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Crítica

‘Terrenal’ e a tolice da luta fratricida

9.1.2019  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Leekyung Kim

Partindo da fábula bíblica da disputa entre os irmãos Caim e Abel, o espetáculo Terrenal – Pequeno Mistério ácrata, dirigido por Marco Antonio Rodrigues com texto do argentino Mauricio Kartun, oferece ao espectador o prazer de acompanhar um jogo lúdico e cômico que valoriza o contraditório como elemento intrínseco à complexidade da vida terrena – ou terrenal. Toda tentativa de simplificação da tarefa de organizar o mundo, o extermínio de oponentes entre elas, está destinada ao fracasso, é a síntese dialética que brota do embate entre Caim e Abel nessa teatralização do mito de fratricídio.

Do original bíblico interessa ao dramaturgo a diferença de perspectiva de mundo entre irmãos e o modo como organizam o cotidiano a partir dessa distinção, a começar pela ocupação do território. Coletor, Abel vive da venda de larvas de besouro que servem de isca a pescadores dominicais, enquanto Caim cultiva pimentões que vende nos mercados. Sim, há outros filhos de deus sobre a terra recém-criada (recém-descoberta? ocupada?).

No livro do Gênesis está escrito que Caim lavrava a terra, Abel era pastor de ovelhas. Em um estudo sobre mitos hebraicos, o escritor inglês Robert Graves (1895-1985), uma das fontes de inspiração de Kartun, localiza nas lutas milenares entre pastores nômades e agricultores sedentários a narrativa bíblica do fratricídio.

Olhar em perspectiva é o convite feito à recepção nessa peça de viés filosófico do argentino Mauricio Kartun. Ao público, não se solicita adesão emocional a qualquer uma das partes, mas engajamento intelectual e sensível para acompanhar argumentos que se desdobram em atos, em viés de humor. Na teatralidade concebida por Marco Antonio Rodrigues ‘não levar a sério’ é ato político

O termo ácrata significa anárquico enquanto Mistérios eram dramas religiosos medievais que recriavam episódios bíblicos. Inicialmente apresentados nos pátios das igrejas, foram aos poucos ganhando comicidade até atingirem o grotesco e terem suas apresentações proibidas em 1548. Sugerida no título, essa linhagem de humor é reforçada na encenação de Rodrigues que opta pela comicidade burlesca dos picadeiros.

Escolha de linguagem que alcança forte expressividade devido à atuação primorosa do elenco, capaz de trabalhar nuances de intenção sem abandonar uma linha cômica arriscada no que diz respeito ao aplainamento do detalhe. Danilo Grangheia em vigorosa encarnação de Abel e Dagoberto Feliz (que substitui Fernando Eiras) no papel de Caim atuam na tradição dos palhaços populares com suas gagues de bofetadas e humor grosseiro, enquanto o ator Celso Frateschi, no papel do “pai” da dupla, mostra seu poder divino com números de mágicas. Diretor musical e responsável pela trilha executada ao vivo, Demian Pinto interage com o trio e contribui para reforçar procedimentos tradicionais dessa poética, como a ausência de qualquer cerimônia na quebra da quarta parede, aquela separação imaginária que torna invisível o espectador.

Olhar em perspectiva é o convite feito à recepção nessa peça de viés filosófico. Ao público, não se solicita adesão emocional a qualquer uma das partes, mas engajamento intelectual e sensível para acompanhar argumentos que se desdobram em atos, em viés de humor. Chave cômica que a tradução literal do título manteve um tanto codificada, de resto, também para a plateia da montagem dirigida pelo autor, em cartaz há cinco anos em Buenos Aires.

