13.7.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 13 de julho de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Maria Adelaide Amaral é a veia feminista da dramaturgia brasileira. Há 20 anos, a autora reflete em seus textos sobre a condição da mulher no mundo: a família, o amor, o preconceito social… São muitos os ângulos. Em “Inseparáveis”, ela volta à carga com um dos espetábulos mais contundentes da carreira.
As personagens Maria Regi-na e Ana estão na faixa dos 40 anos e como que passam a limpo a vida. O reencontro acontece depois de anos sem se verem. Ao rememorar os primeiros momentos daquela amizade, com certa nostalgia, elas acabam também encontrando o chão da realidade em que vivem.
Maria Regina está decidida a romper um casamento de 25 anos. Ana, já divorciada, vem de uma frustração amorosa com homem mais novo. É dessa gangorra paradoxal entre um passarinho nas mãos e muitos voando que se dá os conflitos e as intersecções. A autora de “Inseparáveis” proporciona ao público um mergulho na alma das personagens tão comuns em seus anseios de felicidade, em suas misérias amorosas, em seus apegos à esperança.
“Eu nunca me apaixonei por ninguém, nem pelo meu marido”, garante Maria Regina. Nos últimos anos, o único prazer para ela, na hora do ato sexual, éespremer os cravos nas costas do marido insensível. “Você não imagina o quanto este País é implacável com as mulheres como a gente”, dispara Ana. Se uma moça de 25 anos é considerada “velha” para certas carreiras, o que dirá uma mulher de seus 40 anos. Maturidade e vivência são descartadas por uma regra perversa de mercado.
Mas Maria Adelaide Amaral não se furta ao humor. Por mais que a temática seja dura — mas necessária -, a escritora respinga um senso cômico em suas personagens. Para arrematar, introduz um homem na história. Guto, o marido abandonado por Maria Regina, acumula os chavões machistas, as chantagens de cama, o blablablá comum de quem não é capaz de perceber a infelicidade da companheira.
Casamento, solidão, orgasmo fingido, menopausa – um texto com tal abordagem existencial requer atrizes de peso. Irene Ravache (Maria Regina) e Jussara Freire (Ana) sustentam cerca de duas horas de espetáculo com uma harmonia espantosa. As duas expõem suas personagens com conhecimento de causa. As nuanças das falas, o repertório gestual, a emoção em estado bruto – enfim, trata-se de um casamento orgânico e introspectivo com Maria Regina e Ana.
O contraponto Guto também é encarnado com talento por Eduardo Conde. Sua imagem de canastrão é perfeita. Suas súplicas para ter a mulher de volta são impagáveis. Diz que vai “morrer de tristeza’’; recomenda tratamento contra “frigidez”. Quando se convence de que Maria Regina não voltará atrás, então tira a máscara do ridículo e avisa que vai arranjar uma garota novinha para desfilar por aí.
A direção de José Possi Neto aposta exatamente no potencial de Irene Ravache e Jussara Freire. É um texto que gira em torno da amizade e isso fica muito patente em cena. A cenografia de Felippe Crescenti transcende a sala-de-estar, figurinha carimbada nas montagens das peças da autora.
“Inseparáveis” mostra que a virada na vida independe da idade. Sob a premissa da felicidade, da paz consigo, toda e qualquer movimentação que se faça é sagrada. No texto e na interpretação, paira um sentido de -humanidade que se fixa na mulher pelo enfoque, mas no fundo não tem sexo.
Inseparáveis – De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Faap (rua Alagoas, 903, Pacaembu, tel. 824-0104). R$ 20,00 e R$ 30,00 (sábados). 90 minutos. Até setembro.
“Filhas de Janete Clair” faz autocrítica
Homenageando a telenovela, a comédia traz dois atores no papel de comadres hilárias
São Paulo – Telenovela, essa paixão nacional, ganha uma bela homenagem em “As Filhas de Janete Clair”. Trata-se de um projeto antigo do ator Armando Filho, noveleiro confesso que já contabilizou ter assistido a 271 tramas na televisão. Ele convidou Jandira de Souza para desenvolver a pesquisa e finalizar o texto. Em cena, estão o próprio Armando e Fausto Franco nos lpapéis de Corina e Delaide.
