muita coisa ainda por fazer.

Maria Eugênia
Queria agradecer muito a presença de vocês, a disponibilidade de vir até aqui e da plateia toda. Obrigada.

.:. Leia a crítica de Kil Abreu a partir de O incrível mundo dos baldios

.:. Leia a coluna do Encontro com o Espectador no portal do Itaú Cultural

.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016

.:. Visite o site da Companhia de Teatro Os Satyros

Equipe de criação:

O incrível mundo dos baldios

Texto: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez

Direção: Rodolfo García Vázquez

Assistência de direção: Emílio Rogê

Com: Henrique Mello (Anjo), Ivam Cabral (Peregrino), Roberto Francisco (Palhaço), Julia Bobrow (Voluntária), Junior Mazzine (Segurança), Robson Catalunha (Amigo), Oula al-Saghir (Palestina), Alex de Jesus (Adolescente), Fabio Penna (Assistente), Lorena Garrido (Médica), Juliana Alonso (Advogada), Márcia Dailyn (Cantora), Gustavo Ferreira (Evangélico) e Sabrina Denobile (Evangélica)

Cenografia: Daniela Oliveira e Victor Paula

Design de aparência: Adriana Vaz e Rogerio Romualdo

Iluminação: Flávio Duarte e Rodolfo García Vázquez

Trilha sonora: Henrique Mello, Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez

Dramaturgia sonora: Maestro Marcello Amalfi

Vídeo e programação visual: Henrique Mello

Operação de som e vídeo: Dennys Leite

Operação de luz: Flávio Duarte

Fotografias: Andre Stefano

Perucas: Lenin Cattai

Coordenação de produção: Daniela Machado

Produção executiva: Silvio Eduardo

Administração: Israel Silva

Realização: Companhia de Teatro Os Satyros

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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