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“autor vai ao sagrado sem dó"

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Folha de S.Paulo

São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

TEATRO 
Mário Bortolotto visita o tema pela primeira vez em “O que Restou do Sagrado”, com o Cemitério de Automóveis

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local

Quem acha que Mário Bortolotto pegou pesado em “Hotel Lancaster” (2000), sob direção de Marcos Loureiro, descida ao inferno das drogas e afins, talvez note que o buraco é ainda mais embaixo em “O que Restou do Sagrado”, seu texto mais recente.
A primeira surpresa é que esse dramaturgo e ator paranaense, à frente do grupo Cemitério de Automóveis, já freqüentou seminário por cinco anos.

Demonstra intimidade para com a expiação de culpas que promove em sua primeira visita ao tema do sagrado entre as cerca de 40 peças que escreveu. “Agora vou ser excomungado de vez”, diz Bortolotto, 42.

Ele escolheu “a dedo” a data da estréia, ontem à noite, no Espaço dos Satyros: dia de Nossa Senhora Aparecida e das Crianças. Há passagens de depravações sem fim nessa história curta de “sete cascavéis das piores” reunidas numa igreja noite adentro.

Dramaturgo conhecido pelas histórias com personagens errantes, bêbados e deslocados, geralmente em ambiente urbano, Bortolotto confessa que desejava tratar do sagrado antes, mas só agora encara suas inquietações sobre religião no palco e na direção.

Personagens confessam pedofilia, chacinas e outros vitupérios em tintas realistas. Mas não conseguem se arrepender sinceramente, ainda que disso dependa o destino de um mundo falido.

A começar pelo Padre que os convoca (interpretado por Nelson Peres), ele mesmo um personagem em crise de fé. “A gente se agarra a qualquer coisa em que a gente possa acreditar. Pode ser um deus ou um cartão de loteria esportiva”, despacha.

Agora vem Lilís, a atriz pornô, na pele de Lavínia Pannunzio: “Pensando bem, eu nunca consegui entender um sujeito que coloca o próprio filho numa cruz e o faz literalmente comer o pão que o Diabo amassou. No mínimo, ele não merecia ganhar presente no Dia dos Pais”.

E as máscaras vão caindo: a escritora Cibele (papel de Fernanda d’Umbra), a secretária (Mariana Leme), o pedófilo (Wilton Andrade), o empresário mauricinho Roby (Gabriel Pinheiro) e o matador de travestis Val (Bortolotto). “Deus é a desculpa do mundo”, afirma Val.

“Sou católico. Quero acreditar que Deus me deu livre-arbítrio, que sou senhor do meu destino, mas às vezes me pego pensando que ele está de brincadeira com a gente”, diz Bortolotto.

Em meio ao humor corrosivo, há algum fiapo de esperança, nem que seja na epígrafe de santo Agostinho: “Deus permitiu o mal para dele extrair o bem”.

Anteontem, após o almoço, a caminho da pelada de toda segunda-feira à tarde com os amigos, Bortolotto lançava ao menos uma pista para tanta indagação: “O futebol é a única coisa que restou do sagrado”, chuta o também responsável pela trilha (“spiritual, gospel e uns sons demoníacos”).

A nova montagem marca o retorno do grupo de 22 anos à fase “nômade”, depois de encerrar ocupação no teatro Alfredo Mesquita, na zona norte de São Paulo. Contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro, o Cemitério sente-se em casa ali na praça Roosevelt.



O que restou do Sagrado.
Texto e direção: Mário Bortolotto. Com: o grupo Cemitério de Automóveis. Quando: em cartaz ter. e qua., às 21h30. Onde: Espaço dos Satyros (pça. Roosevelt, 214, centro, tel. 3258-6345). Quanto: R$ 10. Até 15 de dezembro.