Deus é chamado Tatita, termo de impossível transposição para o nosso idioma, tomado do dialeto dos nômades dos pampas argentinos, os chamados gaúchos, que conseguiram manter seu estilo de vida ao ar livre até meados do século XIX, e seguem presentes no imaginário portenho, um traço cultural sem equivalência no Brasil. Mas se o texto manteve a nomeação Tatita, sob direção de Rodrigues, a recriação cênica do deus canhestro, mas ainda assim sábio, se afasta da encenação original e resulta não apenas pertinente à estética escolhida, como ganha conexão com o contexto social brasileiro. Oscilando da leviandade à seriedade, essa figura valorizada na interpretação de Frateschi contribui para evidenciar o quão patéticas são algumas das expectativas lançadas sobre seus ombros. Aspecto que dialoga diretamente com o espírito de um tempo em que se tenta transferir responsabilidades de atos humanos para o plano divino.

Leekyung Kim

À esquerda, Celso Frateschi é Tatita, a figura divina cujo nome é tomado do dialeto dos nômades dos pampas argentinos, os chamados gaúchos, enquanto Dagoberto Feliz interpreta Caim

Diferentemente de outras peças desse autor argentino, como Ala de criados, encenada em 2017 no Brasil também sob direção de Rodrigues – que girava em torno de um acontecimento histórico específico do país vizinho, se conectava à luta de classes e apontava para o comportamento leviano das elites –, em Terrenal o mito hebraico do fratricídio serve a um desenho de cunho panorâmico do comportamento humano.

Escrita posteriormente – Ala de criados é de 2010 e Terrenal, de 2014 –, o próprio Kartun já declarou serem Caim e Abel os ancestrais dos personagens da primeira peça, comentário que não pode ser tomado apenas no sentido óbvio da cronologia, mas da investigação crítica. Esse aspecto de universalidade, característico dos mitos, aproxima o jogo proposto em Terrenal, e a crítica dele decorrente, da percepção da plateia brasileira.

Movimento similar, de retorno à origem por meio da dissecação de rascunhos e de processos de criação, pode iluminar princípios éticos e estéticos das obras de arte, afirmam os que se dedicam aos estudos da chamada crítica genética. Tal procedimento torna-se especialmente produtivo na análise das obras desse autor uma vez que, em entrevista ao crítico argentino Jorge Dubatti, afirmou que suas peças sempre surgem de uma imagem, em algum momento arquivada na memória.

No que diz respeito a Terrenal, essa semente foi plantada numa tarde em que caminhava com seus dois filhos pequenos por uma campina próxima a um rio e ali se deparou com duas placas de papelão que anunciavam, com caligrafia semelhante, a venda de iscas para pescaria: uma delas, larvas de besouro e a outra, minhocas. Ao lado delas, dois rapazes magros, possivelmente proprietários do pequeno lote e do casebre que nele havia.

Nas palavras de Kartun, “talvez porque seus filhos vivessem às turras à época”, imaginou dois irmãos disputando mercado no miserável negócio das iscas. E pensou que aquela precariedade poderia servir para “dizer meia dúzias de coisas” sobre o capitalismo no Terceiro Mundo. É interessante notar como essa cena simples segue ressoando após a cuidadosa elaboração que resulta na dramaturgia.

Num momento-chave, a revelação feita por Tatita à dupla Caim e Abel sobre a propriedade do lote que ambos habitam remete à colonização europeia, elo evidente entre os povos sul-americanos, o que por si só justificaria intercâmbio artístico bem mais intenso com os países vizinhos. Essa é uma das batalhas da tradutora Cecília Boal, psicanalista, nascida na Argentina, viúva do dramaturgo e teórico do Teatro do Oprimido, Augusto Boal (1931-2009), a quem conheceu em Buenos Aires onde ele se exilara após ter sido preso e torturado, em 1971, pelos órgãos de repressão do regime militar no Brasil. Na direção do Instituto Boal, ela vem mediando encontros entre artistas da América espanhola e do Brasil e foi corresponsável pelas montagens de Ala de criados e Terrenal.

