3.11.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 03 de novembro de 1996. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
Aos 80 anos, Gianni Ratto domina o teatro com maestria. A direção e cenografia de “Morus e seu Carrasco”, montagem que marca meio século de dedicação ao palco, é um exemplo do respeito com que encara o seu ofício. “Esse é um espetáculo ‘convencional’”, logo adianta no programa da peça. “Não sou homem de revoluções ou vanguardismos.” Pois o que se vê é a convenção em seu estado lapidar, sem gratuidades do teatro comercial.
Começando pelo texto, Renato Gabrielli, o autor, concebeu uma história épica, opondo Igreja e um rei, duas poderosas instituições, para trazer à tona a discussão sobre a ética do homem comum em meio ao jogo maquiavélico. Ao invés de cenários “faustosos” com castelos exuberantes, figurinos nobres e todo aquele visual pomposo das cortes, Gianni Ratto se limita ao essencial.
Do formato circular do palco, remetendo a uma arena, à iluminação econômica, o diretor evidencia o texto e a interpretação. Autor e atores são privilegiados de forma a estabelecer um diálogo sem rodeios com o espectador. Olho no olho, palavra no ouvido. “Morus e seu Carrasco”, neste sentido, tem algo de nostálgico; de um teatro no qual o diretor não rouba a cena.
Drama com breves concessões para a comédia (um dos personagens chega a afirmar que não se trata de um tragédia), trata-se da história do escritor Thomas More, representante da Igreja na Inglaterra de séculos atrás e assessor de confiança do rei Henrique 8°. Este lhe roga consentimento ara divorciar-se, driblando a autoridade máxima, o Papa.
Intelectual de perspectiva humanista, Morus se nega a compactuar do plano, abdica do cargo de confiança e, logicamente, ganha a ira do rei. Com a manipulação das leis em suas mãos, o todo-poderoso imediatamente condena o escritor à morte.
Paralelamente ao embate, Renato Gabrielli empreende um cruzamento poético entre o velho Morus a caminho do cadafalso e o jovem idealista. São dois Morus em cena: o sonhador de utopias possíveis e aquele que descobriu a podridão da superestrutura e, ainda assim, não demove a fé.
Momento marcante
Um dos melhores momentos do espetáculo se dá na passagem em que o velho Morus (Jorge Cerruti) e o jovem (Ronaldo Artnic) se encontram: o passado e o presente como inconsciente e consciente. Um canal de espaço e tempo que a magia do teatro proporciona quando bem feita. A interpretação de Cerruti é mais intensa e transmite a introspecção de texto com segurança, enquanto Artnic é um tanto declamativo nas suas falas.
O Carrasco de Ariel Moshe é um personagem-chave: ao mesmo tempo que surge como algoz (ele decepou a cabeça de Morus), se revela fascinado pelos gansos de um lago que, invariavelmente, manda para a panela. É delicado e assassino. O bufão Patenson (Octávio Mendes) e sua esposa, cozinheira e aspirante a atriz Sara (Soraia Saide) respondem por alguma comicidade – mas breves.
Pela experiência e honestidade de Gianni Ratto, pela dramaturgia labiríntica de Gabrielli, pela sobreposição do elenco ao visual, pela emoção iminente, “Morus e seu Carrasco” é uma prova de que nem sempre a convenção é sinônimo de preguiça. Aqui, os elementos do teatro são usados (não usurpados) em benefício de uma história que se quer bem contada – o que, de antemão, constitui um alento para o espectador.
Morus e seu Carrasco – De Renato Gabrielli. Direção: Gianni Ratto. Com Lara Córdula, Gerson Steves, Blota Filho e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 20,00 e R$ 25,00 (sábado).