25.5.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 25 de maio de 1997. Capa
Aos 91 anos, Kazuo Ohno volta ao País, pela terceira vez, e emociona com a sua dança butô
VALMIR SANTOS
São Paulo – Ainda com as imagens daquele velhinho bailando no palco, o crítico sai de casa, na manhã seguinte à estréia, quarta-feira passada, de “Caminho no Céu, Caminho na Terra” (Tendoh, Chidoh). Subia uma ladeira, quando deparou com um belo quadro da natureza: um arco-íris çoberto parcialmente por nuvens cinzas. O vento anunciava chuva. Esse contraponto entre as cores primitivas e a escuridão de nimbos acabou revelando, no fundo, um cadinho de compreensão da dança de Kazuo Ohno. Nas trevas e na alma, ele arrebata com seu corpo magro, a pele manchada pela velhice. Aos 91 anos, em sua terceira visita ao Brasil, Ohno continua semeando a palavra e o gesto em prol da ligação umbilical do homem com o universo que o cerca. Por mais que se busque uma teoria, uma nesga de lógica, o que dança e pulsa no butô do mestre japonês é a vida no que ela tem de essência e sublime. O ser e estar como antena do cosmo.
“Caminho no Céu, Caminho na Terra” foi o primeiro dos dois espetáculos que ele dança na Temporada Sesc Outono 97. Acompanhado do filho, Yoshito Ohno, 58 anos, também estava programado para apresentar, ontem e hoje, “Ninféias” (Suiren). As duas coreografias são inspiradas em pintores.
A primeira remete às serigrafias de Shohaku Soga, artista japonês do século 18. A segunda tem como referência a série “Lírios D’Agua” do francês Claude Monet.
Em “Caminho no Céu, Caminho na Terra”, Yoshito Ohno surge na platéia, caminhando em direção ao palco, com um vestido florido, uma plumagem azul despontando na cabeça careca – uma peculiaridade sua.
Fica evidente a presença de Yoshito como um vetor entre os dois caminhos abertos por Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata, os dois mentores da dança surgida no pós-guerra. Yoshito equilibra o Dionísio e o Apolíneo em seu corpo. Seu silêncio gestual transcende a noção de tempo e espaço. Tem o vagar do pai, mas também a visceralidade do pai artístico, Hijikata.
Em seguida, Kazuo entra incorporando um personagem de uma das serigrafias de Shohaku Soga. Com cabelos esvoaçantes, espetados com varinhas de bambu, ele carrega uma vassoura de piaçava. A imagem é primitiva, como convém à perspectiva ancestral que o dançarino imprime em toda a sua obra, dialogando também com os mortos, além dos vivos.
Yoshito volta, agora todo de branco. As frestas do seu canal com o público não chegam às comportas de Kazuo Ohno. O filho dança com uma interiorização sutil, que mais hipnotiza o olhar do que propriamente comove.
Kazuo Ohno agora aparece todo de preto, paletó, calça e um chapéu com rosa vermelha na aba. Seus gestos não são expansivos como se verá logo depois, quando entra de vestido preto, também com chapéu, aludindo à sua personagem-mor, La Argentina. Foi em 1929 que o jovem Kazuo assistiu pela primeira vez à apresentação da bailarina argentina Antonia Marcé, La Argentina, que viveu na Espanha.
É aí, na comunhão do homem, da mulher, da criança e do velho, enfim, que o mestre conduz todos para uma emoção bruta, universal. Kazuo Ohno desconstrói um dos maiores mitos pop, Elvis Presley, dançando uma música romântica. Na hora do aplauso, ganha uma rosa de uma espectadora. Se prosta, se joga no chão, não cabe em si de agradecimento, de doação. Improvisa uma bis com a rosa na mão, trêmulo, vibrante com a troca de energia. E a vida, na síntese do butô, por um momento gira em torno daquela flor. A vida cabe ali como uma mágica.