O trânsito de uma peça da Argentina ao Brasil envolve bem mais do que a tradução do idioma, próximos que somos na geografia, distanciados nas trocas artísticas. Na concepção de Kartun a peça se dá, cenograficamente, num pequeno teatro de província com atores que tendem a trazer para uma coloquialidade torta textos clássicos com passagens incompreensíveis para eles, ora por ignorar o vocabulário, ora pela dificuldade imposta pela construção sintática.

A encenação de Rodrigues se distancia da teatralidade escolhida pelo autor, sem trair sua dramaturgia ou o pensamento que justificou a forma: a posição irrelevante dos personagens no concerto mundial, se analisados em termos de geopolítica. Não se dar conta dessa condição é uma das tolices de Caim, que se orgulha de ter inventado um sistema de pesos e medidas, e ainda de ter construído um muro para separar suas posses das de Abel. Na teatralidade de Terrenal “não levar a sério” é ato político.

Em vez do palquinho amesquinhado da montagem original, o espectador se depara com um espaço cênico expandido, urdimentos do palco desnudo à mostra, um imenso território para a gesticulação exagerada do palhaço de picadeiro e sua pilhéria sem pudor. Surge ainda um prólogo cênico-musical, inexistente no texto e até onde a memória registra, também na montagem portenha. Prólogo que anuncia o humor e sugere um duplo processo de organização: do mundo, na ficção, e da peça a ser apresentada.

Sem palavras, a cena do vai e vem de uma árvore sugere o ordenamento ainda incerto dos primeiros tempos. É preciso mesmo encontrar lugares fixos para todas as coisas? E serão estabelecidos à força de bofetadas?

“Não levar a sério” não é expressão que se traduza em ausência de rigor nesse espetáculo, muito ao contrário, como demonstram a pertinência e o cuidado na elaboração da trilha sonora – curiosamente, não há música na montagem argentina – e dos figurinos e cenários assinados por Sylvia Moreira.

Não por acaso o experiente Esio Magalhães, ator e palhaço do Barracão Teatro, foi o responsável pela preparação corporal. O reflexo de seu trabalho pode ser notado na exploração tragicômica que Danilo Grangheia faz da travessia do muro, atingindo um lirismo pungente no seu derradeiro ato. Uma imagem para ficar impressa na memória.

Divertido na forma, vertical no pensamento, Terrenal não é um espetáculo otimista.

Serviço:

Terrenal – Pequeno Mistério ácrata

Quando: de 11 de janeiro a 24 de fevereiro de 2019; sexta e sábado, às 21h; domingo, às 20h

Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1.000, acesso pela estação Vergueiro do Metrô, São Paulo, tel. 11 3397-4002)

Quanto: R$ 20

Duração: 100 minutos

Capacidade: 321 lugares

Indicação etária: 16 anos

Leekyung Kim

Em sentido horário, personagens Abel (Grangheia), Caim (Feliz) e Tatita (Frateschi)

Equipe de criação:

Autoria: Mauricio Kartun

Tradução: Cecília Boal

Direção: Marco Antonio Rodrigues

Com: Celso Frateschi, Danilo Grangheia, Dagoberto Feliz e Demian Pinto

Direção musical: Demian Pinto

Assistente de direção: Thiago Cruz

Direção de produção: Ricardo Grasson

Cenário, figurinos e adereços: Sylvia Moreira

Preparação musical: Marcelo Zurawski

Preparação corporal: Esio Magalhães

Assessoria de mágicas: Rudifran Pompeu

Visagismo: Kleber Montanheiro

Design de luz e operação: Túlio Pezzoni

Design de som: Gabriel Hernardes

Operadora de som: Monique Carvalho

Fotografias: Leekyung Kim

Assessoria de imprensa: Márcia Marques

Mídias sociais: Menu da Música

Design gráfico: Zeca Rodrigues

Cenotécnicos: Zé Valdir e Marcelo Andrade

Gestão de projetos: DCARTE e Corpo Rastreado

Administração: Corpo Rastreado e DCARTE

Produção executiva: Corpo Rastreado

Idealização: Instituto Boal

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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