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Crítica

Outras formas de dizer sobre o feminismo

2.2.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Joao Caldas Fº

A equipe de criação de Ossada conhece bem a distância entre nascer e tornar-se mulher, construção sociocultural examinada por Simone de Beauvoir há 90 anos. O espetáculo não cita diretamente O segundo sexo, livro central na obra da filósofa francesa, mas fomenta o pensamento feminista buscando novos modos de enunciar a violência causada pela desigualdade de gênero, tão premente ontem como hoje. A atriz e diretora Ester Laccava e as desenhistas de luz e imagem Mirella Brandi e Aline Santini elaboram outros vocabulários para a cena a partir do cruzamento de sensações e sombras.

Elas, as sensações e sombras, preponderam sobre o ambiente organizado à maneira de uma instalação em que transcorrem as cinco narrativas ou ações extraídas do livro I must collect myself (Eu preciso me recompor, de 2010), da atriz e escritora inglesa Maureen Lipman, personalidade veterana do teatro, da televisão e do cinema (ela interpretou a mãe do protagonista no filme O pianista).

Em ‘Ossada’, Ester Laccava não hesita em ocultar-se na coxia para dar lugar à varredura de luz que vai e vem pacientemente sobre espectadores e espectadoras. Efeito poético suspensivo que abarca todos os corpos presentes e parece escanear nossa percepção do mundo dessas mulheres pinçadas do cotidiano, e o quanto elas nos são mais próximas do que supomos

A amplitude do Espaço Cênico, um galpão multiuso do Sesc Pompeia, não é empecilho para Ester tourear sozinha o pé-direito alto e estreitar os vãos entre o teto, as paredes e os corredores à frente e atrás das duas plateias postadas uma de frente para a outra.

Independentemente de onde esteja posicionado, são pertinentes as chances de o público sentir-se integrado a cada um dos diferentes nichos em que as histórias acontecem. O espetáculo consegue estabelecer um campo comum em todas as situações-limite enfrentadas em contextos públicos ou na intimidade do lar.

Uma filha é castigada pelo pai porque atrasou a volta para casa em poucos minutos do combinado. Largado num sofá, ele a obriga a ficar de quatro para repousar os pés sobre suas costas. A humilhação é testemunhada pela irmã mais nova, com quem naquela noite desenvergará esse peso de suas existências.

Em plena pista de dança da festa de casamento do filho, uma mãe rouba a cena ao desabafar acerca da relação abusiva com o marido. Excede na bebida, mas é assertiva na crítica e autocrítica da união hipócrita anos a fio, consolando-se no dote culinário de fazer canapés de berinjela sem igual, tudo parodiado com uma canção reluzente de Stevie Wonder, Ribbon in the sky.

João Caldas Fº

A atriz e diretora Ester Laccava na narrativa curta sobre a mãe do noivo em ‘Ossada’, parceria criativa com Mirella Brandi e Aline Santini

Em outro texto, uma mulher para na calçada para fumar. Presume-se que desceu do prédio onde trabalha. O mero ato de acender o cigarro vira um impedimento inimaginável. A luta contra a corrente de ar equivale à capacidade de resiliência. Não há verbo, nem apelo à pantomima. Há o gesto estilizado, a repetição, o humor subentendido.

Pontuamos três das cinco histórias para apoiar a análise de que a relevância do que é dito ganha interxtualidade nas paisagens visuais e sonoras e naquilo que emana do corpo da atuante. Ester comunica o lugar e seu entorno com poucos recursos. A palavra, por sua vez, é um prolongamento da luz e do desenho de som (por Muep Etmo).

Os três exemplos vão muito além do descrito em sua capacidade de operar linguagens e, por vezes, de não se levar muito a sério, a despeito da contundência (a cena de uma escritora respondendo a questões desprezíveis numa entrevista coletiva, por ocasião de um lançamento, enseja contornos psicofísicos do teatro do irlandês Samuel Beckett).

Joao Caldas Fº

O terceiro espetáculo solo da atuante na década evidencia a abordagem do feminismo em perspectivas não convencionais

Com três décadas e meia de carreira, Ester surge isenta de ansiedade ao tratar da matéria-prima literária sob os códigos da performance. Esquiva-se de virtuosismo para servir aos demais elementos constitutivos da cena. Não hesita em ocultar-se na coxia para dar lugar à varredura de luz que vai e vem pacientemente sobre espectadores e espectadoras. Efeito poético suspensivo que abarca todos os corpos presentes e parece escanear nossa percepção do mundo dessas mulheres pinçadas do cotidiano, e o quanto elas nos são mais próximas do que supomos.

Ossada permeia sua consistente caminhada com citações à poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012) e à cantora, performer e artista plástica estadunidense Laurie Anderson. São por meio delas que a condição animal e o instinto humano se tocam para romper os cabrestos.

Este é o terceiro espetáculo solo de Ester Laccava na década. Tanto na empreitada de Syngué sabour – Pedra de paciência (2014), em que a protagonista afegã vela o marido em coma, por mais de três meses e sob guerra, enquanto amaldiçoa o machismo arraigado e lhe confessa segredos libertários do passado, como na de A árvore seca (2011), em que perpassa a vida de superações de uma sertaneja brasileira no convívio com o marido turrão, o filho adotivo e a loucura à espreita, o feminismo fala em alto e bom som por vias não convencionais.

Serviço:

Ossada

Onde: Sesc Pompeia – Espaço Cênico (Rua Clélia, 93, Água Branca, tel. 11 3871-7700)

Quando: Quinta a sábado, às 21h30; domingo e feriado, às 18h30. Até 3/2

Quanto: R$ 6 a R$ 20

Duração: 60 minutos

Classificação indicativa: 14 anos

Equipe de criação:

Criação e direção geral: Ester Laccava

Cocriação: Mirella Brandi e Aline Santini, a partir de textos de Maureen Lipman, Wislawa Szymborska e Laurie Anderson

(Obras da Wislawa Szymborska – edição da Companhia das Letras; tradutora: Regina Przybycien)

Dramaturgia: Elzemann Neves, Ester Laccava e João Wady Cury

Tradução: Gabriela Araújo

Com: Ester Laccava

Diretor de produção: Emerson Mostacco

Desenho de luz e imagem: Mirella Brandi e Aline Santini

Operação de luz: Clara Caramez

Desenho de som e trilha: Muep Etmo

Áudios: Marccelo Amalfi

Operação de som: Rodrigo Florentino

Figurinos e colaboração artística: Chris Aizner

Assistentes de direção: João Wady Cury e Elzemann Neves

Contrarregra: Clayton Guimarães

Designer gráfico: Carla Vanusa

Fotos: João Caldas

Produção: Lacava Produções e Mostacco Produções

Realização: Sesc-SP

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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