16.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 16 de maio de 1996. Caderno A – capa
Como em suas peças, ator emociona o público com o nacional e o popular no show “Na Pancada do Ganzá”
VALMIR SANTOS
Falar de Antonio Nóbrega é massagear o ego. Não dele, mas dos brasileiros. A desesperança que solapa a alma, a crua realidade das ruas, o sem-caso dos homens públicos, enfim, todo esse lodo cristaliza-se diante do gigante artístico que contamina a todos – crianças, velhos, adultos – com sua fé transformadora de cultura.
Não é conformação. É pura ação de espírito. Arregaçar as mangas, pau na máquina, ops, no corpo. A organicidade que dá voz às cantigas, modinhas, frevos, toadas e valsas.
Com a leveza do nome da rua onde ergue seu ninho – a Purpurina – e a transgressão e coragem da santa que batiza a vila paulistana – a Madalena –, Nóbrega impregna seu Espaço Brincante de uma brasilidade tocante.
A atual temporada do show musical “Na Pancada do ganzá” se reveste da mesma intensidade emocional que caracteriza suas peças teatrais. Resulta em mais um mergulho nas raízes do genuinamente popular brasileiro. Desta vez, o depuro artístico faz par com Mário de Andrade.
No final da década de 20, o escritor empreendeu uma viagem pelos cantões do Norte e Nordeste brasileiros, recolhendo fragmentos de manifestações musicais de domínio público. Mário de Andrade, certamente embalado pela Semana de Arte Moderna de 1922, como que já previa o processo de desmemorização que o País pagaria por conta do progresso – se é que se pode fazer esta relação assim, de chofre.
Pois coube a Nóbrega e aos amigos compositores também pernambucanos (Raul Moraes, Getúlio Cavalcante, Levino Ferreira e Wilson Freire) o trabalho de pesquisar o material legado por Mário de Andrade. A releitura é o show, apresentado inicialmente em 1993, em curta temporada no Memorial da América Latina, e agora em cartaz, no formato definitivo.
Chico Antonio, um cantador de coco, ou coquista (que embala rodas de pagode com canto e percussão) do Rio Grande do Norte, cativou Mário de Andrade à época. Ele cantava e tirava versos na pancada do ganzá, como se diz do chacoalhar do instrumento, um cilindro de alumínio com grãos dentro.
A sonoridade fanhosa de “Loa de Abertura” dá início ao show e o cantochão arrepia. “Senhores desta sala/Licença eu vou chegando, eu vou/A voz e a rabeca/o coração cansado, eu vou”. Sim, é a mesma entoada por João Sidurino, via Guimarães Rosa, em “Brincante” e “Segundas Histórias”, as peças teatrais.
É a senha: Tonheta está ali, no palco, a abraçar a rabeca, salteando daqui pra lá, de lá pra cá. As “tonhetices” do compositor e recriador musical Antonio Nóbrega. Daí, a dimensão ampliada da sua arte.
Cantos, toscos, transporta-nos a um Brasil senão esquecido, com certeza posto à margem do curso das suas almas vivas. Felizmente, haverá de existir sempre uns bastiões como o pernambucano Capiba, 92 anos, aqui presente com a composição “Serenata Suburbana”. Felizmente, o projeto musical de Nóbrega se encontra em CD, uma produção independente à venda no local.
“Na Pancada do Ganzá” tem a elegância e excelência do quinteto Zezinho Pitoco (sax alto, tenor, clarinete e percussão), Toninho Ferragutti (acordeon), Edmilson Capeluppi (violão 7 e cavaquinho), Dany (flauta e sax tenor) e Guello (percussão). São músicas com aquele perfil eminentemente felliniano, metidos em seus ternos bege. Há também a participação do filho de Nóbrega, Gabriel, e da esposa Rosane Almeida, respondendo por três inserções de danças.
Discorrer sobre arte tão belas é tarefa difícil – traduzir em palavras o que chega pelo plano subjetivo, pelo espírito afortunado em compartilhar de minutos tão sinceros e verdadeiros.
O público, mesmo sentado, segue o compasso dos pés e da cabeça movidos pelo ritmo da música e do canto. O sentido da comunhão, despressurizada de conotação religiosa, jorra dos corações e mentes. Atinge o pico ao final, quando a ciranda de roda se instala: público e artistas dão as mãos.
Em qual show noturno encontram-se crianças à beira do palco? Pois no Brincante elas estão lá, todas as noites. Não necessariamente filhos do casal Nóbrega/Rosane ou de amigos. São crianças trazidas pelos pais, tios, avós. Acompanhar “Na Pancada do Ganzá”, “Brincante” ou “Segundas Histórias” é como retornar à tenra infância. Ela não se perde de todo e acompanha seus “encostos”.
Miudezas do cenário. Os movimentos minúsculos e fragmentos do corpo de Nóbrega, que não perde a voz e nem o fôlego. A noção do ritual popular acentuada pela luz. A energia que emana da sintonia do quinteto com o intérprete. São algumas observações, talvez nos planos do visível e do palpável, que permitem assimilar um pouco da magia que é embarcar na nau deste “brincante”.
Na Pancada do Ganzá – Show musical com canções populares recolhidas por Mário de Andrade, em 1927 e 1928. Com Antonio Nóbrega, Zezinho Pitoco, Toninho Ferragutti, Edmilson Capeluppi, Dany e Guello. Participação especial de Rosane de Almeida. Espaço Brincante (rua Purpurina, 428, Vila Madalena, tel. 816-0575). R$ 15,00 (preço único). Estacionamento conveniado rua Fradique Coutinho, 1483 (R$ 4,00). Até 25 de junho. CD custa R$ 15,00 e está à venda no local.