As personagens simplesmente acompanham novelas desde a primeira produção brasileira, “2-5499 Ocupado”, exibida pela extinta TV Excelsior, em 1963. Daquela história protagonizada por Tarcísio Meira e Glória Menezes, 34 anos atrás, até os avançados anos 90, a peça conta a trajetória da amizade entre Corina e Delaide.
Elas fizeram das novelas das seis, das sete e das oito a história paralela de suas vidas. Muito se fala do poder encantatório dos folhetins eletrônicos e da iminente solidão que se esconde por trás do fenômeno. A montagem materializa essa constatação no palco, onde o público ri e se emociona com as peripécias daquelas cinqüentonas hilárias.
Os perfis são emblemáticos. Corina não tira Carlão da cabeça desde que assistiu à cena final de “Pecado Capital” (1976). O corpo estendido em plena obra do rnetrô carioca, coberto por jornais, e ainda por cima enlutado pela canção de Paulinho da Viola (“Dinheiro na mão é vendaval/É vendaval/Nas mãos de um sonhador…”) foi transposto da ficção para a realidade da personagem. Desde então, Corina não teve outro homem, amargando uma angústia infinita. Mesmo com o surgimento de outros heróis, de outros galãs, continua infeliz.
Delaide aparenta maior tato com a vida. Assimila modas e trejeitos que de tempos em tempos as novelas soltam. Experimentou o casamento, mas o marido morreu. Viúva, foi à luta, mas só teve decepções.
“As Filhas de Janete Clair” é uma homenagem, sim, como se disse. Mas enseja também uma autocrítica. Não fosse a novela, a que Corina e Delaide poderiam se apegar? Quantas pessoas, Brasil afora, não se alimentam dos mesmos sonhos e padecem dos mesmos sofrimentos? Sonhos e sentimentos alheios, mas tão próximos, tamanha a identificação com os personagens.
De volta à montagem, o que se tem é uma verdadeira antologia televisiva no palco. Corina e Delaide se encontram para assistirem juntas ao último capítulo de “Vale Tudo”. Como todo o Brasil, elas também querem sa ber quem matou Odete Roit-man, a céebre personagem de Beatriz Segall. É nessa noite que se desenrola a história da peça.
Elas têm brincadeiras próprias, voltadas para as novelas. A cada palavra-chave, simulam personagens globais, remetendo a cenas que acompanharam em outras épocas. São citados tipos como Nono Corrêa, Dona Xepa, Perpétua e Viúva Porcina. As falas, as imagens de artistas projetadas em slides e as cenas em que brincam de intérpretes, com direito a figurinos e caracterizações, enfim, tudo soma cerca de150 referências a novelas.
O bombardeio de informações se instala sem enfado. A história flui de forma que mesmo os não-noveleiros acompanhem seu ritmo. Não se descarta a ficção em nenhum momento. A “realidade” das novelas é ínserida sem prejuízo da magia teatral.
As atuações de Armando Filho e Fausto Franco são responsáveis em grande parte por isso. Em especial Armando. Sua Corina é lapidada no tom de voz, no tratamento delicado da emoção. Fausto, como o próprio papel pede, é mais expansivo, exagerado. Ambos têm sua graça e conquistam a empatia do público logo no início, quando surgem metidos em vestidos floridos.
Na direção, Eduardo Silva (atuando em “Os Reis do Improviso”), tomou cuidado em não caracterizá-los como travestis. O que se vê são duas mulheres em cena, com seus cacoetes, suas crisesinhas. Há também alguns números musicais, sob direção de Gustavo Kurlatm acentuando a leveza do espetáculo. A trilha sonora, assinada por Aline Meier, é um capítulo à parte, trazendo temas de novelas. Lembra-se de “Rock’n Roll, Lulaby”, interpretada por B.J. Thomas em “Selva de Pedra”? Está lá…
A cenografia de Marisa Rebollo tipifica milhares de lares dos brasileiros. O sofá a poucos centímetros da televisão, a cozinha, os quadros de artistas nas paredes. O projeto de “As Filhas de Janete Clair” tem o mérito de tratar com inventividade um assunto tão enraizado no imaginário nacional. Não é à toa que na estréia, no final de semana passado, o espetáculo teve sessões extras, por causa da empatia do público. Uma montagem simples e com a força que só o teatro pode emanar.
As Filhas de Janete Clair – De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brasileiro de ComédiaAssobradado (rua Major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 604-5523 e 606-4408). R$ 10,00. 75 minutos. Até 31 de agosto.