20.7.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 20 de julho de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – A peça começa simbolicamente com a ‘‘crise do espetáculo”. Em cena aberta, Marco Nanini disponta da platéia encarnando o seu Sr. Jordain, o “burguês ridículo” do título. Dai para frente, o que se tem é uma sincera homenagem ao teatro, à comédia especificamente, representada pela verve de Molière. É o ator Molière, mais do que o dramaturgo francês do século 17, que dá o ar da graça em “O Burguês Ridículo”.
Guel Arraes e João Falcão, vindos de humorísticos da televisão, experimentam a arte da direção e, de quebra, respondem pela adaptação. Tomam como ponto de partida “Burguês Fidalgo” e acrescentam trechos de outras peças de Molière, como “As Sabichonas” e “As Preciosas Ridículas”. Tal cruzamento resulta em um texto que preserva muito da comédia francesa da qual Molière é estrela-mor.
Claro, um texto originário de Molière não pode trair a crítica de fundo social e político. Não é à toa que o autor é levado aos palcos brasileiros com tanta frequência. Ri-se da hipocrisia familiar; ri-se da jogatina política; ri-se da escassez ética. Ri-se, em Molière, com um gostinho amargo de realidade. Como se três séculos não houvessem passado.
Na direção, Arraes e Falcão depositam tudo no ator. Para tanto, têm um elenco afinado com a proposta cênica. Nanini encabeça com sua notável presença de palco, já conhecida de montagens anteriores. Aliás é uma surpresa agradável identificar a coerência do trabalho deste ator. Cita-se a irresistível montagem de “O Mistério de Irma Vap” ou a recente “Kean”. Nanini está sempre metido no teatro dentro do teatro. É uma condição que só a maturidade propicia aos grandes atores.
“O Burguês Ridículo” tem ainda a figura impagável de Ary França como Dorante. O sangüessuga fiel do Sr. Jordain é um dos melhores papéis da carreira deste comediante. Seja no drama “Édipo Rei”, sob o vôo dionisíaco de Renato Borghi, seja na divertida “O Doente Imaginário”, com Cacá Rosset, França domina plenamente as nuanças de cada personagem. Nele, o público sempre vai encontrar o esforço criativo, o empenho pela verdade interpretativa.
Outro destaque é a empregada Nicole de Betty Gofman. A atriz coloca corpo e voz a favor da caricatural. Mas não o faz gratuitamente. Ao contrário, vai no limite de ser ridícula na acepção pejorativa do termo. O trabalho de Betty e a relação entusiasmada do público com sua personagem confere um status merecido para ela que também se entrega com risco e competência.
É um grande espetáculo, com atuações marcantes. Uma noite com os comediantes do rei, com a cenografia majestosa e não-empolada de Fernando Mello da Costa, mais os figurinos clássicos e leves de Emília Duncan, enfim, uma noite com essa trupe resume-se a um encontro com um teatro levado a sério em suas mínimas exigências.
O Burguês Ridículo – Adaptação da obra de Molière. Direção e tradução: Guel Arraes. Tradução: José Almino. Com Bruno Garcia, Dora Pellegrino, Oberdan Junior, Virgínia Cavendish e outros. Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística/Sala Esther Mesquita (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel. 258-3616). R$ 25,00.
“As Sereias” mergulha no “telebesteirol”
Mas a atualização aponta para um ratamento interpretativo mais direcionado
São Paulo – Muito do espírito besteirol se perdeu nos últimos tempos. Não se tem mais aquela ingênua irreverência, o susto do improviso, a língua ferina. A despretensão lavada do seminal grupo Asdrúbal Trouxe o Trambone, na carona da abertura política do País, deu o tom do humor nos palcos brasileiros no início dos anos 80. Agora, resta o consolo televisivo de alguns resquícios em “Casseta & Planeta”, por exemplo.
O esforço é grande no teatro, mas parece que tanto a platéia quanto os atores estão sendo tolhidos pela imaginação catódica. Ou seja, o que se vê resvala muito na novela das sete. O que não chega a comprometer o entretenimento, diga-se de passagem. Atende à espectativa do público, ávido por uma deixa, por uma gag que lhe faça cócegas.
Quando ainda não sofria o bombardeio midiático ao qual se submete atualmente, Miguel Falabella chegou a dividir a cena com Guilherme Karam em “As Sereias da Zona Sul”. Era um texto que ele escreveu a quatro mãos com Vicente Pereira, o autor de “Solidão, a Comédia”. Adaptada agora, dez anos depois, para as duas ótimas atrizes Rosi Campos e Zezeh Barbosa, a peça é sintomática da comédia destes anos 90.
Sim, há um pouco do Asdrúbal (Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães). e de Dercy Gonçalves nas interpretações. Mas a atualização aponta para um tratamento interpretativo mais direcionado.
Escolada em humor radical, Rosi Campos é uma “sereia” que não ousa avançar, se atirar ao mar do riso que captura pela essência. Nem no átimo de uma falha, quando a sonoplastia não sintoniza com um gesto seu exagerado. Mesmo o pequeno escorregão não a lança para a formidável contribuição dos erros em se tratanto do exercício de divertir.
Na adaptação do texto que agora dirige, Falabella investe no contraponto entre Rosi e Zezeh Barbosa. Esta é dona de uma atuação histriônica, popular – lembra uma Dercy, um Grande Othelo. Zezeh provoca empatia imediata. Ela se destacou no musical “O Mambembe”, uma incursão pouco convincente de Gabriel Villela pelo gênero. Falabella assistiu à montagem e a escalou para a sua novela “Salsa e Merengue”.
Dificilmente “As Sereias…” funcionaria com outra dupla. Rosi e Zezeh são perfeitas para as quatro esquetes. A melhor, disparada, é aquela na qual interpretam duas socialites em uma sauna. Descascam impropérios contra a ralé, até que as personagens são “castigadas” no desfecho hiláno.
Hildinha ou Ivete, entre outras, as mulheres de Rosi e Zezeh se esmeram na mesquinhez. Elas passam rímel no terceiro olho, resumem suas vidas numa edição de bolso e soltam pérolas como: “Sou uma mulher que só pensa quando está maqueada”. No outro extremo, a peça visita a angústia existencial de uma poeta, que se sai com a espantosa frase-síntese do mundo contemporâneo: “A única porta secreta é a que nos separa de nós próprios”.
A dobradinha Falabella-Vicente Pereira resultou em diálogos ligeiros, como convém à comédia. Falabella trouxe o texto para o presente e contextualizou os papéis femininos, respeitando o entretenimento. O crítico não assistiu à versão masculina de “As Sereias…”, mas suspeita que ambas corresponderam à qualidade cênica de sua época. Hoje, esse que pode ser chamado de “telebesteirol” é mais um dos frutos deste final de século acelerado. Felizmente, a compactação ainda não estancou de vez a arte do ator que Rosi e Zezeh sabem fazer valer em cena. Apesar de tudo.
As Sereias da Zona Sul – De Miguel Falabella e Vicente Pereira. Direção: Falabella. Com Rosi Campos e Zezeh Barbosa. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Hilton (rua Ipiranga, 265, Centro, tel. 259-5508). R$ 20,00 e R$ 25,00 (sábado). 80 minutos. Estacionamento gratuito na rua Epitácio Pessoa, 75.